Boa noite, Cinderela

28.1.14 Cabotino 1 Comentarios



Com a quinzena no bolso, Neguinho saiu para a Terça Negra. Na favela a turma o chamava de “Vida Matemática”, cheia de problemas. Uma vez o bioquímico do laboratório de análises clínicas encontrou uma forte concentração de urina em seu uísque.

Na Terça, chegou à caída da noite. Puxou uma cadeira amarela estampada com a logomarca da Skol e ficou olhando a igreja e se perguntando: “porra, eu não queria ser o ajudante deste pedreiro que levantou isso, que mão de obra”. Lá em cima São Pedro todo vermelho, não só com os pés, mas com o corpo todo de barro, sisudo e provavelmente não assentindo aquela profanação, logo ali no pátio sagrado que leva o seu nome. O sagrado quando junta-se com o profano produz uma geleia geral chamada, Recife.

Neguinho, ainda com os cabelos molhados do banho que tomara na ôia, estava auxiliando Dão, o pedreiro que estava fazendo a reforma de uma casa na Rua dos Martírios. Esguio – um metro e oitenta e oito. Uns vinte e oito anos, com um corpo já de trinta e pouco e um pulmão e fígado de poeta dos anos setenta. Moreno. Mãos encaliçadas. Pés de nº quarenta e cinco. Rosto afilado e pele fustigada pelo sol e pela orfandade de pai e pão desde a tenra idade. Mochila nas costas que levava uns trapos de roupas suadas; uma tupperware vazia e uma colher. Boné da Volcon na cabeça, evidentemente, falsificado e comprado no rateio na Rua do Rangel a um brasileiro, pois os chineses não fazem desconto nem no pisca-a-pisca Made In Taiwan. Uma Havaiana preta gigantesca nos pés. Uma regata com as cores da Jamaica e uma bermuda jeans já começando a desbotar, daquelas que o cara compra na Feira de Cavaleiro em janeiro e torce para não trocar os zipes antes de março.

Pediu uma Brahma gelada ao garçom. Os olhos fumaçando, tinha dado uma bola ali na Maciel Pinheiro, em baixo do Casarão onde morara Clarice Lispector, e foi direto para o Pátio esperar o show de Cabrobó, uma banda de reggae que iria tirar uns covers de Edson Gomes.

A cerveja chegou e ele ligou aquele Hollywood selvagem, tomou um gole da espumosa e soltou a fumaça da tragada, primeiro pela narina, e o final pela boca. Sentiu o corpo relaxar e jogou as costas para o respaldo da cadeira de plástico amarela.

Havia pouca gente àquela hora no Pátio, era cedo, por volta das 18h. Próximo dele, encostada a parede de um Casarão vizinho ao Bar que estava lhe servindo. Uma mulher loira, oxigenada é claro, pois suas sobrancelhas eram de cor azeviche. Cabelos no ombro. Uns trinta anos, mas aparentando ter quarenta e pouco e um bolso de dez anos. Maquiagem carregada. Uma leve barriguinha. Pelos descoloridos. Uma bolsa a tiracolo. Saia jeans e o celular no ouvido.

Ele a olhou e ela tirou a visão, tapeando. Após uns minutos ela se aproximou dele e perguntou: “Ei Legal, tem um cigarro desse aí pra mim?” Ele respondeu – “Tenho sim, amiguinha. Aceita uma água, um copo de cerveja?” Ela retrocou – “Rapaz, vou até aceitar a cerveja porque estou esperando uma amiga aqui há um tempão e ela nem atende o celular”.

Neste instante, Neguinho pediu outra cerva ao garçom e mais um copo, curioso, aquela ainda estava cheinha, mas a iminência de uma safadeza o atiçou e que o fez mais mão aberta aquela altura.
- Qual teu nome, Morena?
- Morena, Legal?
- Foi mal, é o costume.
- É Sineide, mas pode me chamar de Synd como todos me chamam lá em casa e na rua, eu até assino às coisas, às vezes como Synd, com ípsilon e tudo. E o teu Fio?

Já não era mais Legal, agora é Fio. Mais íntimo como quem enrola o interlocutor enrolando o fio do telefone distraidamente, como naqueles tempos em que o celular não monopolizava a fala sedentária.

- Jefferson, mas todo mundo me chama de Neguinho, pode ficar à vontade também. Então, Maga segura às pontas aí que eu vou ali dar uma mijada. Já, já eu volto.

Ela ficou segurando às pontas e Neguinho foi dar cabo de uma pontinha que ficou do baseado de horas atrás e iria fumá-lo depois de dar uma mijada ao lado esquerdo da parede da Igreja, aquele hábito do flaneur recifense repleto de ácido úrico. Já no caminho Neguinho esqueceu do isqueiro na mesa e ao voltar para busca-lo flagrou Synd deitando um pó branco em seu copo de Brahma já meio morno – temperatura tipicamente recifense também. Ela quando o viu voltando assustou-se e esperou o esporro e não adiantava correr, ele a pegaria em duas passadas e passaria o rôdo. Esperou e qual não foi a sua surpresa.

- Ôxe Maga, porque parou? Bote mais deste negócio aí. Ele da lombra não é? Bote mais. Bote mais.

Ela ficou toda sem jeito e guardou o recipiente de volta na bolsa e saiu com essa.

- Ei Legal, vou indo nessa que a minha amiga me mandou uma mensagem aqui e está me esperando lá no espetinho do Pátio do Carmo. Vou nessa. Falou.
- Oxe, já vai? Vá lá e boa noite, Synderela.



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Demônio

28.1.14 Cabotino 0 Comentarios



Há em mim um Demônio.
Destes que grassam aqui e acolá e lhe exige algo mais do que ser
[gauche na vida.
Felizmente ele escolhe poucos para lhes roubar à alma; às retinas e à próstata.
Ele é um ser discreto e tímido, demora a entrar nos recintos e só adentra a partir de reiterados convites. Mas, uma vez dentro de sua casa Ele não só não sai mais como também faz uma tremenda bagunça. Revira os lençóis de seus sonhos. Rouba a caminha de seu sono. Desculhamba a sala de visita de suas relações. Puxa o tapete de sua inocência. Serra os pés das cadeiras de suas ilusões. Come toda a sua dispensa. Cozinha a fogo baixo e acaba com seu gás. Balança os alicerces de sua casa. Apaga a sua luz e desliga sua TV e, ainda por cima, destelha o seu teto.
Em contrapartida: Ele lhe dar às estrelas para poderes contempla-las ou queimar-se com elas, mesmo que elas só existam em suas propagações.
Este é o Demônio da Narrativa.



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Diálogo flácido para acalentar bovino (ou conversa para boi dormir)

23.1.14 Pássaro Bege 1 Comentarios


Dedicado aos amigos Renato e Rosano (companheiros de vários mingaus nas madrugas do Cais) e aos idealizadores do livro-manual "Se saindo das butadas", que já é um Best-seller mesmo antes de ser publicado.


- Quando bebemos demais e perdemos a hora do último ônibus, qual o melhor procedimento a fazer ao chegar ao Cais de Santa Rita?
- Ora, compras um mingau de cachorro ao senhor "Boy". A referida bebida é uma bomba calórica que te manterá em vigília.
- E se no cais, logo após comprar o mingau, chegar o busão das três?
- Das duas uma: Ou corres para o ônibus e queimas as pontas dos dedos ou ficas com um mingau numa mão e um cigarro entre o indicador e o médio da outra, esperando o próximo carro. Podes ainda segurar o cigarro entre as pontas dos dedos polegar e indicador, a depender do seu estilo e do seu cansaço. 
- Certo. Mas e se eu fico no Cais e não tem mais bacurau?
- Normal.  Acaba o mingau, dá o góia do cigarro a algum serrote pidão e ruma pra Guararapes ou, quem sabe, estica pra Boa Vista. Em caso de possuir algumas moedas na algibeira, cogite comprar um pingado e um pão na chapa, porque o percurso pode ser desgastante. Evite as coxinhas, certeza ainda serem as de ontem. 
- Mas sabemos que o percurso por essas bandas entre as 3h, 4h da manhã é repleto de maletas de todas as espécies.
- Nesse caso, queime a ponta dos dedos, mas não perca o das três, oras!
- Certo. Mas se na corrida além de queimar os dedos, eu derrubar o mingau?
- Frente essa tragédia, sente-se perto do cobrador e informe a ele sua parada, posto que provavelmente vás dormir e passar direto donde costumeiramente saltas.
- E se cobrador também dormir?
- Perderás a parada onde saltas e acordarás no terminal. 
- E se não possuir moedas para pagar outra passagem?
- Tendo essa certeza, porque diabos tu comprarias um mingau de cachorro? Aí é arriscar-se, ser imprudente. Deves sempre guardar certas quantias no bolso para futuras agruras.
- Mas o mingua é um real e a passagem dois e quinze, tanto fazia comprar ou não o mingau, donzelo!
- Te enganas. Mesmo com a catraca na frente, sempre rola uns pulos com o cobra.
- Tá bom, que seja! Mas suponhamos que tenha comprado o mingau e ficado zerado, e agora?
- Terás que esmolar. Contudo, desças do carro soberbo como se nada de angustiante ocorrera. Procure a primeira barraca em frente à Escola Fundação Bradesco - caso tenhas pegado o Vila Dois Carneiros - e contes num tom melancólico sua peregrinação infeliz ao simpático senhor ou senhora que naquele fiteiro labuta.  
- Com certeza a velhota, ou o velhote, negaria por haver escutado milhares de histórias semelhantes. 
- Pouco importa, tua lábia não será a mesma dos infelizes de outrora.  
- E se me der vergonha na hora de pedir?
- Arromba-te! Porque aí já estás com diálogo flácido para acalentar bovino para cima de mim.




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Noventa minutos no exterior

21.1.14 Castanha 0 Comentarios



Lá estávamos: Eu, minha esposa, meu bom amigo Romulo e sua namorada Monique. Fomos passar uma semana na terra de minha esposa, Rio Grande do Sul, terra de gaúchos orgulhosos por serem gaúchos; um bom povo. A cidade natal de minha esposa é Itaqui, a mais de setecentos quilômetros da capital Porto Alegre, na região de fronteira, dentro da região de campos daquele estado, os famosos pampas gaúchos. Itaqui é uma pequena cidade que beira o rio Uruguai, enorme Rio Uruguai. Do outro lado do rio está à Argentina, basta pegar a balsa e saltando em terra firme, após quinze minutos de viagem, você está em solo estrangeiro e sob administração de Alvear, pequeno município argentino. Pensamos que seria interessante cruzar o rio Uruguai para conhecer Alvear, mesmo tendo sido alertados por meus sogros de que Alvear é só uma pequena cidade parada no tempo. Planejamos tudo enquanto tomávamos uma cerveja no porto de Itaqui, olhando para o rio Uruguai. Acertamos: vamos falar com minha esposa e com Monique para elas não irem, pois, depois de descer no porto de Alvear temos que andar quase três quilômetros de estrada de barro e talvez seja perigoso. Minha esposa não se opôs, pois não queria caminhar mesmo. Não perguntei a Romulo o que Monique achou da ideia, talvez não tenha gostado. Nossa preocupação com a segurança delas era verdadeira, mas a gente também queria ficar bem à vontade para tomar uma cerveja em território estrangeiro. Uma boa leitora feminista não vai gostar disso, mas veja o lado bom: não estou aqui mentindo. Pegamos a balsa às 10h pensando em voltar às 14h. O peso argentino estava custando vinte e sete centavos de real, bom para nós. Meu sogro nos alertou “Ao descer da barca façam um registro na capitania dos portos, pois vocês estarão em outro território”. Foi a primeira coisa que fizemos para cumprir com a legalidade e que surpresa não foi quando o funcionário da capitania nos falou com voz autoritária e em bom espanhol que não sei reproduzir aqui, mas que entendi muito bem: “Não podem entrar!” e nós “Por que?” e ele “Este documento não vale”. Levamos as carteiras de habilitação para nos identificar, teríamos que ter passaporte ou bastava a cédula de identidade nacional para entrar, já que Brasil e Argentina têm acordos. Tentamos explicar que a habilitação para dirigir também é usada para identificação nacional por ter nela os números da identidade, mas “Lo Hermano” foi inflexível “Este documento vale no Brasil, aqui é Argentina, não importa se tem número de identidade, filiação ou qualquer coisa, tem que ser identidade nacional ou passaporte”. No momento fiquei furioso com a grosseria dele, mas depois pensei se não podíamos aprender um pouco dessa disciplina com nossos vizinhos. Para completar ele ofereceu “Podem ficar aí na frente da capitania para circular e compra”. Estava a nossa disposição: um velho prédio da alfândega e duas barracas velhas, uma vendendo cerveja quente e outra vendendo cerveja gelada. Optamos pela segunda barraca. Um argentino, Roberto, nos atendeu naquele boteco velho, pequeno, tocando música brasileira ruim e com uma mesa gasta de um jogo que era meio sinuca e meio bilhar. Fiquei furioso querendo pegar já a próxima barca que saia meia hora depois, às 11h. Romulo, bem tranqüilo, opinou “Já que estamos aqui vamos tomar cerveja, relaxar e voltar às 12h”. Ficamos. Pedi pra Roberto sintonizar numa rádio argentina, pegamos cerveja gelada e relaxamos jogando “sinuca” e gastando tempo à toa; vadiar é preciso. Não conhecemos Alvear, mas não foi de todo mal: o sinal de telefone e internet do Brasil chegavam ao local e Romulo pôde ligar pra sua mãe e dizer que estava no país vizinho e contar a inusitada história. Pôde ainda bater umas fotos nossas e mandar via rede social pra fazer piada para os amigos. Tomamos três litros de cerveja no lado argentino e mais dois litros no lado de cá em solo pátrio. Ouvindo rádio na fronteira descobri que não é só o brasileiro que faz música ruim e melosa, no estilo telenovelas. Noventas minutinhos no exterior também rendem suas histórias.

Castanha 12 de janeiro de 2014.

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Traste

20.1.14 Cabotino 0 Comentarios



Hoje à tarde meu violão olhou para mim com seu único olho empoeirado e blue, disse-me: vem cá.

Eu me cheguei todo envergonhado, como quem cometeu um pecado, mas aos poucos ganhei confiança. Peguei-o e o pus junto ao meu peito e, em um ritual muito delicado, comecei a limpá-lo, tirando sua roupa de poeira. Afinei o seu nylon e ele foi ficando todo vaidoso. Ganhou corpo e de ré e já todo fora de si encostou-se mais ao meu peito. Do meu lado, estralei os dedos e comecei a acariciá-lo devagar. Debaixo para cima para sentir o seu corpo recém-afinado. Seu som dilatou-se no espaço como um motor do tempo – circular e cromático. Orgulhou-se de sua desenvoltura e ficou todo tonal. Encapei meus dedos direitos com uma palheta e toquei uma balada em sol que fez até o Sol lá em cima se enrubescer. Depois do estribilho eu o tirei junto do peito e larguei-o no canto sozinho.

Lá do canto ele disse-me: de todos os meus trastes, tu és o maior.

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Epitáfios, necrologias, inscrições tumulares e outras lápides cabotinas

16.1.14 Cabotino 0 Comentarios



Aqui parece Brasília (Oscar Niemeyer)

Eu não estou aqui (Chico Xavier)

21 gramas a menos (Tim Maia)

#Partiu (Mark Zuckerberg)

Meu jazigo jazz comigo (Louis Armstrong)

Enfim (Joel Silveira)

Vai tomar no cú! Com acento mesmo! (Dercy Gonçalves)

Ainda continua durinho como esta lápide (Rita Cadilac)

A pipa do vovô não sobe mais (Sílvio Santos)

Estou deselegante? (Sandra Annenberg)

Por favor, se não por crisântemo é gafe (Glória Kalil)

Rir agora! (Chico Anysio)

Enfim, singular (Fernando Pessoa)

Aqui jaz uma arte concreta (Ferreira Gullar)

Me enterraram com jacarandá ou sucupira? (Jader Barbalho)

Tá uma gracinha? (Hebe Camargo)

Aqui jaz o maior apresentador da TV brasileira cujo caixão tem quase dois metros (Fausto Silva, Faustão)

Aqui jaz um homem que todos viram o enterro, espero (Nelson Ned)

Poeta não morre, despoetala-se (Paulo Leminski)

Um defunto jamais deveria ter sido jovem (Nelson Rodrigues)

Faltou frase (Oscar Wilde)

Eu quero ouvir às palmas (Alceu Valença)

Estou aqui porque não tenho onde cair morto (Cabotino)



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Projeto de lei pretende instituir um terceiro banheiro em estabelecimentos públicos e privados no estado.

16.1.14 Cabotino 0 Comentarios


O deputado estadual, Pompeu Bites Froña (PIT – Partido da Integração Total) propôs, nesta terça feira, Projeto de Lei no plenário da Câmara, que pretende criar um terceiro banheiro em instituições públicas e privadas no estado. O terceiro banheiro seria destinado às pessoas que desejam tirar fotos com seus smartphones, câmeras digitais, tablets e outros gadgets, individualmente. Segundo o deputado, “é direito de todo cidadão e cidadã manifestar a sua necessidade de exibição nos espaços. Essa lei visará atender uma demanda urgente no seio de nossa sociedade que vem se evidenciando nas redes sociais. Às pessoas não se sentem satisfeitas em dividir um espaço com outras para expressar o momento de sua intimidade com as objetivas, por isso vou pedir também aos donos de restaurantes, bares etc, que ponham o nome do seu estabelecimento na frente dos espelhos, escritos na ordem inversa, como nas ambulâncias, para que ele saía nas fotografias. Com isso, ganha o cidadão e o estabelecimento em publicidade que aumentará o consumo, que gerará trabalho e, subsequentemente, renda e o ciclo continua. Enfim, esta lei terá como objetivo fazer com que o cidadão e a cidadã gozem de todos os seus direitos de imagem individualmente para que aumentem os seus currículos narcísicos nas redes sociais”. Afirmou o deputado a nossa equipe em entrevista exclusiva cedida por ele em seu gabinete na ALEPE.

Fonte da imagem: Internet.

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Bem mais que uma mal sucedida tentativa de furto de cobre numa subestação de energia**

15.1.14 Unknown 0 Comentarios


 “Onde já se viu?” “Vândalo!” “Que bicho burro!”. A cidade toda subscreveu nas redes sociais e nos sites de notícias comentários e juízos acerca do furto de cobre que Aluísio[1] tentou executar na Subestação Várzea da CELPE (Companhia Energética de Pernambuco) na madrugada do dia 11 de janeiro de 2014 em Recife. “Tudo isso por causa de Cu”, comentou um químico aspirante ao elenco do Zorra Total, da rede bobo, num site de notícias de um grande jornal pernambucano da mesma qualidade que alguns dos trabalhos oferecidos na Zona Franca de Manaus. E por falar na qualidade dos trabalhos oferecidos na Zona Franca, a façanha de Aluísio tem tudo a ver com a confecção do seu e o do meu smartphone, com o trabalho escravo e com a desigualdade social em que vivemos diante consumo irresponsável e desenfreado em escala global. Por quê? Vejamos.

Os smartphones, assim como outros gadgets que nós carregamos em nossos bolsos e mochilas, têm o cobre (cujo seu símbolo químico é Cu) como material indispensável a sua confecção. O cobre é usado em alguns componentes desses produtos por ser um metal maleável e de excelente condutibilidade elétrica (conduz eletricidade quase sem resistência), contudo hoje em dia ele é cada vez mais escasso no mercado, devido a sua extração ser um desafio tanto em termos econômicos, como em termos ambientais.

Para as mineradoras, por exemplo, a extração do cobre é dispendiosa porque envolve uma cara e grande quantidade de recursos (energéticos e hídricos, etc.) muitas vezes desproporcionais em relação ao que se consegue lucrar no curto prazo com sua venda. Sem falar, é claro, na dificuldade do descarte dos resíduos originados no processo de coleta do metal, que muitas vezes são de extrema concentração tóxica. (Fonte: http://migre.me/hrdr0). Não entrarei aqui em maiores detalhes sobre isso agora, mas, para resumir um pouco a importância desse “metal de transição” em nosso dia a dia, é preciso lembrar que o cobre é um produto (de satisfatória vida útil) usado por nós desde os primeiros passos de nossas atividades agrícolas (há registros históricos dos usos do cobre que nos remetem a mais ou menos uns 10000 anos a.C.)  às comodidades e serviços dos quais usufruímos no mundo atual: eletrodomésticos,  telefonia móvel, Internet, entre outras.  

Pensando nessas tais comodidades modernas, lembro-me que o meu smartphone é da Samsung, o de vocês também é? Pois bem, sabiam que essa multinacional de origem sul-coreana, em uma de suas filiais aqui no Brasil, tem diversas acusações de promover trabalho escravo em suas fábricas? Sabiam que, segundo denúncias da procuradoria Regional do Trabalho da 11ª Região do Ministério Público do Trabalho (MPT), os seus trabalhadores das fábricas da Samsung passam de dez a quinze horas por dia de pé, sem pausas? (Fonte: http://migre.me/hrfKQ)

Diante disso, chegamos então a uma constatação: Aluísio, o homem que tentou furtar fios de cobre da subestação várzea, não pode ser apenas uma matéria lida em um aplicativo de notícias do nosso smartphone. Os 70% do corpo queimado de Aluísio no hospital da restauração são o reflexo de como tratamos o trinômio: produção, circulação e consumo, e de como este trinômio interfere em nossas relações sociais. É o cobre que sustenta a demanda consumidora por smartphones no Brasil e na China, por exemplo. Por sua vez, é essa demanda crescente e ávida pelo descartável e pelo novo que sustenta algumas formas de trabalho escravo em pleno século XXI, tudo isso em baixo de nossos bigodes e buços doutos; visualizados sem culpa na tela sensível ao toque de nossos smartphones como notícias banais.   

Ao olharmos além da frieza dos números o cenário econômico atual, percebemos que o preço do cobre cresceu vertiginosamente devido a sua escassez e sua enorme procura e que, muito embora seu quilo valha entre R$ 6,00 e R$ 10,00 (bem menos do que outros metais “nobres” como o ouro e a prata), a depender de seu estado físico, há registro de furto desse metal pululando em toda parte do mundo, e no Brasil não é diferente. Mas, o que são R$ 6,00, R$10,00 reais, afinal? Podem ser transformados em pães, café, num quilo de feijão, num livro ou numa pedra de crack, não importa!  O que realmente importa é que esses casos nos lembram do quanto somos injustos e desiguais.

Ironicamente, em uma entrevista concedida aos jornais por um dos amigos que ajudaram Aluísio na empreitada na subestação, somos surpreendidos com as seguintes informações sobre o que motivara a sua tentativa de furto: “Aluísio queria comprar um smartphone para sua mãe no começo desse ano”. “Para tanto, resolveu investir em furtos de fio de cobre, porque catar latinha só tá dando R$ 2,70 o quilo, tá rendendo menos que pegar um quilo de cobre e vender no câmbio negro”.

Aluísio talvez não saiba de nada sobre a relação entre o cobre e os smartphones, ou entre os gadgets e nossa forma de consumo, ou ainda sobre a relação entre os smartphones e as denuncias de trabalho escravo na Zona Franca de Manaus. Aluísio talvez não faça ideia de que o preço do cobre voltou a se valorizar impulsionado pelo explosivo crescimento do consumo na China a partir dos anos 2000. Tomara que Aluísio tão somente consiga sobreviver, e que um dia, quem sabe, possa ler essas mal traçadas linhas.  












[1] Aluísio é um nome fictício.  
** Texto ficcional baseado no caso da tentativa de furto de fios de cobre e baterias na subestação Várzea da CELPE, ocorrido no dia 11 de janeiro de 2014 em recife, Pernambuco
Crédito da imagem : Hélio Meira Lima (@heliopolho). 
Retirada de: (http://migre.me/hrjBk)

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Quando eu fui o Barão de Munchausen

14.1.14 Foi Hoje! 0 Comentarios



Ouçam um acorde de Lá maior!

Eu ia caminhando e lembrando coisas que nunca desejei ter passado. Lembrando-me da gente lânguida e com hálito fétido que já tinha cruzado meu caminho. Ia lembrando dos meus “podres poderes” que não me servem de muita coisa, também lembrava-me constantemente das coisas que queria e não tenho e ainda das coisas que quero e não tenho por não querer.


Também me lembrava de esquecer o que me basta, numa incessante busca de ter o que não preciso para saber que o que realmente preciso não tenho por não querer... São coisas simples, às vezes uma conversa, às vezes uma risada, às vezes um Lè Carretiê com gente descolada, de camisa transada com nada, com a barba por fazer, sem sutiã, com aquele papo gostoso de crítico musical.


Lembro também que às vezes me basto, como o Barão que sai da lama puxando seus cabelos eu escrevo essas letras apagadas sabendo que minha leitura é o suficiente para que possa ser menos amargo. Âmago feito um torrão de açúcar mascavo para um diabético e azedo que nem jiló no bico do canário.


No fim das contas, eu tenho um ás de espadas na mão e vou segurar até o fim do jogo. Isso me basta. Isso é o de mais e o de menos. Da minha lama eu saio quando estiver satisfeito.


"The ace of spades, the ace of spades"



Por: João Berimbau 

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Pequenas coisas que gostaria de me esquecer

12.1.14 Castanha 3 Comentarios



De nada quero me esquecer! Vivo hoje porque desde antes lembro quem sou, e viverei amanhã usando as memórias que construo agora. Sem memória perco minha humanidade.

Castanha 12 de janeiro de 2014

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Pequenas coisas de que não quero me esquecer

10.1.14 Castanha 0 Comentarios



Da tapa que minha mãe deu em minha boca por eu ter falado uma palavra feia; eu era criança. Dos primeiros passos que minha prima deu, antes de completar um ano, enquanto brincava comigo. Das tantas risadas que dei ao longo da vida; foram tantas que são incontáveis. Das tristezas que tive, pois elas são o contraponto que me fazem lembrar que sorrir é bom. Do gosto da cerveja. Das aulas de antropologia, na universidade. Da vez que tia Maté guardou doces pra mim. Da sensação boa que algumas canções me trazem. Das pessoas que conheci: das boas por serem simplesmente boas, e das ruins para que eu possa evitá-las. Das somas: 2 mais 2 são 4 e 10 mais 10 são 20. Das tantas vezes que meus lábios foram beijados de forma diferente; cada beijo é diferente dos outros; único. Das paisagens do agreste. Da noite estrelada que vi certa vez no sertão. Daquele primeiro encontro com “ela” olhando o céu escuro; e daquela segunda vez, olhando o por do sol. Da parede gigante formada por infinitas gotículas de água que eu vi e toquei quando estava naquela comunidade, bem longe de minha casa. Da piada do cara que tinha três “cunhões”. Dos rostos bonitos e chorões dos meus alunos se despedindo de mim quando troquei de escola. Das muitas coisas que já vi, vivi, escutei, falei, contei, chorei, gritei, odiei, pensei... Das vezes que não deixei esquecer. 

Castanha 02/12/2013     

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Histórias velhas para um ano novinho em folha

8.1.14 Unknown 0 Comentarios


Antes mesmo de começar o falatório, caberia uma pergunta: - porque começar 2014 com uma história que me ocorreu num tempo pré-diluviano?

A primeira resposta seria a da falta de assunto ou de criatividade do cronista, que se encontra ressacado ainda das festas de fim de ano. Plausível. Outra, no entanto, sugere que botar os pés no novo ano com uma historieta desse naipe é um vaticínio, um alerta. Juntemos o útil e o agradável e fiquemos com as duas.


Há uns catorze anos (ou mais) atrás, no dia do aniversário da minha mãe, calhou de eu estar junto dela no momento em que ela atinou que, por mais que o dia fosse de festa, o pão e ovo da mesa não podiam faltar - qual seria o desjejum da ressaca no dia seguinte?


Nessa época eu já era famoso por algumas proezas – que minha chamava de demências – na (aparentemente) simples tarefa de comprar algo no mercadinho mais próximo e voltar. Assim, sem percalços.  

Esquecer o que deveria ser comprado e voltar no meio do caminho para casa para refrescar a memória, ocorria demais, ocorria sempre. Comprar errado, esquecer um ou dois itens da lista, também tinha uma considerável recorrência. Mais raramente eu perdia o dinheiro, raro, mas já tinha acontecido.


Sabendo desse meu vasto currículo, minha mãe, junto com uma nota de 50 reais – bicho, 50 reais naquela época! -, me deu um sermão desgraçado, me botou o maior medo, e exigiu que eu chegasse em casa com a compra devidamente feita e com o troco completo.


Não fosse essa pressão psicológica, eu não teria colocado o dinheiro no cós da bermuda, por achar que sentindo ele seria mais difícil perdê-lo. Na ida, tudo blue, na América do Sul. Na volta, já na altura da rua de casa, quando eu pensava que o time estava ganhando de goleada, dei por falta dos quarenta e tantos reais e das moedinhas. Puta que pariu! - exclamei. Me fudi – lamentei, logo na sequência.


Não podia chegar em casa sem aquela pequena fortuna. Comecei a refazer o caminho diversas vezes, todas elas olhando um determinado ponto que eu não tinha examinado ainda, em busca daquelas cédulas. Não teve jeito, não achei. Desastre. Tragédia.


Já tinha andado muito. Na certa, em casa, todos já estariam dando pela minha falta, e preocupados até. Eu estava cansado, os ovos já estavam quebrados de tanto resvalar nas minhas pernas, o pão estava amassado, a noite caía. Não tinha saída. Teria que voltar para casa, explicar tudo e, caramba, enfrentar a fera.


Foi o que eu fiz, e não sem uma tonelada de medo e outra de vergonha sobre os ombros. Como previsto, minha mãe se enfureceu. Ira, cólera, raiva, ódio – todas essas são palavras bonitinhas para descrever o que ela sentiu. Ela ficou foi puta da vida mesmo! Se eu não fosse seu filho, era capaz de me jogar no rio mais próximo.


Mas depois do vendaval de palavrões – que minha vó define certeiramente como pisa de língua -, era chegada a grande hora, a do cacete, a do pau, a da porrada propriamente dita. Eu já chorava de véspera, quando, do céu, minha tia, que passara o dia todo lá em casa ajudando minha mãe, interviu – e não é que ela conseguiu conter a fera?-, me salvando do cinturão de couro e do cipó de goiaba.


Senão fosse ela (ah, se todos no mundo fossem iguais a você, tia), eu teria levado um pito daqueles inesquecíveis. Grato!


E a moral da história para o ano recém-chegado? Moral, não arriscaria. Mas sugestões, tenho algumas: siga à risca as orientações da sua mãe, evite andar no mundo da lua, tente ao máximo manter sua atenção e sua concentração, jamais guarde dinheiro no cós das calças – e, se nada disso der certo, reze para ter uma tia brodági ao seu lado.

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