Lembranças de uma saudade

7.5.15 Mademoiselle Fifi 0 Comentarios




Gostaria de começar essa narrativa como faziam os missivistas até o século passado: “escrevo com estas maus traçadas linhas, meu amor”. Porém, para mim, seria impossível. Não consigo mais escrever à mão. Minha letra está terrível, uma tremenda garatuja. Além disso, antes de completar duas laudas, minha mão começa a doer na altura do pulso. Então, escrevo-te a partir do “gélido” teclado de um desktop, na indiferença das teclas, defronte a asséptica tela branca do Word 2013. Não é mais possível pôr o lápis no papel e correr o risco. Tampouco ter a esperança de um dia corrermos o risco novamente de um futuro indeterminado a dois. Hoje você está aí, não sei onde, e eu, aqui destilando solidão e bebendo saudades. Diante de nós: a implacável intersecção entre o tempo e o espaço do que antes era uno e hoje é dispersão.

A saudade é a insônia do coração.

Ainda hoje me peguei pensando naquele dia em que você com desejo, grávida ainda de Frederico, obrigou-me a roubar manga espada no terreno de Dona Corina em um fim de tarde de domingo. Em seguida, vi você se lambuzar toda com a manga. Um sorriso de satisfação espalhava-se pelo seu rosto como uma borboleta. Daí, você deitou aquele olhar que um cachorro fita o dono quando este regressa para casa. E eu sabia bem o que você desejava. Ali mesmo, na mesa da cozinha, você foi me conduzindo delicadamente nos meandros do seu corpo de sete meses e meio de gestação. Eu, sem jeito, fui sendo guiado ao Éden pelo melhor dos cicerones: minha Eva, você.

Lembra-se daquele dia em que voltamos da praia com Frederico, acho que ele deveria ter uns três anos, todo queimado de sol? Parecia uma cenoura. Daí você perguntou a ele: “Dinho, o sol pode ser a lua?”. Ele respondeu: “Não”. E você replicou: “Porquê?”. Ele: “Porque o sol é o sol”. Caímos na risada com a resposta de Dinho. Hoje pergunto-me: de onde você tirou essa pergunta e de onde ele tirou aquela reposta? Acredito que nunca conseguirei encontrar a resolução. Está nas estruturas profundas da relação íntima da mãe com o filho. Seria como tentar buscar a resposta do por que minha mãe limpava meu rosto com a barra de sua saia. Dizia-me que era para não nascer barba. Será que era só por conta disso?

Das coisas que mais chateavam-me ao ponto de te admoestar e que me fazem uma falta lancinante: o assento do vazio abaixado (com dois homens em casa); a toalha molhada na cama; a calcinha pendurada no box do chuveiro; a tampa da pasta de dentes desenroscada; o leite fora da geladeira após usá-lo; o ralo do banheiro cheio de cabelos etc., entretanto, a ferida que nunca sutura é a saudade da tua presença intempestiva e calma ao mesmo tempo, como se o depois da chuva antecedesse a própria chuva. Teu corpo era o meu espírito.

Os meus braços ainda hoje estão impregnados do teu cheiro.

Não sei o que fazer com esses textos que há algum tempo venho-lhe escrevendo. Nunca vos enviarei. Penso em destruí-los. Mas, penso também em centralizá-los e enviá-los para um amigo que já tem livro de ficção lançado, sem muita repercussão, que poderia ver se tem lastro literário. Acredito que não irei fazer isso também. Por enquanto, deixá-los-ei aqui salvos no HD interno e externo. Penso também em digitalizar as cartas que te escrevi. Estão dispersas nas pastas. Reuni-las e pô-las em ordem cronológica assim como as cartas digitais porque correio eletrônico (e-mail) soa tão impessoal. Enquanto isso, escrevo e arquivo para tentar aplacar um pouco da dor de não podemos arquivar nossas saudades.

                                                                                                                        Recife, 12 de abril de 2008

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