Os sete pecados das capitais [Toxicomania] III

16.2.13 Cabotino 0 Comentarios


                                                         TOXICOMANIA


         Uma pasta de plástico presa entre as pernas e ninguém com a delicadeza para segurá-la aquela altura no coletivo lotado que levava ao centro a força de trabalho remunerada que vinha do subúrbio, a atual máscara de Flandres é um contracheque no fim do mês – “seu eu fosse uma mulher gostosa no instante algum filho da puta pedira para segurar a minha pasta” – pensava F. ao som de Much Too Much do The Who que vinha do fone de ouvido do seu celular. Na pasta tinha seus “papeis”: identidade, CPF, titulo de eleitor, reservista, fotos ¾ e comprovante de residência – Rua da Amargura S/N – isso mesmo, F. estava a procura de emprego e a caminho da Agência do Trabalho.
            Ao saltar do ônibus F. se sentiu um pouco aliviado, porém a cidade lhe tragou em um único gole quente e seco, a fumaça sépia e o CO2 penetrou-lhe as narinas e foi direito ao pulmão que lhe respondeu em meio à multidão – aquela orgia de impessoalidade – a necessidade de nicotina, F. estava sem cigarros, só com uma caixa de fósforos úmida de suor em seus bolsos – sentia-se um Nero sem Roma, sem emprego, sem dinheiro e arrotando suco gástrico - Baco havia lhe abandonado em meio ao mormaço da metrópole.
            Ao chegar a Agência do Trabalho para ver se conseguiria alguma coisa, pegou a ficha 197! E foi acompanhando lentamente a sucessão dos números via painel eletrônico. O salão de espera estava lotado, todos os lugares preenchidos, pessoas em pé, mas aliviadas pelo ar-condicionado central, os corpos descansados como vacas hindus em filas indianas assistindo a um desenho animado idiota que vinha da televisão high definition. Neste instante um “Coroa” que estava ao lado de F. levantou-se, talvez tivesse chegado o seu número, pouco importa, o que chamou a atenção de F. foi que ao levantar-se o “Coroa” deixou cair a sua carteira de cigarro, F. discretamente apanhou-a e a pôs sob a camisa, tapeou um tempo e depois foi lá pra fora dar cabo de seu “despojo” e racionalizando o seu gesto com estas divagações: o que é a virtude diante do vício? No vício e no amor... O vício esta para as grandes cidades assim como a missa aos domingos para as pequenas etc. acendeu o cigarro fuuuuuu...uhhhh... a fumaça foi direito ao cerebelo e cantarolou depois de cuspir no chão: “Your love is hard and fast/ Your love will always last If it's you I need /I've got to pay the levy Got to pay /Cause your love's too heavy on me, fuuuuu...uhhhh...

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Os sete pecados das capitais [Velocidade] II

16.2.13 Cabotino 0 Comentarios



VELOCIDADE

         Cidade Olho - Na tarde de ontem um grave acidente parou o trânsito no cruzamento da Rua Polis com a Autoban, próximo da Faculdade Panóptico, o estudante universitário – C. G. Frias, 23 anos – colidiu a sua moto 500 cilindradas com um poste da afiação pública. Populares disseram que ele tentou livrar o quebra mola pelo espaço entre o mesmo e o da canaleta e chocou-se com o poste de concreto. O IML isolou o local e limpou a área dos destroços da motocicleta e também do que sobrou do corpo, o impacto foi tão grande que apesar de usar capacete, uma mecha do cabelo da vitima podia-se ver grudada no poste que estava envergado devido à violência do impacto.
Alguns estudantes da Panóptico que conhecia a vítima e que se encontravam no local disseram que ele havia acabado de ganhar a motocicleta do pai, por ocasião de seu aniversário, e que tinha dito momentos antes do acidente, a um grupo de amigos que conversavam na Rua Hedonismo - “moto nova precisa amaciar o motor rápido”-.
A polícia estará investigando o caso e já detém as imagens do eficiente circuito de câmeras de vigilância da Cidade Olho, haja vista, o poste que sofreu o acidente possuir uma câmera de monitoramento.
 A nota destoante da matéria vem do oficial de trânsito J. G. Soares, 36 anos, que falou a nossa equipe sobre o procedimento que deverá ser seguido após o acidente, segundo ele, com a efetivação do novo código de trânsito, a família da vítima será responsabilizada pelo ressarcimento aos cofres do município pelo prejuízo causado ao patrimônio público, ou seja, terá que pagar um poste novo.

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Família Grão de Trigo

12.2.13 Calil Madrazzo 1 Comentarios



O menino via tv freneticamente, o pai alcoólatra acabara de chegar e nem um cheiro nele deixou ao não ser o de cachaça. Andava cambaleando de um lado para o outro como quem quisesse medir a área da casa em passos. A mãe chorava inconsolada e trancada em seu quarto, um choro sem remédios, sem correções.

O menino já não aguentava mais ver tv, ler livros, jogar vídeo games e consolar a mãe. O pai já não aguentava mais beber, ficar bêbado, bater na mulher e no menino e ir trabalhar. A mãe já não aguentava mais o chorar e a dor que acalentava suas noites sem sono.

A traição começava na sexta e terminava no domingo à noite, sempre regada por Baco, Dionísio e Satanás. O sofrimento começava desde a ilusão do casamento, do nascimento dos filhos e da vida conjugal. O tédio continuava na tv, nos livros e nas amizades.

Enquanto o menino fazia de conta que estava tudo bem, tudo certo, a mãe fazia de conta que tudo ia mal. Já o pai, este apenas fazia. Submissão, despreocupação, irritação.

- “Sua mãe devia tê-lo jogado fora e ficado com a cegonha!!”

O menino encenava uma cara de quem se comovia com as frases prontas que o pai lhe dizia e depois retornava a seus afazeres, refletindo com São João: “é foda, se um grão de trigo caído em solo fértil morrer, produzirá muitos frutos, mas, se caída em terra e não morrer...” 

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as minhas mortes

4.2.13 Joarez 2 Comentarios


                                                                                           E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,E que o poente é belo e é bela a noite que fica.Assim é e assim seja. (PESSOA, Fernando)


Parou em cima da ponte, numa hora de pouco movimento, para olhar o rio. Aproveitou e, também, puxou do king size existencial o mais reflexivo cigarro de que já se teve notícia. Pôs-se a pensar na vida. Ou melhor, na morte. 

Olhando para o canto direito superior, lá longe, onde a vista alcançava, enxergou um barranco enorme, repleto de mato e pensou no menino que morreu, ali, empinando pipa. O menino que ele foi, e que foi morto pela vida, pelas impossibilidades, pelas limitações. Já, agora, de barba e bigode na cara, não se imaginava jogando uma pipa ao ar, perdendo a tarde leve, numa brincadeira leve. Mas muito antes disso, quando a voz começava a engrossar, já lhe cobravam maturidade, já tentavam matar o menino. E conseguiram, foi meu primeiro sepultamento.

Atrás do barranco, no lugar onde deveria estar o "Poeirão", maior campo de futebol das redondezas, agora se erguia um condomínio da Tenda. Chegaram, e, de uma hora pra outra, derrubaram as traves do Poeirão; retiram os troncos que serviam de banco para os reservas ou de assento para os espectadores; planaram o terreno; puseram de pé mais um prédio. Ninguém sabe como foi isso, nem em que termos se deu a escusa negociação com a prefeitura. Eu morri aos poucos, enquanto o edifício se erguia, imponente. Cada tijolo sedimentado naquela construção era um uma gota de sangue que eu perdia, até morrer, lentamente, morrer.

Mas não estavam contentes - pensei, até, que houvessem armado um complô contra mim. Não demorou para que, na direção oposta ao campo de futebol, apontando para o sul, levantassem outro prédio. Ele ficava exatamente na frente da mata mais grandiosa e bela que minha vida já viu. A mata que eu via todos os dias e que fazia parte da minha geografia sentimental. Que golpe duro: me roubaram a visão da mata, me roubaram o horizonte, me roubaram um pouca da minha pouca esperança. Chorei durante dias, silenciosamente, a perda de perspectiva que me impuseram. Depois, despenquei no chão morto, morto demais.

Ingênuo, como um garoto interiorano, pensei que isto fosse o ápice. Quanto engano: era apenas o começo. Depois disso, o bonde maluco do progresso pululou por todos os lados. Os edifícios eram tão rapidamente erguidos, que aos meus olhos lentos, pareciam que brotavam do chão. E eu passei a morrer cada vez mais frequentemente: morri quando morreu Seu Chico, e nunca mais sua carroça azul voltou a ser vista; morri quando proibiram as festas de São João no quartel do Exército; morri quando transformaram a escola em restaurante; morri quando morreram os meninos como eu e ninguém, nunca mais, pôs trave de sandálias no meio da rua; morri quando as distâncias físicas se tornaram maiores, e as fraternas, intransponíveis.

O cigarro já está acabando. Não vou jogar a bituca no rio para não matá-lo ainda mais. Ele que, há tanto tempo, está tão morto. Tão morto que nem reparou que só esse mês eu morri mais duas vezes.



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