Lembranças de uma saudade
Gostaria de começar essa
narrativa como faziam os missivistas até o século passado: “escrevo com estas
maus traçadas linhas, meu amor”. Porém, para mim, seria impossível. Não consigo
mais escrever à mão. Minha letra está terrível, uma tremenda garatuja. Além
disso, antes de completar duas laudas, minha mão começa a doer na altura do
pulso. Então, escrevo-te a partir do “gélido” teclado de um desktop, na
indiferença das teclas, defronte a asséptica tela branca do Word 2013. Não é
mais possível pôr o lápis no papel e correr o risco. Tampouco ter a esperança
de um dia corrermos o risco novamente de um futuro indeterminado a dois. Hoje
você está aí, não sei onde, e eu, aqui destilando solidão e bebendo saudades.
Diante de nós: a implacável intersecção entre o tempo e o espaço do que antes
era uno e hoje é dispersão.
A saudade é a insônia do coração.
Ainda hoje me peguei pensando
naquele dia em que você com desejo, grávida ainda de Frederico, obrigou-me a
roubar manga espada no terreno de Dona Corina em um fim de tarde de domingo. Em
seguida, vi você se lambuzar toda com a manga. Um sorriso de satisfação
espalhava-se pelo seu rosto como uma borboleta. Daí, você deitou aquele olhar
que um cachorro fita o dono quando este regressa para casa. E eu sabia bem o
que você desejava. Ali mesmo, na mesa da cozinha, você foi me conduzindo
delicadamente nos meandros do seu corpo de sete meses e meio de gestação. Eu,
sem jeito, fui sendo guiado ao Éden pelo melhor dos cicerones: minha Eva, você.
Lembra-se daquele dia em que
voltamos da praia com Frederico, acho que ele deveria ter uns três anos, todo
queimado de sol? Parecia uma cenoura. Daí você perguntou a ele: “Dinho, o sol
pode ser a lua?”. Ele respondeu: “Não”. E você replicou: “Porquê?”. Ele:
“Porque o sol é o sol”. Caímos na risada com a resposta de Dinho. Hoje
pergunto-me: de onde você tirou essa pergunta e de onde ele tirou aquela
reposta? Acredito que nunca conseguirei encontrar a resolução. Está nas
estruturas profundas da relação íntima da mãe com o filho. Seria como tentar
buscar a resposta do por que minha mãe limpava meu rosto com a barra de sua
saia. Dizia-me que era para não nascer barba. Será que era só por conta disso?
Das coisas que mais chateavam-me
ao ponto de te admoestar e que me fazem uma falta lancinante: o assento do
vazio abaixado (com dois homens em casa); a toalha molhada na cama; a calcinha
pendurada no box do chuveiro; a tampa da pasta de dentes desenroscada; o leite
fora da geladeira após usá-lo; o ralo do banheiro cheio de cabelos etc.,
entretanto, a ferida que nunca sutura é a saudade da tua presença intempestiva
e calma ao mesmo tempo, como se o depois da chuva antecedesse a própria chuva.
Teu corpo era o meu espírito.
Os meus braços ainda hoje estão
impregnados do teu cheiro.
Não sei o que fazer com esses
textos que há algum tempo venho-lhe escrevendo. Nunca vos enviarei. Penso em
destruí-los. Mas, penso também em centralizá-los e enviá-los para um amigo que
já tem livro de ficção lançado, sem muita repercussão, que poderia ver se tem
lastro literário. Acredito que não irei fazer isso também. Por enquanto, deixá-los-ei
aqui salvos no HD interno e externo. Penso também em digitalizar as cartas que
te escrevi. Estão dispersas nas pastas. Reuni-las e pô-las em ordem cronológica
assim como as cartas digitais porque correio eletrônico (e-mail) soa tão
impessoal. Enquanto isso, escrevo e arquivo para tentar aplacar um pouco da dor
de não podemos arquivar nossas saudades.
Recife,
12 de abril de 2008
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