Voyeur voyage

28.5.15 Cabotino 0 Comentarios



Eu e as outras almas sebosas do bairro, Bida, Nêm e Sapuia nos reuníamos por volta das 15h30 após a indefectível sesta subsequente ao almoço. O sol no verão recifense é de rachar até poça d'água, e nos anos 1990 havia o agravante do Rombo na Camada de Ozônio, ou seja, era uma paranoia a mais para evitarmos o sol a pino. Ali na hora em que o comércio voltava a reabrir – há o costume, na periferia, de fechar o comércio após o horário de almoço – nos juntávamos entre as ruas 17 e 18 para deliberarmos a maloqueiragem da tarde.

Entre as propostas levantadas pela Alta Cúpula da Vadiagem estavam: jogar bola no campo da Fumaça; roubar manga no Sítio de Biu Oi de Poico; Tomar banho no açude do Sr. Narizinho ou ir à Bica lá da Rua 50. Daí Sapuia, punheteiro inveterado, olhou para Nêm e sugeriu: por que não brechamos Duda mais tarde? Duda é a corruptela de Eduarda, filha de Sr. Jaime, um dos coroas mais bombados da Quebrada, era um dos poucos que tinham carro na região. Acabara de comprar um Volkswagen Voyage zero bala. Nós olhamos para Sapuia e perguntamos estarrecidos: que história é essa, meu irmão? Todos nós éramos experts na arte de espionagem de mulheres nuas, eu, por meu turno, já havia brechado minhas primas, umas vizinhas na época que morava na rua 23, as filhas dela eram o pipoco, mas a mãe tinha um par de tetas maiores do que os braços do Padre Fritz, alemão que celebrava as missas dominicais na Capela Obra de Maria, localizada no bairro.

Sapuai disse-nos que havia brechado, junto com Nêm, Duda uns dias antes pela fresta das telhas canal que ele havia afastado partindo do telhado da casa de Nêm que era vizinha à de Sr. Jaime. Enquanto ele dava os detalhes sórdidos do voyeurismo mais cobiçado da Quebrada, nós, estarrecidos, começávamos a conjecturar as cenas e viabilizar os horários da espreita, falar com Nêm e os cuidados inerentes a tal empreitada. Sapuia nos informou que o horário ideal era por volta das 17h30 quando Duda retornava das aulas particulares com Dona Quitéria, velha que ajuizou muitos espíritos de porco da Quebrada com sua gramática normativa antes do acordo ortográfico de 1992, da tabuada de multiplicar e dos infinitos exercícios em algarismo romano.

Na época, Duda era de uma beleza estonteante. Dona de um par de pernas que punha muita mulher no chinelo. Era daqueles fenômenos da natureza que assolam as mulheres que, da noite para o dia, como em um toque de prestidigitação do maldito Tempo, transforma meninas em mulheres. Há pouco tempo, nós a víamos como mais uma menina da boa família pernambucana, pequena, com duas tranças no cabelo, um par de melissas da Sandy nos pés, roupas compostas. De repente, ela passava para ir à escola pela manhã no Voyage do seu pai: calça jeans apertada, cabelo castanho encaracolado; molhado pelo banho matinal e com creme para domar os cachos irrequietos pelos cálidos sonhos sobre os lençóis e os travesseiros – eternos confidentes das meninas acossadas pelos desejos que fariam molhar toda sua alcova.

Partimos para a casa de Nêm quando sol começava a declinar a oeste, lá por trás dos morros de Jaboatão dos Guararapes, e deixava o horizonte com aquele alaranjado cítrico como casca de laranja mimo pipocando os ácidos na retina ao descascá-la com a sui generis engenhosidade do corpo humano – o polegar opositor. Chegamos por lá e ficamos com aquela cara de menino pronto para fazer fuleiragem, como no momento que antecede o quebra panela no dia de Santo Cosme e Damião. Neste instante, vimos Duda voltando para casa, com seu ubíquo fichário cravado rente ao busto, um shortinho jeans da cor do céu de horas atrás, um top com gola em “u”, e calçando um par de Opankas.

Nos posicionamos pela laje do banheiro da casa de Nêm, no miudinho, agachados para não chamar tanta atenção, pois se fossemos flagrados estávamos fodidos. Para tapear, pegámos uma lata com linha e um papagaio de Bida que estava na casa de Nêm há um tempão, da época da última temporada de pipas. Decidimos que quem iria brechar de início era Sapuia e Nêm por terem a primazia da descoberta. Em seguida, iria eu e Bida. Afastamos as telhas e ficamos esperando o momento do bote.

Eu e Bida percebemos que Duda havia chegado no banheiro pela excitação de Nêm e Sapuia. Enquanto isso, minhas mãos suavam, havia um calafrio na minha barriga e uma vontade miserável de cagar. Mas, controlei-me por que não queria perder aquele momento, tampouco demostrar fraqueza frente àquelas almas sebosas especialistas em arriação. Após uns minutos, fizemos gestos para revezar a tocaia, mas Sapuia e Nem não davam a menor indicação de que iriam abandonar seus postos. Daí eu olhe para Bida e gesticulei com a mão direita além de balbuciar: vamos nessa. Conseguimos afastar um par de telhas e aí meu Deus! As cenas a seguir ficaram gravadas na memória como uma linda estampa chapa o tecido branco de algodão da camisa no processo serigráfico.

No interior do banheiro, sob uma lâmpada Osram de cem velas que caia no seu corpo como chuva florescente e iluminava ainda mais sua pele suada na véspera do banho, víamos Duda sentada em um banquinho de madeira com as costas apoiadas na parede. Suas pernas estavam abertas, à altura da cintura, e cada uma apoiava-se ora no criado mudo repleto de cremes, xampus, condicionadores, escovas, pentes etc., a outra estava sobre um banco de plástico no mesmo nível do criado mudo, daqueles bancos com quatro furos no seu centro. As pernas compunham em sua geometria um sensível triângulo equilátero. Entre as pernas dela, havia um segundo banco onde encontrava-se um espelho [apoiado por um pote de cremes] em formato retangular, daqueles de moldura vermelha, onipresente em qualquer barbearia suburbana do Brasil. Na mão direita de Duda, havia um prestobarba Probak de uma lâmina, daqueles da haste branca e da capinha laranja.

Enquanto se depilava, havia um silêncio glacial sobre a sua cabeça, quatro marmanjos donzelos a espreitava, descaradamente, enquanto ela fazia o seu ritual higiênico, ou estético, ou habitual vá lá saber. Seu corpo parecia um muçum brilhante, sua pele irradiava um brilho tal qual jambo maduro, uma maciez e um calor que podíamos sentir a metros de distância. Suas ancas aterradas no banco de madeira faziam transbordar a curva equatorial do seu corpo para fora da circular superfície da madeira. Enquanto sua mão direita ia e vinha, descrevia arcos nas virilhas e entre os dois lados da fenda vaginal. Em um dado momento, percebi, não sei se os demais também, que ela esboçou um leve sorriso, como aqueles assentimentos pueris que damos ao concordar com uma cumplicidade. Acredito que ela sabia que estávamos brechando-a.

Hoje, já adultos, poderia perguntar a ela se sabia da nossa espionagem daquela época, mas seria uma pergunta despropositada e inescrupulosa. Prefiro ficar com a atmosfera do interdito, do proibido que além de saboroso guarda o tostão da picardia do Tempo que deita tudo ao chão impelido pela força da gravidade da famélica senhora, a Morte. O Tempo e a Morte, duas entidades que nunca tiram férias assim como a prática vouyerista.


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