Desloucamento de retinas
Sempre ouvir dizer que quem
costuma ler em ônibus poderá ter um deslocamento de retina. Talvez seja verdade
essa previsão, embora nunca tenha conhecido alguém que tenha de fato sofrido
esse, digamos assim, acidente de percurso.
Cresci num bairro longe de tudo
que é próximo e próximo de tudo que é longe. Com isso, até hoje, costumo fazer
inúmeras viagens de ônibus. Das ambivalências da vida uma sempre me chamou
atenção: há uma vantagem para quem mora no último ponto da linha de ônibus, o
chamado terminal [sou um passageiro
terminal] que é poder viajar sentado.
Por conta dessa particularidade
[ou infortúnio] que mencionei no parágrafo anterior, fui obrigado a desenvolver
técnicas anti-tédio. E são poucos os recursos contra a bílis negra provocada pela rotina diária do “qual o lado da sombra, cobrador?; Uma ajuda em nome de Deus, bênçás! A um pai de família desempregado” do
que a prática da leitura.
Já chorei de emoção ao terminar
um romance do Josué Montello enquanto ônibus atravessava a desgraçada Av. Sul.
Já desejei a morte de um evangélico que estava atrapalhando, com sua pregação
ruidosa, a leitura de um hermético parágrafo de Max Weber. Já gaitei de rir,
gostosamente, numa passagem de Incidente
em Antares, sentado ao lado do sol, em pleno mês de janeiro.
Leio em ônibus há mais de 15
anos. Meus olhos até se acostumaram a ler em movimento. Parece que a brochura ao
ser arreganhada defronte aos meus olhos faz as palavras deslizarem macias sobre
as superfícies arredondadas da armação de meus óculos. As palavras saltam sobre
as lentes e deslizam pedalando – da esquerda para a direita – sobre as ruas de
resina da frente dos meus olhos e, com isso, constroem paisagens de palavras
enquanto outras paisagens são deixadas pra trás através das janelas.
Com o tempo, alarguei minha
experiência de ler em ônibus para outros lugares, justamente à medida que as
demandas por mais leituras se ampliavam, da graduação à pós. E como o Brasil é
um país que foi inventado e eternamente reiventado pela burocracia, moramos num
país que é uma eterna sala de espera,
comecei a ler nos entreatos dos atendimentos: bancos, estabelecimentos de
saúde, rodoviárias, cartórios, Correios... Nas
horas mortas dos entreatos procuro a vida em meio às boias-salva-vidas das
brochuras dos livros.
Leio em tudo que é lugar e em
tudo que é ambiente [com calor, barulho, etc.], por conta disso, talvez, tenha
desenvolvido essa característica onívora no tocante à diversidade de leituras.
Me interesso por tudo para tentar aplacar o tédio que é, ao cabo, sempre algoz
de qualquer ímpeto ou curiosidade – o tédio tem uma saúde de ferro.
Com tudo isso, minhas retinas
acostumaram-se com o deslocamento, diria mais, elas estão desloucadas. O neologismo é quase autoexplicativo. Porém acrescentarei
que não há mais jeito para minhas fatigadas retinas. Onde elas deitam sua
atenção as coisas tremem. Minhas retinas esquadram tudo com uma frequência de
Escala Richter. Vejo tudo em movimento e sei que isso não é fruto exclusivo da opticocracia contemporânea, mas não
posso fazer muito por esse par desloucado
habituado a ler esse mundo deslocado.
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