Notas de verão sobre impressões de primavera [São Paulo] V

23.12.14 Cabotino 0 Comentarios


 por Renato K. Silva*

Encerrando mais uma página da série – Notas de verão sobre impressões de primavera – que teve desta vez a cidade de São Paulo como objeto de uma reflexão idiossincrática e com mais “fôlego” na redação em comparação com as Notas do ano passado, redigidas sobre Santiago, capital do Chile. Dentre os temas relatados nas Notas sobre São Paulo, estiveram: culinária, política, os equipamentos culturais, os lugares a agora falarei sobre as pessoas. Algumas impressões que tive sobre os paulistanos nos dias em que permaneci na capital. Andei bastante, conheci também muita gente e, acima de tudo, observei. Como um transeunte qualquer que de fato sou, percorri avenidas, ruas, vielas, bairros,  parques etc. Não costumo andar com câmeras fotográficas, filmadoras ou Smartphone registrando fotos e tirando selfies – meu aparelho de celular inclusive é destituído destes recursos. Gosto de flanar à toa e ao leu pelas ruas, andar sem bússola, mapa ou GPS. Sei que é uma atitude temerária, mas para alguém apaixonado pela rua como eu, não há comedimento – a paixão é imune à avareza e às preocupações de ordem pequeno burguesa. Por fim, espero que no próximo ano possa dar continuidade as Notas de verão sobre impressões de primavera.

PESSOAS

Há quem diga que não há lugares, mas sim pessoas. Este enunciado pressupõe uma subdeterminação dos lugares comparados com as pessoas, ou, o mais grave, uma independência destes sobre aqueles. Discordo. Acredito que há uma relação orgânica entre ambos. As pessoas constroem seus lugares, seus espaços que vão sendo preenchidos pelas diversas camadas que compõe à vida social através de construções culturais, como por exemplo: a opção pelo concreto armado nas edificações, a primazia do automóvel nas ruas, o tabagismo contumaz, o hábito de comer coxinhas, o excesso de pichações espalhadas pela cidade entre outras particularidades que pude perceber nas ruas da capital paulista. Dito isto, traçarei algumas impressões sobre o modus vivendi do paulistano em relação com às construções culturais que moldaram a Pauliceia Desvairada que conheci.

SÃO PAULO: CAPITAL DA SOLIDÃO
Nelson Rodrigues dizia que não há solidão maior do que a companhia de um paulista. Apesar da inflexão típica de Nelson há um quê de verossimilhança no enunciado. Pude perceber que a população da capital é envolvida por um sentimento de reserva. No meu primeiro dia na Pauliceia, tomei um ônibus na Consolação com destino à USP e, uma vez no coletivo, vi uma jovem sentada com o rosto grudado no vidro da janela. Cabelo lilás, magra, de óculos de grau com aro grosso, caucasiana. E uma expressão de tédio em sua face. O polegar direito girando aleatoriamente as setas tridimensionais em touchscreen do Ipod – a tecnologia como recurso para conter a invasão da cidade em nossas percepções –, porém naquele instante este “recurso” estava sendo em vão para ela.

Fazendo um brevemente levantamento das músicas cujo tema é São Paulo, não temos canções idílicas. Vejamos: Trem das onze escrita pelo sambista Adorinan Barbosa retrata um homem que não pode ficar com o seu amor por conta do último trem que parte às onze horas. Porque é filho único e sua mãe não dorme enquanto ele não chega. Apesar de um certo arroubo edipiano da música, podemos perceber a dimensão gigantesca da cidade que traga os nobres sentimentos do rapaz por conta de uma geografia avessa ao contato e à permanência – a cidade é uma topofobia ao Eros.

Já ém Sampa de Caetano Veloso temos um forasteiro que é atravessado com o “alguma coisa acontece...” quando cruza dois logradouros: Ipiranga com a São João. E essa alguma coisa, assim como em Trem das onze, suscita-nos a uma sensação de movimento, fluxo metropolitano em constante ebulição. O trem vai pela superfície deslizando, às margens de suas composições, a paisagem é metamorfose completa. A cidade é grande; e nós estamos insulados. São Paulo produziu uma poesia de “campos e espaços” uma referência que Caetano faz primeiro aos irmão de Campos [Augusto e Haroldo] que junto com Décio Pignatari criaram a Poesia Concreta em 1955. Uma poesia industrial altamente volatilizada com a vanguarda construtivista da Rússia do início do século XX, com a pintura abstrata e com  a linguagem publicitária. Uma poesia fragmentária que absorve à colagem, este recurso caro a estética moderna. Em Sampa o protagonista é acossado pela percepção de uma cidade que é o “avesso, do avesso, do avesso, do avesso” quatro vezes pelo avesso reflete um Narciso contrário ao espelho natal, ou seja, a cidade onde o protagonista de Sampa cresceu [Narciso acha feio o que não é espelho]. Outra dimensão importante da música é a “deselegância discreta de tuas meninas” que vão na contramão do padrão estético das meninas de onde vem o personagem pois “ainda não havia Rita Lee / a tua mais completa tradução”. Rita Lee é a tradução de uma cidade industrial, de uma beleza sóbria, reta, branca e sem curvas. Tive uma percepção análoga em relação às mulheres paulistanas. A “deselegância” não é na ordem de vestuário, mas sim de um ethos corpóreo que o homem médio criado no Nordeste desconhece. No geral, não vemos muitas curvas tampouco o rebolado que vemos nas mulheres às margens do Atlântico.

Tom Zé têm duas canções que dizem muito sobre os efeitos que a cidade imprime nos forasteiros. A primeira São, São Paulo nos diz em alguns versos:

“São oito milhões de habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão”

Há uma orgia de impessoalidade nesta canção o que de fato assustou o personagem que, provavelmente, de onde viera não existia este tipo de relação entre as pessoas “que se agridem cortesmente”. A outra canção do baiano de Irará chama-se Augusta, Angélica e Consolação. Uma música cruel ao visitante que chega a São Paulo e se depara com estas três ruas metaforizadas em mulheres: uma perdulárias [Augusta]; a segunda indiferente [Angélica]; e a terceira é redentora [Consolação].


“Augusta, graças a deus,
Graças a deus,
Entre você e a Angélica
Eu encontrei a Consolação
Que veio olhar por mim
E me deu a mão.
Augusta, que saudade,
Você era vaidosa,
Que saudade,
E gastava o meu dinheiro,
Que saudade,
Com roupas importadas
E outras bobagens.
Angélica, que maldade,
Você sempre me deu bolo,
Que maldade,
E até andava com a roupa,
Que maldade,
Cheirando a consultório médico,
Angélica”.


Uma dilapidação dos parcos recursos do forasteiro ávido por “adentrar” nas entranhas da cidade, “conhecer” todas as ruas [metaforizadas em mulheres como uma reação inconsciente do autor da canção por um par de agruras sofridas na metrópole recém conhecida: cidade e mulheres] e levar “bolos” de uma rua/mulher que de angelical só tem o nome. Porém, o personagem da canção vai “morar na Estação da Luz / porque tava tudo escuro dentro do meu coração”. A “luz” redimiu a personagem. E a luz é a metáfora do Esclarecimento [Iluminismo] da razão triunfante em um mundo de “sombras” [desejos, dissipações, dispersões] de alguém isolado em volta a uma profusão de “sombras”. Apesar da gritante indiferença e crueldade da cidade, há uma “Estação da Luz” para nos restabelecermo-nos, ou seja, para continuar a viver.

Enfim, existem inúmeras canções que não possuem uma áurea esfuziante sobre a Pauliceia Desvairada, para citar alguns versos: “Não existe amor em SP” do rapper Crioulo. Do Racionais MC’s temos: “Essa porra é um campo minado” em Fórmula mágica da paz e também em: “São Paulo, um coração partido por metro quadrado” de Vida loka II. Sem contar também a de Itamar Assumpção, Sampa midnight em três amigos são surpreendidos por três criaturas  que “Brilhavam, não tinham dentes / Traziam cortantes tridentes incandescentes / Nas frontes três chifres” em pleno apagão em uma noite na Av. Paulista. Curioso é percebemos que todos os personagens das canções que elenquei são frutos dos substratos subalternos: imigrantes nordestinos, moradores da periferia e negros.

Utilizei uma metáfora no texto anterior que vem a calhar nesta seção[1], parece que há uma “Serra do Mar” na alma de todo paulista. A Serra do Mar começa no Estado da Bahia e desce até o sul do país, é uma cadeia de montanhas que separa o litoral do planalto central brasileiro. Euclides da Cunha fala dela em Os sertões. Parece que a intimidade de um paulista só é acessível após cruzarmos esta “Serra do Mar”. Como fazer? Não sei. Conheci uma menina na Festa do Santo Forte [uma espécie de bloco carnavalesco fora de época] no Largo de São Francisco. Ela detectou de imediato meu sotaque, daí nos apresentamos e fomos dar o beijo de formalidade nas duas bochechas. Ela só me virou um lado e disse sorrindo em seguida: “Nós somos econômicos até no beijo”.

Entre minhas idas e vindas altas horas da noite pelo bairro da Bela Vista, pude ver inúmeras vezes as pessoas caminhando solitárias com seus cães de estimação. Uma sacola plástica para apanhar os excrementos dos seus pedigrees. Um frio de rachar na madrugada na Praça Roosevelt; na rua Bela Cintra; na rua Herculano de Freitas e as pessoas lá caminhando com os seus cães, em sua grande maioria pequenos por conta da vida em apartamentos, compartilhando as confidências da madrugada com a “mudez” canina.

Este insulamento do paulistano parece um lugar comum visto por quem vem de fora. Porém, entre algumas das maiores produções cinematográficas sobre a cidade: São Paulo S/A [1965] de Luis Sérgio Person e Noite vazia [1964] de Walter Hugo Khouri podemos constatar este alheamento com as coisas e com as pessoas do paulista. No primeiro, protagonizado por Walmor Chagas [que cometeu suicídio no ano passado] temos um funcionário da indústria automotiva que vive uma relação violenta com a cidade. Seu sonho? Desaparecer de São Paulo, entretanto, ele sempre retorna como se fosse um masoquista e a metrópole a sadista. O casamento perfeito. No segundo longa, temos uma dupla de amigos [Mário Benvenutti e Gabriel Tinti], em busca de uma aventura na noite paulistana. Após irem a vários bares atrás de umas mulheres eles acabam encontrando duas garotas de programas [interpretadas por Odete Lara e Norma Benguell] e os dois casais vivem uma noite de revelações dentro de um apartamento. Apesar das constantes tentativas de se dissolverem entre eles, há o estranhamento inerente aos papeis sociais que cada um representa. Não se permitem a uma relação mais estreita e espreitando tudo isso: a cidade em sua gigantesca inascebilidade e impassividade. Nos dois filmes temos um urbe negra - alusão à bílis negra, que segundo a teoria dos humores de Hipócrates é o humor melancólico destilado pelas naturezas reservadas, inclinadas a acedia. E talvez essa bílis negra presente em ambos os filmes seja a forma elementar que move o paulista através de uma cultura fortemente marcada pela solução individual, politicamente, liberal.

SÃO PAULO: CAPITAL DO TABAGISMO
Acho que São Paulo é a cidade que visitei onde encontrei a maior população tabagista, junto com Santiago [talvez seja por conta do frio]. Geralmente o hábito do tabagismo é acompanhado por uma prosa na mesa do bar no fim de tarde ou na boemia à noite, ou também com um café [senti falta dos fiteiros que vendem café a R$ 50 centavos aqui no Recife lá em Sampa] seguido de um papo despretensioso com um amigo, namorada etc. Vi tudo isso em Sampa, mas vi também muita gente fumando sozinha. Às 7h da manhã na Av. Paulista as pessoas fumando sobre o exaustor do metrô, por trás das bancas de revista [o cigarro é algo obsceno que se utiliza escondido] sozinhas, uma concentração alheia, o cigarro parecia uma ordem. Em toda a minha estadia na capital só uma única vez um morador de rua na madrugada da Baixo-Augusta me pediu um cigarro. Agora isso, nos locais com grande tráfego de pessoas havia sempre um repositário de cinzas e guimbas de cigarro, uma espécie de cone em inox amarrado ao chão por um pequeno fio de cabo de aço. Também vi coletores de peolas de cigarro para serem reciclados tanto na USP quanto por trás do Conjunto Nacional [Av. Paulista].

Desconfio que o cigarro seja uma das poucas coisas que consegue “furar” a barreira da “Serra do Mar”.

SÃO PAULO: CAPITAL DA PICHAÇÃO
Logo quando cheguei na cidade deparei-me com uma profusão de pichações espalhadas por toda a parte. Cheguei à capital na madrugada e mesmo assim as pichações não passaram incólumes. São muitas e onipresentes – viadutos, praças, casas, prédios, parques etc. A região da Baixo Augusta, o Vale do Anhangabaú, o Centro Velho etc., São inúmeras que às vezes pensamos que fazem parte da pintura do imóvel. Falo aqui de pichação e não de grafite. Há grafites também pela cidade, porém a pichação é a marca – é a tatuagem no corpo metropolitano, já os grafites são tatuagens de rena.

A necessidade de expressão do ser humano é assunto batido. Nossos ancestrais pintavam nas cavernas os bisões, os alces, seus semelhantes etc., porém naquela época a arte ainda não tinha o estatuto de mimésis, ou seja, ela não representava o real. Ela era mágica. Parece que as pichações da Pauliceia possuem uma certa equivalência. Os pichadores não estão preocupados em representar as coisas do mundo como os grafiteiros, em grande medida, estão. A pichação é expressão pela própria expressão, não quer comunicar nada para ninguém que não seja um iniciado [talvez nossos primitivos pensassem a mesma coisa]. Devemos nos perguntar, porque uma cidade produz este tipo de arte urbana [para mim é arte, sim], a pichação? Não tenho resposta, mas intuo que o afã de estabelecer e inscrever certo traço de subjetividade em uma lógica cada vez mais célere da cidade que muda o tempo inteiro pode ser uma chave interpretativa. Pois, não era isso que Baudelaire se referia sobre a gênese da estética moderna quando analisou as gravuras de Constantin Guys na Paris do século XIX? A busca do eterno no efêmero. Acredito que a pichação seja a tentativa de imprimir uma marca pois alguma coisa acontece... e antes que chegue o trem das onze devemos dizer que estivemos por aqui.

PS.: A nota destoante é que nos dias em que estive em São Paulo não vi um vira-lata na rua, talvez isso diga mais sobre a cidade do que qualquer coisa que falei anteriormente nesta série de escritos.


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Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN






Crédito da primeira fotografia: Egberto Nogueira - Metrô [1998]
Crédito da segunda fotografia: Cia. da Foto - Rua 25 de março.
Crédito da terceira fotografia: Google imagens.

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2014 EM DEZ NARRATIVAS

20.12.14 Cabotino 0 Comentarios


Elencarei dez livros de ficção que marcaram o ano de 2014 para mim. Vendo em retrospecto, acredito que este ano foi o que mais li a literatura de nosso tempo [contemporânea], tanto brasileira quanto estrangeira. Nos anos anteriores, o grosso de minha leitura ficcional encontrava-se nos clássicos da literatura universal, em especial: a alemã, francesa, inglesa, russa e pouca coisa brasileira. Este ano, não foi algo deliberado de maneira sistemática, mas terminei optando por debruçar-me sobre à produção ficcional do século XX e XXI, com ênfase, na transição dos séculos e início do nosso. Optei também por colocar apenas livros de narrativa [romances e novelas] e não contos, livros de crônicas [destaque para o Óbvio ululante de Nelson Rodrigues e O rei da noite de João Ubaldo Ribeiro que me tiraram inúmeras gargalhadas] nem os livros da transição entre 2013 e 2014 como 2666 de Roberto Bolaño, por exemplo, pois começara-o no ano passado, tampouco colocarei livros de poesia. Quiçá, deixarei estes para uma outra lista. A sequência está em ordem cronológica, não de leitura mas de lançamento dos livros.

1 – Morte em Veneza [MANN, Thomas. Ed. Nova Fronteira. Trad. Herbert Caro, 1970]

Há mais de dez anos que não lia um Thomas Mann, o último fora a quase “intransponível” A montanha mágica, um livro que me marcou profundamente pela monumentalidade da obra em todos os sentidos: profundidade filosófica das discussões entre Hans Castorp [protagonista] com o humanista italiano Settembrini e posteriormente com o jesuíta Naphta; o tempo da narrativa, a construção dos capítulos etc. Mas, falando de Morte em Veneza, uma novela que antecede a primeira parte de A montanha mágica, que talvez seja o texto mais autobiográfico do escritor alemão, onde constatamos a paixão platônica [voltada à beleza] do escritor bávaro Aschenbach pelo jovem russo Tadzio em um veraneio na pútrida Veneza. O livro é daqueles textos em que o escritor demonstra total domínio técnico da composição: sabemos que haverá uma morte em Veneza, mas a narrativa começa em Munique e a partir daí a morte vai descortinando-se em sequências intermitentes no caminho de Aschenbach até chegar em Veneza. A decadência e subserviência do escritor alemão diante da beleza da cidade italiana e aos encantos do jovem Tadzio levam-no à ruína em um dos finais mais marcantes da literatura que conheço. Destaque para a prosa empolada mas não entediante do romancista alemão filho de brasileira [Júlia Mann], é de uma beleza única e já estava esquecido como as descrições de Mann são impecáveis, dignas de um memorialista de primeiro time. Aschebach reflete o próprio Mann como falei acima. Há uma mistura de Apolo [foro público] com Dionísio [foro íntimo] tanto em um quanto em outro. Mann nutriu também uma paixão homoafetiva por um jovem assim como o seu personagem acometido pelos açoites de Eros e Dionísio [o sangue latino escorria nas veias tanto de Mann quanto de Aschebach], mas tudo isso era sonegado publicamente. Já o cólera veneziano é infenso às veleidades do espírito humano e Mann pinta de maneira magistral como a doença passional do protagonista pelo belo Tadzio reflete também a beleza de uma cidade que morre por dentro em todo o verão, o siroco é implacável. A fétida Veneza é a beleza secular de uma cidade presente no corpo de um menino [Tadzio] e para um espírito susceptível ao belo como o de Aschebach, vale encarar a morte há muito anunciada.

2 – Recordações do escrivão Isaías Caminha [BARRETO, Lima. Há inúmeras edições disponíveis no mercado]

De Lima Barreto só havia lido Triste fim de Policarpo Quaresma e alguns contos de maneira espaçada. Isaías Caminha segue a tradição dos romances escritos por escritores marginalizados na própria periferia do capitalismo, como Dostoievski na Rússia [epiléptico, viciado em jogo e tido como um escritor vulgar no domínio do seu próprio idioma]. No caso de Lima, o escritor mulato que morreu em um hospício tomado pelo vício do álcool, ele levanta no romance em questão, um “quadro” muito autobiográfico, a trajetória do jovem Isaías [mulato] altamente talentoso para as coisas do espírito [humanidades] de sua cidade natal, para a capital federal, o Rio de Janeiro da virada do século XIX para o XX. Uma vez na capital, Isaías vê a possibilidade de ganhar uma sinecura ser gorada porque o seu benfeitor no Rio [um deputado que devia favores políticos a um coronel da cidade de Isaías cujo tio foi pedir o emprego para o sobrinho que investira destino na capital] lhe vira às costas. A partir daí o jovem Isaías começa a perambular na pior pelas ruas da capital totalmente desamparado. Encontra-se com jovens revolucionários – niilistas, anarquistas, comunistas e outros ismos – cujas “ideias fora do lugar” destoavam da paisagem tropical da forçada Belle Époque carioca forjada por Pereira Passos [o Haussmann dos trópicos]. Neste sentido, Isaías Caminha lembra muito o romance do russo Ivan Turgueniev, Pais e filhos onde as ideias de Barazov [niilistas] não encontravam lugar na Rússia do século XIX. Após passar por maus bocados no Rio, Isaías encontra emprego em um jornal recém instituído, O Globo e trabalha como contínuo no periódico e vê com o passar do tempo os seus sonhos grandiloquentes serem gorados por esta instituição poderosa e hipócrita, o jornal. Isaías só terá acensão no jornal quando um dos redatores se mata. A partir daí ele começa a fazer pequenas reportagens in loco e em seguida ganha matérias com mais "fôlego" para desespero e inveja dos demais redatores que não admitiam um ex-contínuo mulato equiparar-se com seus ofícios. Isaías caí nas graças do dono do O Globo, Dr. Loberant que o inicia na vida boemia carioca. Porém, Isaías encontra-se já embotado com tudo o que o Rio lhe proporcionou em seus sonhos paroquias ainda em sua cidade natal, e depois frustrados na capital. Em suma, é uma narrativa muito autobiográfica e vale a leitura tanto para ver o Rio da transição dos séculos quanto para ver de perto do desenvolvimento de uma atividade altamente poderosa no seio da sociedade brasileira, a impressa.

3 – O ano da morte de Ricardo Reis [SARAMAGO, José. Ed. Companhia das Letras, 1988]

Foi o meu terceiro Saramago, antes havia lido A jangada de pedra e O conto da Ilha Desconhecida. O referido romance é uma ficção dentro de outra ficção, o prosador português conseguiu jogar o heterônimo mais hermético de Fernando Pessoa, Ricardo Reis em uma aventura de volta a Portugal no ano de 1935 vindo do Brasil [destino atestado pelo próprio Pessoa na pequena biografia que escrevera dos seus heterônimos], ano da morte do poeta lisboeta autor de Mensagem. A partir daí, Reis é assombrado pelo autor de Tabacaria nas ruas de Lisboa. Em meio a tudo isso, uma paixão por uma camareira de hotel, Lídia – análoga a diva inspiradora do próprio poeta neo-clássico, Reis. Vale destacar toda a convulsão europeia do período nas vésperas da segunda Guerra Mundial, o levante nazifascista na Espanha do General Francisco Franco que tem seus conterrâneos migrando em massa para Portugal. Sem contar as voltas que o próprio Reis dá na espiral Lisboa e em Portugal quando vai visitar a cidade de Fátima [uma passagem marcante no romance], com seus milhares de romeiros em busca de milagres, por ocasião de uma busca desesperada pela católica Lídia cujo irmão é um marinheiro português insurrecto ao status quo do seu país. Destaque para a pesquisa histórica que Saramago faz dos períodos e da relação do próprio heterônimo [criatura] Reis com o seu ortônimo [criador] Fernando Pessoa, uma relação [pasmem!] jocosa. Pessoa conhece todos os recônditos da alma de Reis e cada vez menos ele volta a surgir para conversar com sua criatura, um sinal de que o tempo dos dois está se esgotando na Terra. O curioso é que o criador [Pessoa] morto aparenta mais vida e leveza do que a criatura viva [Reis]. Saramago merece os elogios por amarrar uma metaficção como esta, senti falta de Álvaro de Campos e gostaria de ver mais semi-heterônimos presentes como por exemplo, Bernardo Soares autor do Livro do desassossego acho que estes dois últimos iriam dar uma "cor" diferente à narrativa.

4 – Trapo [TEZZA, Cristóvão. Ed. Brasiliense, 1988]

Foi o meu primeiro romance que li de Tezza. O escritor santa-catarinense radicado em Curitiba demonstra um total domínio da técnica romanesca. A estrutura modular da obra é o seu ponto forte. O livro narra o suicídio de um jovem poeta curitibano, Paulo [Trapo] que trabalhavam como publicitário e vivia na pensão de Dona Isolda. Esta senhora encontra no quarto do seu finado inquilino vários volumes de textos datilografados e manuscritos e, antes que a polícia chegue junto com pai de Trapo, Fernando que entrega dinheiro para Isolda não espalhar informações da vida íntima do filho para não expor a família, ela leva a maçaroca de papel para o professor de língua portuguesa [viúvo e aposentado] Manuel que mora no final de sua rua. Os textos de Trapo – em sua maioria cartas dedicadas a Rosana, seu amor – é uma profusão de vários formatos e estilos literários que refletiam o espírito de época do Brasil recém saído da ditadura e do desbunde [vide que Paulo lembra muito um outro Paulo famoso poeta curitibano, Leminski e toda sua universalidade sui generis]. O ponto forte do livro é a relação que os dois conhecidos começam a estabelecer a partir do espólio de Trapo, o professor Manuel e a estalajadeira Dona Isolda. Tezza tece fio por fio o início da relação do viúvo com Isolda, são páginas sutis em que as camadas de complexidade vão justapondo-se uma a uma até o final em que vemos a construção total [à maneira de Manuel] da narrativa e de uma história de amor recém construída.

 5 – O teatro de Sabbath [ROTH, Philip. Ed Companhia das Letras. Trad. Rubens Figueiredo, 1997]

De todos os livros que li do escritor norte americano, Philip Roth este em questão está sendo insuperável. Roth com seu alter-ego em franca decadência, Morris Sabbath conseguiu se superar em toda sua escrita pornográfica [superou O complexo de Portnoy neste quesito]; ultrapassou o cinismo [presente especialmente em Mark Zuckerman em Casei com um comunista e O fantasma sai de cena]; transpôs o sofrimento [presente em David Kepesh em O animal agonizante]. Em uma palavra, O teatro de Sabbath é para mim o ponto culminante da prosa de P. Roth. O romance narra as desaventuras do titereiro e ex-professor de dramaturgia para fantoches de uma pequena cidade do norte dos EUA [Madamascar Fall’s] demitido por assédio sexual em uma de suas ex-alunas, Morris [Mickey] Sabbath. Desempregado e vivendo às espessas da esposa professora e ex-alcoólatra ele mantém uma relação sexual há anos com uma mulher casada, descendente de gregos e dona de uma pousada, Drenka. O grau de perversão que esta relação tem chega às raias do absurdo. Um e outro realizam todas as taras possíveis e impossíveis. Enquanto Mickey, 64 anos, começa a ter a companhia dos mortos em sua vida, irmão, pai, mãe, amigos e a sua grande amante. Ele recebe um telefonema de Nova York informando que mais um dos seus amigos morrera. Daí ele parte para a grande cidade após 30 anos de ausência. Na cidade, fica hospedado na casa do amigo que lhe telefonou. Neste ínterim, atentem para a composição que Roth traça de sua geração em meio a cidade em transformação constante. Em seguida, Michey compra crack e recita no Shakespeare no metrô; pede esmola pela cidade e furta o amigo em sua casa após dar em cima da esposa dentista. A cena mais marcante para mim é quando ele vai visitar o túmulo dos pais. E a coragem que só os grandes romancistas tem quando o personagem Sabbath destila toda a sua nipofobia por responsabilizarem os japoneses pela morte do irmão mais velho na guerra – são palavras contundentes.

6 – Presença de mulher [BELLOW, Saul. Ed. Rocco. Trad. Lia Wyler, 1999]

Segundo livro que leio do escritor e antropólogo canadense e radicado nos EUA, Saul Below. Descendente de judeus, assim como Philip Roth, Susan Sontag, Woody Allen e outros tantos judeus que transformaram a cultura norte-americana do século XX, Bellow talvez seja o escritor mais promissor de sua geração, seguido por Roth que ainda encontra-se vivo. O primeiro romance que li de Bellow foi Herzog e tanto este quanto Presença de mulher [uma pequena novela] remete a uma dimensão muito autobiográfica do romancista, cujos temas caros são: a análise arguta da sociedade burguesa especialmente de Chicago, a relação do homem com o seu maior pesadelo, a mulher moderna e a loucura inerente à vida metropolitana. Na novela em destaque, temos um pequeno retrato de Harry Trellman um judeu com traços orientais [para uns chinês e para outros, japonês] que comercializa antiguidades de maneira pouco ortodoxa [trabalho escuso na Nicarágua é um dos seus negócios arrolados as suas antiguidades], além de ser um homem muito cultivado e um observador atento dos assuntos que envolvem Chicago. Ele conhece um multibilionário judeu [Adletsky] que vive em Chicago com seus mais de oitenta anos, porém lúcido e ávido para despertar uma recém descoberta, o interesse nas pequenas coisas da vida. Harry entra nas graças do velho Adletsky que, ao saber do seu interesse por Amy, uma decoradora de interiores, resolve explorar a fraqueza de Harry por esta mulher que há mais de 40 anos atormente sua vida através de uma paixão tenra e perene. A partir daí, os encontros de Harry com Amy são cada vez mais frequente por conta dos negócios de Adletsky. Merece destaque as passagens que Bellow traça sobre as particularidades femininas, desde uma prosaica chuveirada a um escândalo sexual. Nesta seara, o velho Bellow é imbatível – a mulher moderna é uma das réguas e compassos de sua prosa.

7 – Desonra [COETZEE, J. M. Ed. Companhia das Letras. Trad. José Rubens Siqueira, 2000]

O primeiro romance que leio do autor sul africano e sua prosa concisa, linear e agressiva traz um painel da África do Sul pós-Apartheid. O protagonista é um professor de língua inglesa na faculdade técnica da cidade do Cabo, David [50 anos e 25 dedicados à docência, dois casamentos, dois divórcios, três filhos publicados e uma filha já adulta que mora só em um sítio no interior do país] é acusado de assédio sexual por uma ex-aluna. Demitido por justa causa e sem nenhum direito empregatício, David parte para visitar a filha e mora com ela por algum tempo. Sua filha lésbica toca os negócios de uma pequena propriedade rural. Tem um canil onde toma conta dos cães dos vizinhos que viajam no verão e tem também uma pequena horta de orgânicos que vende em uma feira todos os sábados. Após toda a expiação do processo demicional por assédio e a respectiva “poluição” que uma ação desta natureza move para quem está sob ela, David busca “repouso” na casa da filha para terminar o um livro sobre o poeta inglês Byron. Entretanto, o “repouso” é assombrado pelos espectros étnicos de uma classe social expropriada historicamente de todos os seus direitos civis, os negros sul-africanos. A narrativa é forte e escrita à “cortes de estilete”. Apesar dos 50 anos, David é um homem fora do seu tempo. Uma vida dedicada às letras o deixou fora dos destinos do mundo e, em especial, do seu próprio país. Sua inapetência em relação à cultura local é tamanha que ele não entende com uma sociedade para ele “civilizada” não consegue permanecer erigida sobre os pilares das instituições legais. Um mundo pós-Apartheid visita David e sua filha, o resultado é assustador. Coetzee ensina como não ser condescendente com o leitor, com o seu país, continente, mundo. Em uma palavra, com a própria ficção tecida por ele.

8 – O senhor Brecht [TAVARES, Gonçalo. M. Ed. Casa da Palavra, 2004]

Segunda livro do autor Angolano radicado em Portugal, Gonçalo M. Tavares. O primeiro fora A máquina de Joseph Walser e depois destas duas leituras cheguei a uma conclusão: Tavares é um dos renovadores da prosa em língua portuguesa. Com um ritmo de escrita frenético, Tavares já lançou mais de 31 livros desde 2001 e abocanhou diversos prêmios mundo afora. Em O senhor Brecht ele mistura vários gêneros literários: fábulas, pequenas histórias, causos. Com pitadas de Esopo amalgamados com as construções brechtianas de sua fase de descoberta do Oriente, o escritor angolano traz pequenas histórias contadas pelo Senhor Brecht em um pequeno auditório. Porém, diferente de Esopo as “fábulas” não têm uma moral da história tampouco são redentoras. As pequenas histórias traçam à universalidade do gênero humano que não se cansa de produzir e reproduzir barbárie como nos fala Walter Benjamin “todo documento de civilização é um documento de barbárie”. Prestem atenção como o Narrador é uma figura tão escassa neste nosso mundo capitalista cada vez mais pobre de experiência narrativa ao final do livro. É uma obra pequena no tamanho; mas gigantesca no que suscita de debates e reflexões a partir de um gênero quase “morto”, a fábula e de um escritor que precisa ser revisitado constantemente, Brecht. Neste texto, Gonçalo deita sua homenagem ao dramaturgo e poeta alemão e a faz de maneira condizente ao homenageado.

9 – Travessuras da Menina Má [VARGAS LLOSA, Mário. Ed. Alfaguara. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch, 2006]

Minha primeira incursão ao universo do escritor peruano foi tranquila. Llosa escreve este romance de uma maneira leve, direta e sem floreios. Estes ele deixa para a Menina Má [chilenita e outros epítetos que vão surgindo para ela ao longo da narrativa]. O autor de Guerra ao fim do mundo traz a história de Ricardo Somocurcio ainda criança em seu bairro, Miraflores incrustado na capital peruana, Lima. A partir daí, há o desenrolar da paixão feérica de Ricardo pela Menina Má que muda-se do bairro e toma destino ignorado para “Ricardito” [coisinha à toa e outras alcunhas que Ricardo vai ganhando no decorrer da narrativa]. Em seguida, Ricardo já um jovem muda-se para Paris no início dos anos 1950 [seu grande sonho era morar na capital francesa] e começa a desenvolver pequenos trabalhos de tradução para o espanhol à serviço da UNESCO. Em um dos contatos que tem com um conterrâneo, este está responsável por arregimentar jovens para a causa das guerrilhas que assaltaram a América Latina no início da segunda metade do século XX. Ricardo foi imbuído por este amigo a dar guarida a um grupo de jovens aspirantes a guerrilheiros em Paris. Em meio a este grupo surge a Menina Má. Subsequentemente os dois começam a sair juntos e tem a primeira relação sexual. A vida de ambos torna-se um imbróglio amoroso e de má-fé por parte dela que irá durar décadas. Destaque para as descrições de Llosa sobre o Maio de 1968 em Paris e em Londres, pois Ricardo começa a trabalhar como tradutor e, por conseguinte, começa a rodar por toda a Europa a trabalho. Percebe-se um tom autobiográfico neste personagem, pois Llosa escreve com detalhes “empíricos” as experiências tanto na Londres do desbunde dos hippies de 1968 quanto na politizada Paris no mesmo ano. Outro ponto forte é a caracterização e o modus vivendi da profissão de tradutor que Llosa nos brinda. Percebe-se uma pesquisa acurada deste ofício na economia interna do romance. Sem contar, a convulsão europeia dos anos 1960 e também na América Latina, pois o personagem de Ricardo volta a Lima depois dos anos da ditadura e reencontra o seu país em uma enorme clivagem política com um destino, como as demais nações do continente, indeterminado.

10 - O sonâmbulo amador [PASSOS, José Luiz. Ed. Alfaguara, 2012]

Primeiro romance do sociólogo pernambucano e professor de literatura brasileira na Universidade da Califórnia, José Luiz Passos. O romance é um “OVNI” que pairou no cenário lusófono para mim. Ele narra a vida de um trabalhador de uma indústria têxtil da zona da mata pernambucana nos anos 1960 acossado por uma profunda confusão psíquica, Jurandir. Escrito de forma modular com idas e vindas de um personagem perdido entre o fantasma do filho morto, do casamento em ruínas, da jovem amante, dos negócios da fábrica, da amizade com o filho do dono da empresa, do acidente que deixou-lhe marcas até o presente e da descida para a capital e a hospedagem em um estabelecimento psiquiátrico na Cidade Alta em Olinda. Além disso, há o espectro muito vivo do Golpe Civil Militar recém instituído no Brasil. Este “OVNI” reflete e refrata os anseios, as aspirações, o passado, os sonhos de um personagem em plena indeterminação assim como o futuro de sua saúde psíquica e os destino do Brasil no momento. O grande mérito de Passos foi o de conduzir uma narrativa escrita em primeira pessoa cuja voz [vozes] vinha de diversas regiões e, todas elas, nebulosas. Um personagem cujo único filete de “coerência” e estabilidade psíquica lhe era dado pelo mundo onírico dos sonhos. Lá da “Cidade Alta” [podemos trazer uma referência ao sanatório de Berghoff na A montanha mágica], Jurandir tentava enxergar a “capital” em meio as “brumas” de uma paisagem interior e exterior em plena ebulição onde a opacidade dá a tônica geral.




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Na Caxito Platz

18.12.14 Unknown 0 Comentarios


Dedicado a Bob pra ele relaxar o bigode/


   Já pensasse, diga aí! Tava já percebendo ele meio caído, jogado no canto. Fui lá conversar com ele para saber o que estava havendo: - Tô aqui nessa maresia da bubônica! Imaginem vocês, eu, todo errado de tá ali, fazia uns quase 15 anos que eu não via o bicho, mas fui lá e perguntei a ele qual era a de menos.


Interlúdio:

                                                   David Bowie - Where Are We Now?

    O bicho tava mago que dava pra enxergar as costelas de longe. Mas quando a gente chegava perto dele percebia que sua magreza na verdade era sinal de boa saúde. Imaginem, com quase 85 anos de idade, e dois AVC's nas costas, ele sentou num banquinho da Caxito Platz e, sem fazer nenhuma muganga , acendeu um pacaia na pilha do milho e deu dois tragos numa botija de vinho. Seu nome é fastio, pois faz tem que ele não come nada!







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Coloridos pelo sol

17.12.14 Cabotino 0 Comentarios


Domingo de sol inclemente na praia de Maragogi, litoral norte alagoano. O menino Sebastião de tão branco estreitava os olhos castanhos claros para enxergar melhor em meio à canícula. Seus olhos ganhavam contornos claros sobre a intensa luminosidade. Tinha seus doze anos, recém completos no último dezembro.

Mês de janeiro, férias e verão.

Era um domingo de pique nique na praia alagoana. Nele estavam toda uma criançada, mulheres de várias idades. Solteiras. Casadas. Enroladas. E homens em situação análoga às mulheres.

8h43 o ônibus do pique nique chegou à praia com seus passageiros municiados com: isopores, garrafas térmicas, cervejas, cachaças, refrigerantes, marmitas com frango frito, arroz carioca, farofa, feijão verde, bronzeadores, filtros solar, óculos escuros, chapéus, cangas, sungas, bermudas, maiôs e biquínis cavados.

Entre todas as mulheres, a que tocava o “terror” nas hipófises masculinas e no ciúme e, digamos, inveja feminina era Fia. Corruptela de Francisca. Uma mulher com seus 27 anos e dona de uma beleza renascentista. Daquelas mulheres formadas na pré-histeria das academias que converteram os seios pequenos, os quadris bojudos e as pernas naturalmente torneadas em “zagueiras” musculosas de programa de Reality Show na tevê. Tinha uma pele trigueira onde os pelos do braço e das pernas despontavam aloirados pela fina camada de água oxigenada que passava neles. Seu cabelo era de um encaracolado que descia até depois do pescoço, quando escovados, chegavam à altura da bacia. Seus olhos eram de um castanho cor de cobre acentuados pelas sobrancelhas semi-arqueadas que davam-lhe um tom de tristeza penetrante como os de Norman Bengell em Noite vazia.

Fia que até há pouco tempo guardava os cuidados do menino Sebastião quando a mãe deste lhe pagou o primeiro “salário” para cuidar do menino com os seus três anos de idade. A mãe ia trabalhar enquanto Fia preparava as refeições de Sebastião, lavava seus pratos, suas roupas... Enfim, fazia todo o serviço doméstico. Agora, aos 12 anos, Sebastião se virava sozinho em sua casa. Sentia-se ubiquamente solitário em sua residência, alguma coisa oprimia o seu peito. Um sentimento de ausência lhe preenchia o coração e os espaços da galopante puberdade. Sempre fora um menino muito reservado. As pessoas do bairro estranhavam à reserva do menino. Achavam-no afetado. Filho único de mãe solteira e sendo criado por outra mulher durante o dia. Diziam que "as duas 'estragaram' o menino com excesso de mimos e privilégios" no seio doméstico.

Lá para às 10h quando o sol aproximava-se aos 90° da cumeeira do céu. Fia chama Sebastião para perto dela. Ao aproximar-se, o menino descobre que Fia deseja que ele aplique óleo bronzeador em seu corpo.

Sebastião com sua sunga cor azul marinho envolta em uma paisagem toda branca onde começava a despontar os primeiros pelos. Pega a bisnaga de bronzeador das mãos de Fia. O menino besunta suas mãos com o óleo bronzeador. Enquanto Fia fica de bruços para receber a camada de óleo nas costas, braços, pernas, ombro e nuca. Sebastião monta-se no corpo já colorido de Fia que, após receber a primeira camada do líquido viscoso, ela retira o laço do biquíni superior para pegar um pouco de bronze sob a pele anteriormente coberta pelo tecido. Com isso, dá para o menino ver a polpa lateral dos seios dela enquanto espalha a matéria grudenta sobre as costelas.

Em seguida, Sebastião sente um volume crescer dentro da sunga e antes que Fia possa senti-lo também, ele levanta-se argumentando que já terminou. Daí Fia responde, "terminou nadinha. Falta agora a parte da frente das pernas". Ela vira-se e queda-se de pernas juntas para receber o óleo bronzeador. Com os joelhos enterrados na areia e disfarçando o volume na região pélvica encurvando-se para a frente, Sebastião começa a executar novamente a tarefa. Besunta as palmas da mão. E aos poucos vai subindo com o óleo para cima e para baixo, espalhando-o por toda a superfície macia. A cor branca do líquido contrastava com a cor matizada pela mestiçagem e já acentuada pelos tons cálidos provenientes do sol. Ao chegar à região da pélvis com aquelas curvas que só a natureza é capaz de talhar, um olor quente com reminiscências de canela sobe, auxiliado pela aragem marítima, ao nariz do menino. Este cheiro, levou-o a largar a bisnaga e sair correndo em disparada para o mar.  

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Notas de verão sobre impressões de primavera [São Paulo] IV

12.12.14 Cabotino 0 Comentarios


ESPAÇOS

O precesso de ocupação dos espaços na capital paulista se deu a partir de uma longa série de guetificação das populações que migraram ou imigraram para lá. Diferente das cidades litorâneas, há uma “Serra do mar” n’alma de cada paulista. E, isso está presente na formação dos guetos em cada bairro. Uma “barreira” quase intransponível que se reflete nas escolhas dos lugares para se viver. Estes guetos são acentuados por conta da ausência de praia, acredito. Como não há praia; não há mistura. Como não há carnaval; não há diluição da economia libidinal que se manifesta, especialmente, na música. Parece mecânico, mas vejam o exemplo de cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Recife onde a praia é um catalisador de experiências coletivas que, muitas vezes, são espelhadas nas manifestações culturais destas cidades: o samba, o funk, o axé, o arrocha, o frevo, o coco, respectivamente, só para ficarmos no campo da música, são manifestações eminentemente metropolitanas que se diluem ora na praia ou na região do cais do porto. E antes de tudo, no carnaval – o carnaval é o "mar em pura ressaca" do banzo de além Atlântico de uma “senzala” que não reconhece a “casa grande”, porque o carnaval e o mar são infensos às demarcações arbitrárias do espaço. 

Antes de começar a falar sobre os espaços que atraíram minha atenção na Pauliceia. Destacarei os lugares que fiquei afim de falar. Da lista, faltaram vários locais que frequentei mas que não tive vontade de mencioná-los nesta seção, por exemplo: A rua 25 de março, o Mercado Municipal, a Faria Lima, o bairro do Pacaembú, a Vila Madalena e outros mais.

CRACOLÂNDIA
No dia 18 de novembro, início de tarde, visite à região da Cracolândia [em São Paulo até o consumo de drogas é guetificado], pois acredito que esta área deveria entrar nos mapas da cidade como atração turística, não por ser mais um fetiche turístico pela desgraça alheia, mas para mostrar como uma cidade produz e reproduz uma lógica megalomaníaca que reflete-se em tudo, inclusive nas drogas. Uma visita sem os estandartes das empresas turísticas que comumente alardeiam as grandes obras, a arquitetura, a gastronomia etc. Sem moralismo, ver a questão do crack como um problema de saúde pública e ir lá “desarmado” dos ideais burguês do “bem sucedido”. Aconselho a quem for a São Paulo ir na Cracolândia, será uma experiência desmistificadora.

Cruzei a Sala São Paulo de Música, rumo à Praça Júlio Prestes, e na esquina já senti o cheiro da Cracolândia. Um cheiro ocre que mistura um odor de coisa mofada com algo velho. A região tem uma presença significativa do Estado. Falo aqui não só do braço armado, a polícia. Há um micro-ônibus da polícia funcionando 24h por dia equipado com um gerador de energia elétrica, vários garrafões de água mineral que são viabilizados para os noias [como são conhecidos os usuários de crack], além de uma faixa escrita “crack, você pode vencer”. Pude observar também uma série de residentes médicos que prestam serviço na região. O trânsito de noiados para lá e para cá é frenético, eles [os noias] chamam esta modalidade nômade de “fluxo”. Topei com dezenas de noiados e nenhum esboçou uma reação para cima de mim, talvez por não ter o ethos tradicional do turista – não sou caucasiano, não uso tênis Nike, não ando com câmera fotográfica etc – sou mais um rosto brasileiro na multidão. A Cracolândia fica no Bairro do Bom Retiro, uma região com bastante comércio e com uma forte imigração coreana, judia e mais recentemente boliviana.

BRÁS
A região do Brás é sui generis, não vi nada parecido em toda São Paulo que conheci, até a 25 de março não se compara, esta é a “Oscar Freire” comparada àquela. Assim que cheguei à Estação do Brás, comprei dez pães de queixo e fui comendo-os. Era uma tarde de sábado ensolarada, um sol que iluminava mas não esquentava. O termômetro do Largo da Concórdia, no Brás, registrava 20°, entretanto batia um vento frio que, aquela altura, já fazia das crianças bolivianas/brasileiras que brincavam no Largo, miniaturas agasalhadas que mais pareciam esquimós morenos. Fiquei olhando-as de longe, sem imaginar o que o futuro lhes guardava e fumando meu cigarro calmamente. Fui contaminado pela alegria daquele casal infantil que brincava em meio aos bancos quebrados, os jardins mal cuidados e os papelões espalhados no chão do Largo, a cama de muitos moradores noturnos da região. 

Nunca fui em La Paz ou Santa Cruz de La Sierra, mas o Brás é uma sinédoque [figura de linguagem que toma uma parte pelo todo] da Bolívia. É uma região de comércio popular eminentemente textil. Há uma infinidade de bolivianos vendendo outra infinidade de roupas de todas as cores, tamanhos, modelos, marcas [piratas] etc. Vi também brasileiros nesta atividade informal, mas os conterrâneos de Evo Morales eram em maior número. Vi vários casais de bolivianos andando juntos, as mulheres com alguns trajes que remetiam à cultura andina, já os homens em sua maioria, estavam paramentados com os símbolos sociais de uma cultura [ou de um gênero] que quer ser inserido na grande ordem capitalista da cidade: camisas da Tommy Hillfiger, Ralph Lauren, cordões de prata, bonés de cantores de Rap, tênis Nike, Puma ou Adidas. Saí do Brás após comprar algumas cuecas e meias em uma loja, estava precisando com certa urgência destes artigos.

LIBERDADE
Tomei o metrô do Brás para a Liberdade e fiquei impressionado com o tamanho da Estação do Brás, não havia prestado atenção antes. Há doze plataformas de embarque e desembarque que lhe leva a uma variedade de destinos. Tomei o trem [os paulistas chamam de trem tudo que vai pela superfície, e de metrô tudo que vai subterraneamente] com destino Estação da Luz. Do Brás para Luz vi a paisagem aproximando-se e distanciando-se pela janela do trem. Na Luz peguei o metrô para Liberdade. 

Há uma compressão do tempo e do espaço nas viagens de metrô na cidade de São Paulo, por isso, meu estranhamento foi gritante quando cheguei na Liberdade. Não vi a paisagem mudar como a tinha visto no trem. O trem é avesso a apatia embotadora do metrô, haja vista, naquele a noção de tempo e espaço é mais lenta, gradual e sensitiva. No metrô, o movimento é anônimo, silencioso, sem cores e sem nomes inerentes à profusão célere das imagens que passam como um filme pela janela do trem. O trem é a imagem dos forasteiros, o espaço de atração ou repulsão dos que vem de fora, topos  tão caro à literatura e ao cinema.

O bairro da Liberdade é a antítese do Brás.

No sábado, fim de tarde, estava acontecendo uma feira de comidas típicas do Japão na Praça da Liberdade logo que você saí da Estação pela escada rolante. Estavam desarmando as barracas e em seguida lavando o chão onde antes estavam os quiosques, em plena crise hídrica da cidade, uma prova de que a cultura não responde imediatamente as circunstâncias sociais. As ruas são limpas, praticamente não há comércio ambulante, não há barraquinhas de comidas rápidas, os semáforos são sinalizados com caracteres nipônicos. Sério, me senti em um filme de Ozu na fase em cores. Na rua Galvão Bueno, tomei um susto, um jardim oriental incrustado no meio da rua. Japoneses ou descendentes saindo dos supermercados com uma série de sacolas repletas de produtos da culinária nipônica. Na mesma rua, totalmente decorada com iluminarias japonesas, há o Hospital Bandeirantes com sua arquitetura art déco cuja fachada é adornada com os traços da arquitetura japonesa, uma mistura kitsch que traduz todo o bairro. Em seguida, voltei para a Praça da Liberdade, bebi uma cerveja [estupidamente gelada] e fiquei olhando a paisagem do bairro enquanto tomava algumas notas. Na mesa ao lado da minha, uma turma estava querendo fumar um “baseado”, daí um dos presentes falou: “aqui na Liberdade nem tudo é permitido” e sorriu em seguida.

LARGO DE SÃO FRANCISCO
Início de noite no mesmo sábado, saí da Liberdade e fui andando até a Sé, contornei à Catedral e rumei para o Largo de São Francisco [onde há uma das primeiras Faculdades de Direito do Brasil]. O Centro de São Paulo é uma página à parte. Como todo o Centro das grandes cidades do Brasil, está marginalizado – o Centro marginalizado é uma tragédia tipicamente brasileira.

No Largo, encontrei uma concentração de pessoas que chamou-me atenção. Como adoro a rua e adoro aglomeração, resolvi chegar-me próximo dela. Descobri que tratava-se de uma “festa” organizada por um Coletivo chamado Santo Forte que galvaniza as noites paulistas geralmente em lugares privados com ingressos em torno de R$ 50. Porém, na ocasião, eles juntaram-se com outros coletivos e ganharam às ruas do Centro com um carro de som e um DJ tocando um repertório que ia de Clara Nunes, Gil, Caetano, Otto, Jorge Ben etc., a “festa” fazia uma homenagem à cultura afro-descendente. Pensei: “tocando Clara Nunes?” depois relativizei por conta da histórica ausência de uma matriz afro-descendente nos domínios culturais de maneira geral. Há sim uma matriz afro-descendente, porém ela ficou marginalizada nas periferias [desculpem-me o pleonasmo] e tem sua manifestação mais gritante no Rap. 

Entre as iniciativas da “festa”, era além de galvanizar o público para frequentar mais o Centro, era sensibilizar este público [cuja maioria era proveniente da classe média paulista] para a causa dos trabalhadores sem teto que, no momento, estavam ocupandos vários prédios ociosos na região. Algumas palavras nesta direção foram proferidas do alto do carro de som.

De repente, tocou o frevo Banho de cheiro na voz de Elba Ramalho e qual não foi meu estarrecimento quando vi uma porção de gente dançando o ritmo freneticametne. Havia uma mulher fantasiada de índia fazendo algumas evoluções do frevo: tesoura, chutes, locomotiva etc. Senti-me um colonizador cultural. Saí da “festa” por volta das três da manhã, perambulei com mais uma turma que conheci na ocasião, um grupo de jovens cineastas paulistas que me acolheram muito bem, fomos comer aquela altura na Lanchonete Estadão. 

Em seguida, peguei a Consolação até a Praça Roosevelt e subi à Augusta nos embalos do sábado à noite.

RUA AUGUSTA – Bela Vista e Jardins

A rua Augusta em seu arco de concreto e piche traduz uma cidade movida a movimento. Nos dias que passei em São Paulo, atravessei-a inúmeras vezes. Não frequentei nenhuma boate, discoteca casa noturna ou coisa que o valha, sou avesso a pagar ingressos para entrar em um estabelecimento, primeiro porque geralmente não tenho grana para este fim e, segundo, amo a rua e faço de tudo para não sair dela. 

A especulação imobiliária está tomando conta da Rua Augusta, pela sua proximidade com a Paulista e suas instituições financeiras, pela proximidade do Hospital Sírio Libanês e outros empreendimentos que minam a boemia e suas atividades correlatas. Desconfio que daqui a alguns anos a rua famosa por sua boemia sonâmbula, não será a sombra do que fora. Antes deste diagnóstico apocalíptico, vale muito a pena ficar subindo e descendo a sua leve inclinação topológica, porém pesada em seu desejo de desejar o próprio desejo.

Subi à Augusta pela Bela Vista, atravessei-a pela Paulista e desemboquei nos Jardins. Em seguida, dobrei à direita pela Oscar Freire. E, súbito, parecia que estava em um cenário de Beverly Hills ou Miami. Uma alameda de lojas de griffes vigiada por um batalhão de seguranças privados vestidos de ternos escuros, como se fossem agentes funerários em pleno coração do consumo conspícuo da Pauliceia Desvairada. Madames com Iphones de um lado para outro, cafés que retinavam xicaras, anedotas e cartões de crédito prime. Vi alguns preços das mercadorias e é melhor não mencioná-los.


Voltei para à Augusta assim que pude. Subi-a em direção a Bela Vista que, aí sim, foi um colírio para minhas fatigadas retinas de vitrines, perfumes, xales e todo ethos de perua montada na Daslú.

A FEIRA DA BELA VISTA
Às sextas há uma feira de alimentos entre as ruas Barão de Itararé e Frei Caneca, [dois personagens ímpares de nossa história, o padre republicano degolado e o humorista comunista preso pela ditadura Varguista]. Na feira, vi pela primeira vez os guetos serem diluídos [a comida congrega] no vai e vem das barracas. Havia muçulmanos, chineses, japoneses, judeus e até brasileiros. Uma profusão de cores e cheiros emanavam do lugar. Esbocei um leve sorriso e segui o fluxo entre pescados, legumes, carnes, frutas, verduras e rostos cosmopolitas. No hostel, falei sobre a Feira a um dos atendentes e ele me disse que a Feira “salva o Hostel” por conta dos gêneros alimentícios do estabelecimento que são comprados na própria. A Feira livre é o carnaval e a praia de São Paulo.

REPÚBLICAEdifício Itália
Na Av. Ipiranga, numa quarta feira típica da capital paulista, garoa e solidão, cheguei no Edifício Itália – segundo maior da cidade e do Brasil com seus 46 andares – para conhecer o famoso terraço. Um dos seguranças falou-me que o acesso ao terraço estava interditado por conta de uma festa particular que iria acontecer por lá. Não estava sozinho na vontade de conhecer o espaço, havia comigo dois jovens e uma jovem, acho que eram argentinos querendo conhecer também o espaço. Falaram para o segurança que tratava-se de um trabalho da faculdade – a educação tem suas prerrogativas. O segurança resolve conceder-nos acesso a um dos andares lá de cima, não era o terraço, mas para não perder a viagem, resolvi seguir os grigos e fui ver a cidade lá de cima. O elevador subiu de uma só vez direto para o 38º andar. Lá em cima, vi a cidade sob meus pés. Tenho vertigem e entre J. Stewart em Vertigo e a imensidão da cidade, fiquei com o silêncio das coisas minúsculas.

LARGO DO AROUCHE
Na Estação República há um Museu da Diversidade, daí perguntei-me por que este Museu encontrava-se ali e andando pelo Bairro da República respondi sozinho a minha indagação. Acredito que a maior comunidade LGBT habite a regição da República. Inclusive, há um depósito ao ar livre em que se destribui gratuitamente camisinhas, próximo ao Edifício Copan, com os dizeres: “São Paulo contra a Aids”. Outra coisa que chamou minha atenção é que as propagadas nos metrôs são direcionadas ao público que frequenta cada Estação, por exemplo: na Estação Consolação vi uma propaganda da Editora Saraiva sobre o seu mais recente lançamento, o livro O Capital no Século XXI do francês Thomas Piketty. No Largo, vi uma quantidade significativa de homosessuais tanto no perimetro quanto próximo ao Copan, já na Av. São João.

AVENIDA SÃO JOÃO
Encontrei uma grande quantidade de imigrantes nigerianos na região da República – Centro de São Paulo. Diferente dos bolivianos, os nigerianos comercializam em sua grande maioria, mercadorias relacionadas à tecnologia: celulares, capas, carregadores, relógios e coisas do gênero. Também percebi que eles comercializam esculturas iorubás muito comum na região de onde são provenientes. As peças são espalhadas no chão e dão um tom destoante do vai e vem blasé do Centro – a diáspora é composta não só por pessoas, mas também com toda a herança simbólica que elas trazem. 

A Av. São João foi um dos lugares que mais gostei na capital. Além do preço acessível da cerveja [1 litro de Budweiser custou-me R$ 8,00] e da comida, a avenida é iluminada é repleta de gente o tempo inteiro. Lembro que li um conto de J. Antônio [Malagueta, Perús e Bacanaço] ambientado na São João e me vi dentro do conto pela descrição do autor. Uma vez na avenida, me senti dentro do conto. Coisas que só a literatura nos proporciona – a magia de trascender o tempo e o espaço, de transcender à própria experiência sensível para além do tangível. Ah, vale a pena pedir uma cerveja e ficar observando, em pleno dia da semana, os transeuntes que sobem e descem o Vale do Anhangabú.

GALERIA DO ROCK E GALERIA METRÓPOLE
Um dos espaços que aglomera uma fauna significativa da Pauliceia Desvairada. Vários andares com lojas que comercializam artigos musicais: camisetas, CDs, vinis, DVDs etc., estúdios de tatuagem, lanchonetes, bares etc. Comprei uma cerveja e fiquei olhando os vãos das escadas. O espaço interno da galeria vazando com aberturas ovais em cada andar. Os edifícios não são apenas uma “máquina” para se habitar, comercializar ou simplesmente transitar, há uma dimensão estética [sensível] em sua forma rígida, e foi esta beleza que atraiu-me na Galeria, acho que inconscientemente as pessoas frequentam-na pelo mesmo motivo.


A Galeria Metrópole é outro espaço para além da funcionalidade arquitetônica. Há uma preocupação desfuncionalizada ao percorremos suas dependência que, um espírito sensível como o meu, preza muito. A arte de flanar desenvolvida através de anos a fio sente um prazer quase inenarrável quando se depara com estes espaços. Almocei na Galeria, depois tomei um café [cortesia da matriz] e fiquei observando o fluxo e o refluxo. O vai e vem das escadas rolantes, o sobe e desce, à procura incessante pelo lucro em um mundo de lojas em que tudo virou mercadoria, principalmente o tempo, deixou-me numa acedia oriunda ora pelo almoço, ora pela solidão na cidade, ora por nada.

IPIRANGA COM A SÃO JOÃO
Alguma coisa acontece... já dizia Caetano referindo-se ao cruzamento entre os dois logadouros. Comigo não aconteceu nada, talvez por estar cansado de bater pernas na região do Centro e, muito provavelmente, pelo fetiche que criou-se no cruzamento das duas avenidas a partir da música. Há um bar chamado: Bar Brahma na esquina das duas. Cada copo de chopp custou-me R$ 5,00. Bebi dois enquanto olhava as pessoas no vai e vem da cidade. Acredito que, primeiro, a inspiração de Caetano deu-se a partir do samba de Paulo Vanzolini, Ronda. Em que o sambista paulista narra as desaventuras de uma mulher em busca do seu marido na noite da Pauliceia. E que acaba em uma “cena de sangue num bar da Av. São João”. Porém, a música do autor de Alegria, alegria ganha destaque pela “iluminação” do banal que é mais um cruzamento de uma grande cidade. O estarrecimento frente à monumentalidade de uma metrópole ganhando contornos a partir de uma experiência tão corriqueira – o estranhamento de um forasteiro que acha feio o que não é espelho, ou seja, suas experiências pregressas [falarei mais desta música em outra seção].

VILA OLÍMPIA
A Vila Olímpia é um dos lugares em que você percebe muito bem a força do capital financeiro – o novo capital da cidade. Uma pluralidade de aranha-céus tomam o horizonte entre a Marginal Pinheiros seguindo pela Rua Gomes de Carvalho. Ao saltar na Estação Vila Olímpia comecei a observar os edifícios com seus helipontos incrustados em suas coberturas. A arquitetura yuppie dos edifícios cujas menores partes estão no nascente e no poente, demostram a força do capital especulativo em uma região onde antes só havia manguezais – às margens do Rio Pinheiro. Na Vila Olímpia, lama is money. A região cheira a novo-rico e a sujeitos que de tão bem sucedidos não pisam no chão, preferem seus helicópteros.

VIADUTO DO CHÁ
Uma de minhas últimas noites em São Paulo, dei uma volta na noite fria de primavera pelo Centro. Quando cruzei à Prefeitura encarei o Viaduto do Chá defronte e as luzes de mercúrio da iluminação pública e do Teatro Municipal banharam à noite, minhas retinas e todo o meu mundo naquele momento. E sem mais, sair caminhando sozinho, ouvindo as luzes de mercúrio que nos comunica o inefável de quem sabe que a noite tem mais luzes que o dia, mesmo em uma cidade que descansa sob as sombras de guetos.

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Renato K. Silva - Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN

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Todas as fotografias foram extraídas do Google Imagens.





 

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