Viagem ao fim do norte

3.5.17 Cabotino 2 Comentarios


Era o ano da graça de 2007 e estávamos indo, em dois ônibus fretados com diversos representantes dos movimentos sociais pernambucano, rumo à capital do estado do Pará, Belém, para o congraçamento da 9ª edição do Fórum Social Mundial cujo slogan “Um novo mundo é possível” impregnava algus de otimismo e outros de ceticismo – eis os dois humores prevalentes na esquerda política. 

No extenuante périplo de Recife a Belém de ônibus, um dia e meio de viagem, escolhia-se diversas formas de evitar-se o tédio proveniente das infinitas paisagens de cana de açúcar, caatinga e coco babaçu, como, por exemplo: drogas, ler, flertar, tirar um som, dormir... Como não consigo dormir se não for deitado, tampouco paquerar por minha hedionda timidez, e não tenho habilidades percussivas restava-me, portanto, entorpecer-me de maconha, álcool e de leituras. 

Ainda não havia entrado na faculdade de Sociologia o que iria acontecer apenas no ano seguinte, mas naquela quadra de minha vida eu vinha lendo vorazmente uma mistura estranhamente perigosa: poesia e política. Era um animal onivoramente político e lírico. 

Tinha vinte e um anos na ocasião e desde os 17 havia iniciado, de maneira não deliberada, meus anos de formação que iriam culminar dez anos depois justamente quando tornei-me graduado em Sociologia. 

A partir dos 17 iniciei um período de peregrinações embrenhado-me nas madrugadas de luz mortiça, desejos sexuais e cheiro de livros ensebados. Época de viagens ao mundo ao redor do meu quarto e do meu corpo. Viagens físicas e metafísicas com o único intuito de conhecer mais minha geografia. E eis o advérbio que ungia meu corpo como um emplastro por vezes balsâmico: “mais”. Sempre foi “mais” música, “mais” literatura, “mais” poesia, “mais” cinema, “mais” fetiche, “mais” erotismo, “mais” drogas... mais tudo. 

A máquina de ferro, vidro e látex rasgava o escaldante concreto rumo ao norte, sempre ao norte: onde a bússola da sensatez enlouquece e a civilidade claudica. Em seu interior, homens e mulheres desnorteados em busca da resposta de uma narrativa de esquerda: “Um novo mundo é possível?” Enquanto a resposta não vinha, quedávamo-nos com olhos vermelhos, o coração palpitando erotismo, uma picardia na ponta de cada língua e o desejo de transformar esse mundo numa grande e vermelha bacante, seja econômica, cultural ou política.

Estávamos na esquerda e no Eros.

Meus olhos liquefaziam-se pelos efeitos da maconha, dos versos de Pessoa e das paisagens melancolicamente fodidas. Súbito, escuto um cara que papeava atrás de mim soltar, de maneira meio pedante, essa para uma mulher: “Sons, palavras são navalhas”. O verso de Belchior atravessou-me como a miserável paisagem de coco babaçu do Paupérrimo Reino do Maranhão que parpassava naquele instante as minhas retinas nordestinadas. 

Algumas obras entram em nossas vidas de maneira abrupta como se nosso corpo abalroa-se naqueles outros objetos estranhos e, ato contínuo, criasse um calo arroxeado que cresce e enrijece à medida que vamos alisando-o. Contudo, o coágulo serena ao passo que aqueles objetos vão se distanciando do tempo e do espaço onde os encontramos na primeira vez. Como foi o caso da obra de Fernando Pessoa em minha vida. No entanto, há outras obras que nos passam ilesas, no primeiro momento em que travamos contato com elas, mas que de maneira misteriosa já nos penetrou subcutaneamente e inoculou-nos com suas células cancerígenas que, através de sua metástase, aumenta os cancros e toma conta de toda nossa compleição. Esse é o caso da obra de Belchior em minha vida. 

O trovador de Sobral carregava em sua obra uma vontade de potência irmanada com um sentimento trágico que é típico da condição nordestina. Uma dicção estranhamente erótica marca seu cancioneirismo tal um acorde dissonante de João Gilberto, ou o resfolego da batida de um Jackson do Pandeiro, o timbre gutural e seco como a paisagem sertaneja-vocálica de Luiz Gonzaga, ou o desenho onírico-mítico local e cosmopolita de um Elomar.

Belchior é como o Ceará: sertão-litoral sem a mediação da modorrenta, confortável e úmida zona da mata.

O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. O ser tal vai se trans-for-mar o tal ser vai se trans-for-mar...

Segundo o dicionário, a palavra “Belchior” significa o mesmo que antiquarista, alfarrabista, pessoa responsável por negociar objetos usados como velhas roupas coloridas.

Belchior também foi o nome de um dos três Reis Magos que seguindo a Estrela de Belém (“Um novo mundo é possível?”) vieram ao mundo para presentear o nascimento do Cordeiro de Deus... “Perdo-ai os pecados do mundo. Dai-vos a paz”.

Naquela viagem rumo ao norte da minha condição na falsa pista de “Um novo mundo é possível” estava, inconscientemente, inoculado pelo cancioneirismo de Belchior. Por sua esperança cética. Por seu singelo niilismo. Por sua suave acedia. Por seus galos, noites, paralelas, canaviais, armas quentes, marcas de batom, corações selvagens, liras de vinte e poucos anos, conflitos geracionais, urbes fodidas do terceiro mundo... enfim, por sua nordestina latino-americanidade.

O bardo de Sobral mostrou-me que toda tragédia lembra um rosto setentrião.

Belchior me deu o Nordeste mesmo sabendo que este não passa de uma ficção. E não há nada mais real do que uma ficção, como bem sabem os líricos deste mundo.

Hoje, dez anos após aquela viagem à procura de “Um novo mundo é possível” e da recente morte de Belchior, chegamos a uma quadra histórica que, pela primeira vez na humanidade, não podemos mais vislumbrar um mundo melhor nem sequer mais um slogan como aquele de 2007.

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