Notas de verão sobre impressões de primavera [São Paulo] V
por Renato K. Silva*
Encerrando mais uma página
da série – Notas de verão sobre
impressões de primavera – que teve desta vez a cidade de São Paulo como
objeto de uma reflexão idiossincrática e com mais “fôlego” na redação em
comparação com as Notas do ano
passado, redigidas sobre Santiago, capital do Chile. Dentre os temas relatados
nas Notas sobre São Paulo, estiveram:
culinária, política, os equipamentos culturais, os lugares a agora falarei
sobre as pessoas. Algumas impressões que tive sobre os paulistanos nos dias em
que permaneci na capital. Andei bastante, conheci também muita gente e, acima
de tudo, observei. Como um transeunte qualquer que de fato sou, percorri
avenidas, ruas, vielas, bairros, parques
etc. Não costumo andar com câmeras fotográficas, filmadoras ou Smartphone registrando fotos e tirando selfies –
meu aparelho de celular inclusive é destituído destes recursos. Gosto de flanar
à toa e ao leu pelas ruas, andar sem bússola, mapa ou GPS. Sei que é uma
atitude temerária, mas para alguém apaixonado pela rua como eu, não há
comedimento – a paixão é imune à avareza e às preocupações de ordem pequeno
burguesa. Por fim, espero que no próximo ano possa dar continuidade as Notas de verão sobre impressões de primavera.
PESSOAS
Há quem diga que não há
lugares, mas sim pessoas. Este enunciado pressupõe uma subdeterminação dos
lugares comparados com as pessoas, ou, o mais grave, uma independência destes
sobre aqueles. Discordo. Acredito que há uma relação orgânica entre ambos. As
pessoas constroem seus lugares, seus espaços que vão sendo preenchidos pelas
diversas camadas que compõe à vida social através de construções culturais,
como por exemplo: a opção pelo concreto armado nas edificações, a primazia do
automóvel nas ruas, o tabagismo contumaz, o hábito de comer coxinhas, o excesso
de pichações espalhadas pela cidade entre outras particularidades que pude perceber
nas ruas da capital paulista. Dito isto, traçarei algumas impressões sobre o modus vivendi do paulistano em relação
com às construções culturais que moldaram a Pauliceia Desvairada que conheci.
SÃO PAULO: CAPITAL DA SOLIDÃO
Nelson Rodrigues dizia que não há solidão maior do que a companhia de um paulista. Apesar da inflexão típica de Nelson há um quê de verossimilhança no enunciado. Pude perceber que a população da capital é envolvida por um sentimento de reserva. No meu primeiro dia na Pauliceia, tomei um ônibus na Consolação com destino à USP e, uma vez no coletivo, vi uma jovem sentada com o rosto grudado no vidro da janela. Cabelo lilás, magra, de óculos de grau com aro grosso, caucasiana. E uma expressão de tédio em sua face. O polegar direito girando aleatoriamente as setas tridimensionais em touchscreen do Ipod – a tecnologia como recurso para conter a invasão da cidade em nossas percepções –, porém naquele instante este “recurso” estava sendo em vão para ela.
Fazendo um brevemente levantamento das músicas cujo tema é São Paulo, não temos canções idílicas. Vejamos: Trem das onze escrita pelo sambista Adorinan Barbosa retrata um homem que não pode ficar com o seu amor por conta do último trem que parte às onze horas. Porque é filho único e sua mãe não dorme enquanto ele não chega. Apesar de um certo arroubo edipiano da música, podemos perceber a dimensão gigantesca da cidade que traga os nobres sentimentos do rapaz por conta de uma geografia avessa ao contato e à permanência – a cidade é uma topofobia ao Eros.
Fazendo um brevemente levantamento das músicas cujo tema é São Paulo, não temos canções idílicas. Vejamos: Trem das onze escrita pelo sambista Adorinan Barbosa retrata um homem que não pode ficar com o seu amor por conta do último trem que parte às onze horas. Porque é filho único e sua mãe não dorme enquanto ele não chega. Apesar de um certo arroubo edipiano da música, podemos perceber a dimensão gigantesca da cidade que traga os nobres sentimentos do rapaz por conta de uma geografia avessa ao contato e à permanência – a cidade é uma topofobia ao Eros.
Já ém Sampa de Caetano Veloso temos um forasteiro que é atravessado com o
“alguma coisa acontece...” quando
cruza dois logradouros: Ipiranga com a São João. E essa alguma coisa, assim como em Trem das onze, suscita-nos a uma sensação de movimento, fluxo
metropolitano em constante ebulição. O trem vai pela superfície deslizando, às
margens de suas composições, a paisagem é metamorfose completa. A cidade é
grande; e nós estamos insulados. São Paulo produziu uma poesia de “campos e espaços” uma referência que
Caetano faz primeiro aos irmão de Campos [Augusto e Haroldo] que junto com
Décio Pignatari criaram a Poesia Concreta em 1955. Uma poesia industrial
altamente volatilizada com a vanguarda construtivista da Rússia do início do
século XX, com a pintura abstrata e com
a linguagem publicitária. Uma poesia fragmentária que absorve à
colagem, este recurso caro a estética moderna. Em Sampa o protagonista é acossado pela percepção de uma cidade que é
o “avesso, do avesso, do avesso, do
avesso” quatro vezes pelo avesso reflete um Narciso contrário ao espelho natal, ou seja, a cidade onde o
protagonista de Sampa cresceu
[Narciso acha feio o que não é espelho]. Outra dimensão importante da música é
a “deselegância discreta de tuas meninas”
que vão na contramão do padrão estético das meninas de onde vem o
personagem pois “ainda não havia Rita Lee
/ a tua mais completa tradução”. Rita Lee é a tradução de uma cidade
industrial, de uma beleza sóbria, reta, branca e sem curvas. Tive uma percepção
análoga em relação às mulheres paulistanas. A “deselegância” não é na ordem de
vestuário, mas sim de um ethos corpóreo
que o homem médio criado no Nordeste desconhece. No geral, não vemos muitas
curvas tampouco o rebolado que vemos nas mulheres às margens do Atlântico.
Tom Zé têm duas canções
que dizem muito sobre os efeitos que a cidade imprime nos forasteiros. A
primeira São, São Paulo nos diz em
alguns versos:
“São oito milhões de
habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de
habitantes
Aglomerada solidão”
Há uma orgia de
impessoalidade nesta canção o que de fato assustou o personagem que,
provavelmente, de onde viera não existia este tipo de relação entre as pessoas
“que se agridem cortesmente”. A outra
canção do baiano de Irará chama-se Augusta,
Angélica e Consolação. Uma música cruel ao visitante que chega a São Paulo
e se depara com estas três ruas metaforizadas em mulheres: uma perdulárias
[Augusta]; a segunda indiferente [Angélica]; e a terceira é redentora
[Consolação].
“Augusta, graças a deus,
Graças a deus,
Entre você e a Angélica
Eu encontrei a Consolação
Que veio olhar por mim
E me deu a mão.
Augusta, que saudade,
Você era vaidosa,
Que saudade,
E gastava o meu dinheiro,
Que saudade,
Com roupas importadas
E outras bobagens.
Angélica, que maldade,
Você sempre me deu bolo,
Que maldade,
E até andava com a roupa,
Que maldade,
Cheirando a consultório
médico,
Angélica”.
Uma dilapidação dos parcos
recursos do forasteiro ávido por “adentrar” nas entranhas da cidade, “conhecer”
todas as ruas [metaforizadas em mulheres como uma reação inconsciente do autor
da canção por um par de agruras sofridas na metrópole recém conhecida: cidade e
mulheres] e levar “bolos” de uma
rua/mulher que de angelical só tem o nome. Porém, o personagem da canção vai “morar na Estação da Luz / porque tava tudo
escuro dentro do meu coração”. A “luz”
redimiu a personagem. E a luz é a metáfora do Esclarecimento [Iluminismo]
da razão triunfante em um mundo de “sombras” [desejos, dissipações, dispersões]
de alguém isolado em volta a uma profusão de “sombras”. Apesar da gritante
indiferença e crueldade da cidade, há uma “Estação da Luz” para nos
restabelecermo-nos, ou seja, para continuar a viver.
Enfim, existem inúmeras
canções que não possuem uma áurea esfuziante sobre a Pauliceia Desvairada, para
citar alguns versos: “Não existe amor em
SP” do rapper Crioulo. Do Racionais MC’s temos: “Essa porra é um campo minado” em Fórmula mágica da paz e também em: “São Paulo, um coração partido por metro quadrado” de Vida loka II. Sem contar também a de Itamar
Assumpção, Sampa midnight em três
amigos são surpreendidos por três criaturas
que “Brilhavam, não tinham dentes
/ Traziam cortantes tridentes incandescentes / Nas frontes três chifres” em
pleno apagão em uma noite na Av. Paulista. Curioso é percebemos que todos os
personagens das canções que elenquei são frutos dos substratos subalternos:
imigrantes nordestinos, moradores da periferia e negros.
Utilizei uma metáfora no
texto anterior que vem a calhar nesta seção[1], parece que há uma “Serra
do Mar” na alma de todo paulista. A Serra do Mar começa no Estado da Bahia e desce
até o sul do país, é uma cadeia de montanhas que separa o litoral do planalto
central brasileiro. Euclides da Cunha fala dela em Os sertões. Parece que a intimidade de um paulista só é acessível
após cruzarmos esta “Serra do Mar”. Como fazer? Não sei. Conheci uma menina na
Festa do Santo Forte [uma espécie de bloco carnavalesco fora de época] no Largo
de São Francisco. Ela detectou de imediato meu sotaque, daí nos apresentamos e
fomos dar o beijo de formalidade nas duas bochechas. Ela só me virou
um lado e disse sorrindo em seguida: “Nós
somos econômicos até no beijo”.
Entre minhas idas e vindas
altas horas da noite pelo bairro da Bela Vista, pude ver inúmeras vezes as
pessoas caminhando solitárias com seus cães de estimação. Uma sacola plástica
para apanhar os excrementos dos seus pedigrees. Um frio de rachar na madrugada na
Praça Roosevelt; na rua Bela Cintra; na rua Herculano de Freitas e as pessoas
lá caminhando com os seus cães, em sua grande maioria pequenos por conta da
vida em apartamentos, compartilhando as confidências da madrugada com a “mudez”
canina.
Este insulamento do
paulistano parece um lugar comum visto por quem vem de fora. Porém, entre
algumas das maiores produções cinematográficas sobre a cidade: São Paulo S/A [1965] de Luis Sérgio
Person e Noite vazia [1964] de Walter
Hugo Khouri podemos constatar este alheamento com as coisas e com as pessoas do
paulista. No primeiro, protagonizado por Walmor Chagas [que cometeu suicídio
no ano passado] temos um funcionário da indústria automotiva que vive uma
relação violenta com a cidade. Seu sonho? Desaparecer de São Paulo, entretanto,
ele sempre retorna como se fosse um masoquista e a metrópole a sadista. O
casamento perfeito. No segundo longa, temos uma dupla de amigos [Mário
Benvenutti e Gabriel Tinti], em busca de uma aventura na noite paulistana. Após
irem a vários bares atrás de umas mulheres eles acabam encontrando duas garotas
de programas [interpretadas por Odete Lara e Norma Benguell] e os dois casais
vivem uma noite de revelações dentro de um apartamento. Apesar das constantes
tentativas de se dissolverem entre eles, há o estranhamento inerente aos papeis
sociais que cada um representa. Não se permitem a uma relação mais estreita e
espreitando tudo isso: a cidade em sua gigantesca inascebilidade e
impassividade. Nos dois filmes temos um urbe negra - alusão à bílis negra,
que segundo a teoria dos humores de Hipócrates é o humor melancólico destilado
pelas naturezas reservadas, inclinadas a acedia. E talvez essa bílis negra presente em ambos os filmes seja a forma elementar que move o paulista através de uma cultura fortemente marcada pela solução individual, politicamente, liberal.
SÃO PAULO: CAPITAL DO TABAGISMO
Acho que São Paulo é a
cidade que visitei onde encontrei a maior população tabagista, junto com
Santiago [talvez seja por conta do frio]. Geralmente o hábito do tabagismo é
acompanhado por uma prosa na mesa do bar no fim de tarde ou na boemia à noite,
ou também com um café [senti falta dos fiteiros que vendem café a R$ 50
centavos aqui no Recife lá em Sampa] seguido de um papo despretensioso com um
amigo, namorada etc. Vi tudo isso em Sampa, mas vi também muita gente fumando
sozinha. Às 7h da manhã na Av. Paulista as pessoas fumando sobre o exaustor
do metrô, por trás das bancas de revista [o cigarro é algo obsceno que se
utiliza escondido] sozinhas, uma concentração alheia, o cigarro parecia uma
ordem. Em toda a minha estadia na capital só uma única vez um morador de rua na
madrugada da Baixo-Augusta me pediu um cigarro. Agora isso, nos locais com grande
tráfego de pessoas havia sempre um repositário de cinzas e guimbas de cigarro,
uma espécie de cone em inox amarrado ao chão por um pequeno fio de cabo de aço.
Também vi coletores de peolas de cigarro para serem reciclados tanto na USP
quanto por trás do Conjunto Nacional [Av. Paulista].
Desconfio que o cigarro
seja uma das poucas coisas que consegue “furar” a barreira da “Serra do Mar”.
SÃO PAULO: CAPITAL DA PICHAÇÃO
Logo quando cheguei na
cidade deparei-me com uma profusão de pichações espalhadas por toda a parte.
Cheguei à capital na madrugada e mesmo assim as pichações não passaram
incólumes. São muitas e onipresentes – viadutos, praças, casas, prédios,
parques etc. A região da Baixo Augusta, o Vale do Anhangabaú, o Centro Velho
etc., São inúmeras que às vezes pensamos que fazem parte da pintura do imóvel.
Falo aqui de pichação e não de grafite. Há grafites também pela cidade, porém a
pichação é a marca – é a tatuagem no corpo metropolitano, já os grafites são
tatuagens de rena.
A necessidade de expressão
do ser humano é assunto batido. Nossos ancestrais pintavam nas cavernas os
bisões, os alces, seus semelhantes etc., porém naquela época a arte ainda não
tinha o estatuto de mimésis, ou seja, ela não representava o real. Ela era
mágica. Parece que as pichações da Pauliceia possuem uma certa equivalência. Os
pichadores não estão preocupados em representar as coisas do mundo como os
grafiteiros, em grande medida, estão. A pichação é expressão pela própria
expressão, não quer comunicar nada para ninguém que não seja um iniciado
[talvez nossos primitivos pensassem a mesma coisa]. Devemos nos perguntar,
porque uma cidade produz este tipo de arte urbana [para mim é arte, sim], a
pichação? Não tenho resposta, mas intuo que o afã de estabelecer e inscrever
certo traço de subjetividade em uma lógica cada vez mais célere da cidade que
muda o tempo inteiro pode ser uma chave interpretativa. Pois, não era isso que
Baudelaire se referia sobre a gênese da estética moderna quando analisou as
gravuras de Constantin Guys na Paris do século XIX? A busca do eterno no
efêmero. Acredito que a pichação seja a tentativa de imprimir uma marca pois alguma coisa acontece... e antes que
chegue o trem das onze devemos dizer
que estivemos por aqui.
PS.: A nota destoante é que nos dias em que estive em São Paulo não vi um vira-lata na rua, talvez isso diga mais sobre a cidade do que qualquer coisa que falei anteriormente nesta série de escritos.
PS.: A nota destoante é que nos dias em que estive em São Paulo não vi um vira-lata na rua, talvez isso diga mais sobre a cidade do que qualquer coisa que falei anteriormente nesta série de escritos.
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Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN
Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN
[1] Disponível em: http://www.foihoje.blogspot.com.br/2014/12/notas-de-verao-sobre-impressoes-de_12.html
Acesso em: 21 de dez. 2014
Crédito da primeira fotografia: Egberto Nogueira - Metrô [1998]
Crédito da segunda fotografia: Cia. da Foto - Rua 25 de março.
Crédito da terceira fotografia: Google imagens.
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