Boi Neon - gêneros em rotação
Agreste
nordestino. Um caminhoneiro despeja retalhos de tecido sobre o massapê. A
paisagem estoura num plano aberto onde o chão encontra-se colorido. Um vaqueiro
perambula pelo terreno e cata do chão alguns tecidos. Em seguida, retira o par
de Havaianas e vai afundando
lentamente os pés à medida em que avança sobre a lama formada pelas recentes
chuvas no terreno. Ele busca um manequim feminino que também compõe o indevido
lixão da indústria têxtil. Em seguida, regressa carregando as partes do
manequim e com os bolsos repletos de nacos de tecidos.
A
cena descrita acima é uma das iniciais do filme Boi Neon (Gabriel Mascaro, 2015), o vaqueiro que a protagoniza é o
robusto Iremar (Juliano Cazarré) que está preparando um modelo de roupa para
Galega (Maeve Jinkings). Até aí a única coisa destoante é a figura do vaqueiro
estilista. Duas profissões que não costumam andar juntas em um mesmo corpo.
Singer e esporas são como água e azeite em nosso imaginário formado no
binarismo patriarcalista nordestino: costura/mulher versus pecuária/homem. Com o decorrer da narrativa veremos que a
figura do vaqueiro estilista é apenas mais uma combinação de elementos em
dissidência com nossas expectativas.
Boi Neon consegue
com leveza e graça embaralhar, tal qual um brejeiro redemoinho, os signos de
gênero até então assentados em nosso inconsciente coletivo. E faz isso numa espécie
de crônica de costume que carrega consigo as habituais contradições do
progresso brasileiro: fuga para a frente.
Desta
vez, o progresso leva as marcas do Lulismo: as paisagens verdejantes do agreste
nordestino contrastam com gasodutos e termoelétricas; o circuito das vaquejadas
com as tradicionais marcas da política – como um dos parques que leva o nome
Cunha Lima em seu frontispício – coabita com modernos shoppings centers. É o
Brasil de vento em popa da indústria têxtil e do agronegócio. O Brasil da
avançada engenharia genética animal. Mas ainda é o Brasil dos filhos que não
conhecem os pais, não frequentam escolas. É o Brasil que homens, mulheres e
crianças, para sobreviverem, necessitam fundirem-se no modo de vida animal:
como bois/cavalos/homens mascando amido/arroz com água/café. É o Brasil que
veste e alimenta o Litoral. E o Litoral veste-se e alimenta-se de roupas e
comidas alienadas. O Litoral mira o Atlântico Norte, seja a Florida ou Paris.
A
criança que não conhece o pai e não frequenta a escola chama-se Cacá (Aline Santana). Galega é
a mãe de Cacá e trabalha transportando bois para abastecer o circuito das
vaquejadas nas cidades do interior nordestino. Além das duas e dos bois, vão no
caminhão o vaqueiro estilista Iremar, e mais dois vaqueiros: o bonachão Zé
(Carlos Pessoa) e o sisudo Mário (Josinaldo Alves). Curiosamente, Cacá não
viaja na cabine com a mãe motorista, mas sim na boleia junto com os vaqueiros e
os bois.
Cacá é uma menina por volta dos dez anos que leva uma vida de adulto, mas não “é antes de tudo uma forte”. Ela é uma criança que chora desbragadamente por levar uma queda; almeja conhecer o pai, quer ter atenção e carinho. Mas é intempestiva. Bate-boca com adultos e desafia a mãe. Em uma palavra: é uma equestre ao redor de um mundo bovino.
Galega
é uma mulher com veleidades artísticas que, com o auxílio do trabalho de Iremar,
costuma apresentar-se na noite, montada em modelitos onde misturam-se bicho e
gente como se fosse uma espécie de: dominatrix paramentada de centauro. Mas é
uma mulher que dirige um caminhão e concerta-o sozinha. É mãe solteira e
depila-se com cera quente sem fazer cara feia.
À
medida que o filme avança percebemos a evolução dos personagens não apenas no
tocante ao desdobramento da narrativa, como também na própria força dramática
que emana deles. E aí é fundamental o trabalho da preparadora de elenco, Fátima
Toledo (preparou os atores de Cidade de
Deus, dentre outros trabalhos) especialmente quando surgem os personagens
de Junior (Vinicius de Oliveira) e Geise (Samya de Lavor).
Junior
é um vaqueiro com características pouco usuais para a imagem tradicional que
temos do ofício: usa aparelho ortodôntico, faz chapinha no cabelo, e possui
gestos afeminados. Mas, como em Boi Neon a
primeira impressão jamais é a que fica, as ações de Junior desmentem a imagem
que vemos e automaticamente prognosticamos sobre seu futuro na economia
emocional do filme.
O
longa-metragem é montado em uma dialética negativa: expectativa do papel de
gênero versus ruptura na expectativa.
E como toda dialética negativa: não há síntese. Os signos sobretudo de gênero
estão em constante rotação: tese versus antítese
e vice-versa.
Os
papeis sociais de gênero no filme são tão fixos quanto um prego fincado na
areia.
Já
a personagem de Geise é a que mais tenciona os papeis sociais de gênero: mulher
grávida com tripla jornada de trabalho – casa e dois empregos –, vende
cosméticos de porta em porta e trabalha como vigilante de uma fábrica de roupas
à noite, armada com um 38 no coldre do uniforme. Mas, não declina frente aos
seus desejos, especialmente, os sexuais. A cena final protagonizada por ela e
Iremar é um momento de rara beleza e coragem do cinema nacional: a luz em plongeé no ventre de Geise é um brado
contra à caretice e à tacanhez de nossa atual conjuntura sócio-política.
Boi Neon é
o segundo filme ficcional de G. Mascaro e dentre os seus recentes trabalhos,
talvez seja o que menos radicaliza os limites da forma de narração. Porém, o
longa traz elementos que tencionam as fronteiras nem sempre maleáveis de um
segmento da cultura brasileira: os papeis sociais na relação de gênero. Ver
vaqueiros passando roupa, costurando, cozinhando, tomando banho em conjunto e
sem pudor, mulheres grávidas portando arma de fogo, trabalhando com mecânica,
escolhendo parceiros para transas casuais, é de fato uma escolha política. E
uma política progressista em tempos de conservadorismo político e moral.
Ética
e estética vão de mãos dadas em Boi Neon,
cosendo a trama como linha e agulha. Do traçado, um bordado divertido que
amarra a narrativa com um sotaque infelizmente fetichizado ou caricaturado na
tevê e no cinema nacional produzidos sobretudo no Eixo. Há no filme um Brasil
em transformadora ebulição não apenas no desencadeamento das forças produtivas
oriundas do Lulismo, como também nos costumes. E esta última dimensão nos é
apresentada sem exagero na tinta, sem personagens estereotipados, enfim, sem
causa-e-efeito.
Por
último, em Boi Neon não é apenas a
tradição que funde-se com a modernidade e vice-versa, no interior da cultura
vaqueira, há uma justaposição de camadas simbólicas e materiais em constante
sobreposição. É o bicho tornando-se gente; são as cores convertendo-se em
nomes; o feminino transformando-se em masculino e tudo isso sem síntese –
dialeticamente negando os apriorísticos de nossas expectativas.
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