A beleza ignorada

25.11.15 Unknown 0 Comentarios


Pouco prato não compensa lavar. A verdade é essa. Pouco prato é resíduo, coisa pouca. Ninguém liga para pouco prato. E a atividade é tão curta que a gente nem chega no nível da reflexividade - não dá para pensar na vida. Mas uma pilha de pratos, não. Uma pilha de pratos impõe respeito. As pessoas a olham de soslaio, amedrontadas. E quando você resolve topar a empreitada, se prestar a atenção direito, vai ver alguém comentando com o vizinho: "Olha lá, está nascendo um novo líder.". Além da gravidade e da sisudez subitamente adquiridas pelo respeito endereçado a você por quem lhe rodeia, lavar uma pilha de pratos é um exercício terapêutico. Serve para repassar os últimos acontecimentos, ponderar atitudes, relembrar as contas a pagar, maturar a ideia para uma crônica, digerir o argumento do texto não compreendido nas primeiras horas da manhã, etc. Tudo isso enquanto você desfaz o monte, organiza-o por seções: talheres, copos, pratos propriamente ditos, twpperwares e outros vasilhames, panelas por último, é claro, e, lentamente, vai lavando. Lavando, não. Construindo paulatinamente, e com muito esmero, sua obra prima - tal e qual os galos de João Cabral tecem a manhã. Porque a grande obra prima de quem asseia os pratos e areia as panelas é a pia e a cozinha limpíssimas. É a sua grande recompensa, o fruto do seu trabalho, a inigualável façanha. Para o(a) preguiçoso(a) ou para o(a) neófito(a) nas artes domésticas, a tarefa se encerra quando a última peça da louça é enxaguada. Negativo. Enquanto o escorredor deixa fluir a água oriunda do seu primeiro esforço, é hora de pôr no lixo o rejeito de comida acumulado no ralo, e de jogar fora o próprio lixo; depois, limpar e enxugar a pia; o mesmo com o fogão. O fogão limpo, com a tampa de vidro abaixada a cobrir as bocas, e, por cima dela, a indefectível toalhinha branca, é a cereja do bolo. É o ápice da organização da cozinha. É motivo de orgulho e digno de contemplação: você senta numa cadeira, apoia o cotovelo na mesa, o queixo na mão, e aprecia a sua realização. Mas, dentro em pouco, uma dessas pessoas empedernidas que se prendem no quarto e assistem qualquer coisa na Netflix, vem e arremessa sem cerimônia um prato, um copo, junto com a embalagem de um industrializado qualquer. O respeito conseguido há pouco se esvai na rotinização - e sua obra, já pouco sólida, se desmancha no ar. Faltou deferência, sensibilidade, empatia, consideração - faltou até ternura, diria eu. Oh, que vida injusta!

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O encontro do pau freudiano com a buceta niilista

17.11.15 Foi Hoje! 0 Comentarios


Foi foda pra tudo quanto é lado. Foda por cima de foda. Fodia pra viver, vivia pra foder. E tome-lhe foda. O consultório do pau freudiano recebia a buceta, Buceta que era niilista de final de semana. Foda terapêutica. Muito choro, gozo, alegria, culpa judaico-cristã-de-cu-é-rola, vá estudar a civilização ocidental. A era dos extremos, ou das trepadas extremas sem espaços pra gozo liquido, nem gala rala. Mal-estar na civilização: interromperam uma foda no Bataclan, outra na várzea, ali perto da Polidoro. Jogador que é jogador beija o gramado antes de entrar em campo e suja a espada se for necessário. Gala, saliva e merda. Freud explica.

por Codinome Beija-flor

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A dor da gente não sai no jornal

16.11.15 Cabotino 0 Comentarios


"Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
John Donne, Meditações VII.

por RENATO K. SILVA

Os recentes ataques terroristas promovidos pelo Estado Islâmico ocorridos na última sexta-feira (13/11), nas ruas de Paris, com mais de 120 vítimas, reacendeu uma macabra onda de comparações de tragédias sobretudo nas redes sociais. Não bastasse a estupidez e a postura ignóbil de tais comparações, tal qual ocorrera no início do ano com os ataques ao periódico Charlie Hebdo, quando a campanha “Je suis Charlie” transbordou as redes sociais e ganhou à civilização Ocidental, a da última sexta-feira trouxe o mesmo estreitamento de raciocínio e indiferença frente à dor alheia. Quando se vive uma época onde o luto do Outro é legislado a partir de uma lógica comparativa da quantificação da tragédia, é preciso repensar nossas posturas de uma maneira radical, do contrário, as hecatombes sejam naturais ou antrópicas, serão iguais ao modus operandi de um sinistro filatelista: minhas desgraças são maiores, mais raras e mais numerosas que a suas.

Argumenta-se que qualquer incidente na França (leia-se também qualquer país de posição central na produção de bens simbólicos e materiais no capitalismo) seja ele natural ou antrópico, mobiliza milhões de simpatizantes à causa. É evidente que o mundo Ocidental condoer-se-á com as nações pares. Quando falo em pares refiro-me ao conjunto de comunidades imaginadas (nações) erigidas no tripé cultural legados especialmente por: Grécia, Roma e o Cristianismo.

A identificação do mundo ocidental frente às tragédias ocorridas na França este ano levanta duas hipóteses: a primeira é que a França carrega um capital simbólico fundando a partir da Revolução (1789) em que a Igualdade, Liberdade e Fraternidade foram a bandeira tricolor que envolveu o novo homem ocidental nascido das cinzas do Ancien Régime, por intermédio das ideias do Iluminismo que despojou o poder civil (Estado) de sua malfadada união com a Igreja. Esta que legitimava a dominação do povo pelas dinastias atribuídas de uma pretensa autoridade divina. Em uma palavra, a Revolução Francesa nos foi ensinada como um “Novo Testamento” na História Mundial. Isso demonstra que mesmo não sendo a grande potência econômica mundial, a França ainda detém uma relativa aura de guardiã dos valores que orientaram e orientam as democracias e, por conseguinte, o modo de vida deste lado de cá do globo terrestre.

A segunda hipótese é uma extensão da primeira e aqui falarei mais detidamente sobre a relação das tragédias na França com sua ampla adesão solidária nas redes sociais. Foi o sociólogo norte-americano Charles Wright Mills que falou: “A história do homem moderno é a história mundial”, com esta sentença construída no frenético decênio de 1960, onde o semiólogo canadense Marshall McLuhan dizia que estávamos vivendo em uma “Aldeia Global”, o homem moderno a partir de então começou a deparar-se com problemas que antes não fazia parte do seu cotidiano, ou se fazia, vinha com um relativo atraso.

Dos anos 1960 para cá, com a radicalização do processo de globalização, as fronteiras do tempo e do espaço só fizeram diminuir. Ou seja, a simultaneidade de eventos e fenômenos mundiais não são mais recepcionados com atraso. Eles são recebidos ao vivo em nossas algibeiras por meio dos nossos smartphones. Não só a história moderna passou a fazer parte de nossas vidas como também sentimo-nos parte dela por uma estranha sensação de intimidade que, acredito, seja atribuída à própria proximidade dos dispositivos móveis rente aos nossos corpos. A narrativa (ou epopeia) do homem contemporâneo é a tecnologia, e esta modifica profundamente nossa relação com o próximo (mesmo distante) e com a história do nosso tempo.

As pessoas que modificaram os avatares no perfil Facebook para “Je suis Charlie” ou para o tricolor da bandeira da França que, não é demais lembrar, significa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade é por que a França está mais próxima delas do que por exemplo o município de Mariana (MG); ou de uma hecatombe em Nairóbi, Jacarta ou até de uma chacina da PM na periferia de sua cidade. Ora, se fizermos um breve exercício de investigação, veremos que esta pessoa que mudou o avatar do seu perfil no Facebook, provavelmente fez ou faz um curso superior, se for de humanas, a bibliografia que lê é eminentemente francófila assim como a literatura e os filmes da nouvelle vague que usufrui.  


Então quer dizer que a compressão do tempo e espaço na história mundial que é a história do homem contemporâneo é seletiva? Sim, é seletiva porque o mercado de bens simbólicos é dominado por grupos e corporações multimídias que enfatizam certas notícias e certas reportagens em detrimento de outras. Se não mostra uma chacina da PM ocorrida na periferia de uma capital brasileira é porque há interesses envolvidos para que não se veicule tais informações. Outra, o Facebook é uma multinacional – de origem estadunidense – e ela cria os avatares que lhe interessa. Porque a empresa de Mark Zuckerberg não cria avatares contra a Prisão de Abu Ghraib ou a Base de Guantánamo? Acredito que não é do interesse da empresa arrumar briga com Washington.

Em suma, o que não dá para aceitar é o pensamento vil de fazer comparações de tragédias ou pôr o dedo em riste no teclado bradando ou compartilhando informações desta natureza: “a França está colhendo os frutos do intervencionismo no Oriente Médio”, como se a barbárie da intervenção francesa justificasse a barbárie do Estado Islâmico. Ou também desdenhar da dor alheia por achá-la alienada das dores nacionais. Não há alienação na dor tampouco hierarquia. Se a dor do outro não lhe diz nada ou se acreditas que ela seja pura vaidade, o mínimo que deves fazer é silenciar diante dela e não tripudiar porque quando banalizamos a dor do Outro, por extensão, estamos banalizando a nossa.

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Escritor e doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.   

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Previsões astrológicas: Câncer, Leão e Virgem

12.11.15 Cabotino 0 Comentarios




CÂNCER 

Está na hora de rever velhos projetos e aproveitar a ocasião para realiza-los, pois sua Lua entrou na órbita de Júpiter, o que evidentemente não quer dizer nada. Mas antes de começar a efetivá-los, faz-se necessário você segurar seus ímpetos autodestrutivos. Você está se drogando muito. Não é por que a perspectiva de um emprego melhor estar indeterminada que você afundar-se-á na dissolução etílica. Urge você ouvir mais as pessoas ao seu redor. Acredite, elas têm o que dizer e podem aconselhar-te a ter boas resoluções, sobretudo seu cônjuge. Outra coisa: as pessoas não têm nada a ver com sua mudança repentina de humor. Segure sua rabugice porque quem está ao seu lado também poderá mudar de humor e azedar toda a relação. Ninguém tem paciência bovina para aguentar suas oscilações. Por fim, é urgente você arrumar sua casa. Fazer uma faxina nos cômodos que estão uma tremenda bagunça. Para arrumar a vida é necessário antes organizar a casa, haja vista, esta ser a sua concha onde te escondes dos ataques "externos". 

LEÃO

É tempo de cautela para o leonino por conta do Sol estar eclipsado por Urano, isto é, o elemento fogo está enfraquecido. Portanto, cautela com os aproveitadores que irão se aproximar por sentir sua fraqueza. Eles irão lhe pedir dinheiro emprestado, vão ligar a cobrar e falar de você pelas costas sobretudo nas redes sociais. Fique atento. Por encontrar-se vulnerável, o leonino não deve confundir repouso com comodidade. Antes, mais vale levantar a caveira e ir trabalhar do que ficar de um lado para o outro dentro de casa postergando todos os projetos que estão parados. Deixe de preguiça. Tome cuidado com os excessos porque não é o céu o limite, mas sim seu corpo. É aconselhável você baixar a bola porque um pouco de humildade assim como canja de galinha não fazem mal a ninguém. Também é aconselhável você aliviar o “nó” de autoridade misturada com afeição que atas naqueles ao seu redor. Por último, se masturbe com mais frequência, pois seu parceiro não é apenas um repositório de seus rompantes sexuais. 

VIRGEM

Virginiano, preste atenção: o universo e os zodíacos são indiferentes a qualquer um de nós. Por isso vá à luta. Vá viver. Há um mundo todo lá fora esperando suas bobagens, seus melindres e suas taras. É preciso se sujar na lama fresca da experiência. Higiene e experiência são palavras rivais. Uma vida em toda a sua potencialidade, tal qual uma boa trepada, só são possíveis se nos lambuzarmos, nos sujarmos no limite da experiência com o Outro. Antes de lançar-se ao mundo, cabe despojar-se do seu “vestuário” moral. Seus valores estão em dissidência com as atuais. E como você não é Dom Quixote para lutar contra moinhos de vento jurando que são dragões, permita-se ao duvidoso, ao incerto e aos sites pornôs que você tanto teme acessá-los por escrúpulos metafísicos démodé. Ame mais e seja flexível com suas expectativas, pois elas são criadas pelo seu ascendente. E está na hora de mandá-lo se foder.

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Boi Neon - gêneros em rotação

10.11.15 Cabotino 1 Comentarios


por RENATO K. SILVA

Agreste nordestino. Um caminhoneiro despeja retalhos de tecido sobre o massapê. A paisagem estoura num plano aberto onde o chão encontra-se colorido. Um vaqueiro perambula pelo terreno e cata do chão alguns tecidos. Em seguida, retira o par de Havaianas e vai afundando lentamente os pés à medida em que avança sobre a lama formada pelas recentes chuvas no terreno. Ele busca um manequim feminino que também compõe o indevido lixão da indústria têxtil. Em seguida, regressa carregando as partes do manequim e com os bolsos repletos de nacos de tecidos.

A cena descrita acima é uma das iniciais do filme Boi Neon (Gabriel Mascaro, 2015), o vaqueiro que a protagoniza é o robusto Iremar (Juliano Cazarré) que está preparando um modelo de roupa para Galega (Maeve Jinkings). Até aí a única coisa destoante é a figura do vaqueiro estilista. Duas profissões que não costumam andar juntas em um mesmo corpo. Singer e esporas são como água e azeite em nosso imaginário formado no binarismo patriarcalista nordestino: costura/mulher versus pecuária/homem. Com o decorrer da narrativa veremos que a figura do vaqueiro estilista é apenas mais uma combinação de elementos em dissidência com nossas expectativas.


Boi Neon consegue com leveza e graça embaralhar, tal qual um brejeiro redemoinho, os signos de gênero até então assentados em nosso inconsciente coletivo. E faz isso numa espécie de crônica de costume que carrega consigo as habituais contradições do progresso brasileiro: fuga para a frente. 

Desta vez, o progresso leva as marcas do Lulismo: as paisagens verdejantes do agreste nordestino contrastam com gasodutos e termoelétricas; o circuito das vaquejadas com as tradicionais marcas da política – como um dos parques que leva o nome Cunha Lima em seu frontispício – coabita com modernos shoppings centers. É o Brasil de vento em popa da indústria têxtil e do agronegócio. O Brasil da avançada engenharia genética animal. Mas ainda é o Brasil dos filhos que não conhecem os pais, não frequentam escolas. É o Brasil que homens, mulheres e crianças, para sobreviverem, necessitam fundirem-se no modo de vida animal: como bois/cavalos/homens mascando amido/arroz com água/café. É o Brasil que veste e alimenta o Litoral. E o Litoral veste-se e alimenta-se de roupas e comidas alienadas. O Litoral mira o Atlântico Norte, seja a Florida ou Paris.

A criança que não conhece o pai e não frequenta a escola chama-se Cacá (Aline Santana). Galega é a mãe de Cacá e trabalha transportando bois para abastecer o circuito das vaquejadas nas cidades do interior nordestino. Além das duas e dos bois, vão no caminhão o vaqueiro estilista Iremar, e mais dois vaqueiros: o bonachão (Carlos Pessoa) e o sisudo Mário (Josinaldo Alves). Curiosamente, Cacá não viaja na cabine com a mãe motorista, mas sim na boleia junto com os vaqueiros e os bois.
  
Cacá é uma menina por volta dos dez anos que leva uma vida de adulto, mas não “é antes de tudo uma forte”. Ela é uma criança que chora desbragadamente por levar uma queda; almeja conhecer o pai, quer ter atenção e carinho. Mas é intempestiva. Bate-boca com adultos e desafia a mãe. Em uma palavra: é uma equestre ao redor de um mundo bovino.
 

Galega é uma mulher com veleidades artísticas que, com o auxílio do trabalho de Iremar, costuma apresentar-se na noite, montada em modelitos onde misturam-se bicho e gente como se fosse uma espécie de: dominatrix paramentada de centauro. Mas é uma mulher que dirige um caminhão e concerta-o sozinha. É mãe solteira e depila-se com cera quente sem fazer cara feia. 

À medida que o filme avança percebemos a evolução dos personagens não apenas no tocante ao desdobramento da narrativa, como também na própria força dramática que emana deles. E aí é fundamental o trabalho da preparadora de elenco, Fátima Toledo (preparou os atores de Cidade de Deus, dentre outros trabalhos) especialmente quando surgem os personagens de Junior (Vinicius de Oliveira) e Geise (Samya de Lavor).

Junior é um vaqueiro com características pouco usuais para a imagem tradicional que temos do ofício: usa aparelho ortodôntico, faz chapinha no cabelo, e possui gestos afeminados. Mas, como em Boi Neon a primeira impressão jamais é a que fica, as ações de Junior desmentem a imagem que vemos e automaticamente prognosticamos sobre seu futuro na economia emocional do filme.

O longa-metragem é montado em uma dialética negativa: expectativa do papel de gênero versus ruptura na expectativa. E como toda dialética negativa: não há síntese. Os signos sobretudo de gênero estão em constante rotação: tese versus antítese e vice-versa.

Os papeis sociais de gênero no filme são tão fixos quanto um prego fincado na areia.

Já a personagem de Geise é a que mais tenciona os papeis sociais de gênero: mulher grávida com tripla jornada de trabalho – casa e dois empregos –, vende cosméticos de porta em porta e trabalha como vigilante de uma fábrica de roupas à noite, armada com um 38 no coldre do uniforme. Mas, não declina frente aos seus desejos, especialmente, os sexuais. A cena final protagonizada por ela e Iremar é um momento de rara beleza e coragem do cinema nacional: a luz em plongeé no ventre de Geise é um brado contra à caretice e à tacanhez de nossa atual conjuntura sócio-política.

Boi Neon é o segundo filme ficcional de G. Mascaro e dentre os seus recentes trabalhos, talvez seja o que menos radicaliza os limites da forma de narração. Porém, o longa traz elementos que tencionam as fronteiras nem sempre maleáveis de um segmento da cultura brasileira: os papeis sociais na relação de gênero. Ver vaqueiros passando roupa, costurando, cozinhando, tomando banho em conjunto e sem pudor, mulheres grávidas portando arma de fogo, trabalhando com mecânica, escolhendo parceiros para transas casuais, é de fato uma escolha política. E uma política progressista em tempos de conservadorismo político e moral.


Ética e estética vão de mãos dadas em Boi Neon, cosendo a trama como linha e agulha. Do traçado, um bordado divertido que amarra a narrativa com um sotaque infelizmente fetichizado ou caricaturado na tevê e no cinema nacional produzidos sobretudo no Eixo. Há no filme um Brasil em transformadora ebulição não apenas no desencadeamento das forças produtivas oriundas do Lulismo, como também nos costumes. E esta última dimensão nos é apresentada sem exagero na tinta, sem personagens estereotipados, enfim, sem causa-e-efeito.

Por último, em Boi Neon não é apenas a tradição que funde-se com a modernidade e vice-versa, no interior da cultura vaqueira, há uma justaposição de camadas simbólicas e materiais em constante sobreposição. É o bicho tornando-se gente; são as cores convertendo-se em nomes; o feminino transformando-se em masculino e tudo isso sem síntese – dialeticamente negando os apriorísticos de nossas expectativas.  



Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.

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A inflação das confras

9.11.15 Cabotino 0 Comentarios


Todo fim de ano repete-se o ritual: a movimentação para organizar as confraternizações. É só novembro dar os primeiros passos e inicia-se, junto com os pisca-pisca nas ruas, o alarido dos camelôs, a máfia glutona do Papai Noel e a música da Simone, o clima do Natal. 

Com a aproximação do aniversário do Menino Jesus, assanha-se as repartições públicas, os escritórios, o pessoal da sala de aula, os grupos do WhatsApp etc., todos em prol do reencontro do final de ano. São as confraternizações as grandes responsáveis por manter velhos laços de solidariedade. Assim como a expectativa do banquete pantagruélico regado à comida e bebida – as confraternizações são pavimentadas por Engov e, no dia seguinte, Plasil. 

Nestes encontros, reúnem-se velhas amizades ao redor de muita comida e bebida. Os anos acumulam-se, assim como os quilos na balança. A conversa transita pelos temas de praxes: vida profissional, família, projetos futuros, filhos, e o aumento no preço da cerveja e da carne.



Os homens, geralmente sisudos, conversam amenidades na frente dos seus velhos amigos: um cálculo formado nos rins no ano que passou; a mulher de pernas adjetivas que conhecera indo ao trabalho; o rendimento do seu time no campeonato brasileiro e o novo site pornô que descobriu há pouco.

As mulheres, muitas vezes serelepes, conversam gravidades na frente de suas amigas: um novo cabeleireiro que acertou no corte; a fulana que anda sumida por conta do marido chato; umas varizes que andam incomodando e o último livro do Nietzsche que acabou de ler.

Apesar da grande chatice que muitas vezes envolve as confraternizações especialmente quando as conversas são direcionadas para às atividades do cotidiano, os projetos futuros e a fofoca, é bom rever os amigos e relembrar as presepadas compartilhadas do passado.
Ter os amigos próximos da gente já é motivo de efusão, já que as contingências da vida não permitem o constante contato físico de outrora. Abraçar um amigo, sentir que sua barriga aumentou, os olhos já vão mais apagados, os cabelos prateando, as rugas tomando posse do rosto e outras marcas do tempo, é saber que você fez e faz parte dessa riqueza toda acumulada às duras penas do maçante dia a dia. 

A amizade torna a ideia da morte mais aceitável.

São as confraternizações que atualizam o sentimento de carinho e imprescindibilidade da presença do amigo em nossas vidas, muitas vezes de maneira entediante e cansativa, sobretudo em anos de recessão econômica como o atual. Mas venhamos e convenhamos, mas vale uma cerveja meia boca e não muita gelada na presença de um amigo do que na ausência dele.

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O entreatos de um ex-peão de fábrica

5.11.15 Cabotino 0 Comentarios


por RENATO K. SILVA*

No dia 27 de outubro de 2002, início da tarde, Eduardo Coutinho e equipe, conversam com o metalúrgico Geraldo, na residência deste. O torneiro mecânico, ou peão de fábrica como ele se autoproclama, tinha acabado de voltar das urnas. Geraldo havia votado em Lula para presidente e José Genuíno para governador de São Paulo, ambas votações no segundo turno.

A conversa fazia parte do documentário, Peões (Eduardo Coutinho, 2004) que, junto com Entreatos (João Moreira Salles, 2004) compôs uma mesma produção visando abarcar: a trajetória de Lula durante e após a sua experiência sindical no ABC paulista.

Enquanto a equipe de Entreatos persegue os últimos dias de Lula rumo à ascensão ao Palácio do Planalto, tal qual fizera Robert Drew com J. F. Kennedy no documentário, Primárias (1960) – um dos filmes marcos do chamado “cinema direto” norte-americano –, Peões dedicou-se a acompanhar a trajetória dos peões de fábrica que trabalharam com Lula durante o período das greves no ABC em que, o ex-presidente fora uma das lideranças mais carismáticas, na acepção de Max Weber.

Assistir aos dois filmes é uma experiência seminal para tentarmos entender a gênese do Lulismo enquanto projeto político em sua relação com às bases (os peões de fábrica, futuramente chamados pela sociologia brasileira de “precariado” ou “ralé”) e com os destinos que irão orientar Lula e, por conseguinte, o PT posteriormente (os conchavos políticos e com a classe empresarial com o objetivo de chegar ao poder). 

Em Entreatos podemos ver toda a cúpula do PT ao redor de Lula e acompanhando-o por toda a parte: o desconfiado José Dirceu, Luiz Gushiken, Antônio Palocci, Gilberto Carvalho, o ex-vice presidente José de Alencar e o serelepe Duda Mendonça (marqueteiro do PT nas eleições). Eram os homens mais próximos a Lula nas vésperas do pleito de 2002

Já em Peões a ênfase recai nos “anônimos” que compartilharam as agruras de um período histórico que tratava as questões sociais – no contexto: as disputas entre capital e trabalho – como caso de polícia, final da década de 1970 e início de 1980. Falava-se em anistia, a ditadura entrava na fase da abertura democrática: “lenta, gradual e segura”, mas a situação dos peões de fábrica continuava garroteada pelas arbitrariedades do capital em consonância com um Estado omisso para a causa sindical. Daí o recurso da greve como único expediente político possível naquele momento. E as conversas captadas por E. Coutinho recaem justamente neste período em que os peões e ex-peões carregam na memória experiências marcantes, relatadas com orgulho e certa saudade da época das lutas e da rotina no chão de fábrica, a produção.

Os dois documentários não têm um arremate triunfalista. Em Entreatos há na cena final uma saída de cena condizente com toda a narrativa anterior: Walter Carvalho (fotógrafo do filme) entra no elevador com Lula, Marisa (esposa), assessores e amigos depois que é anunciada a vitória nas eleições do candidato petista, rumo ao saguão do prédio onde mora a família Lula. No térreo, uma multidão de fotógrafos, jornalistas, cinegrafistas e curiosos esperam o mais novo Presidente da República. A câmera de Walter Carvalho vai se distanciando aos poucos e sai de cena, lentamente. O entreatos estava completo.

Em Pões a cena final com Geraldo além de não ter o teor triunfalista, como podemos sentir nas cenas finais de Entreatos em que Walter Carvalho acertadamente deixa para trás, tem uma atmosfera que toca o ceticismo. 



A conversa transcorre-se na cozinha da casa de Geraldo. Este inicia sua fala de maneira alegre. Ainda na efusão do domingo de eleição e da iminência de ver seu ex-companheiro de cetegoria torna-se Presidente da República. Geraldo é o último entrevistado do documentário. 

No decorrer do diálogo, as perguntas de E. Coutinho traz à tona o mal-estar que é viver uma profissão indeterminada. Geraldo já não tem mais emprego fixo. Vive ao sabor das circunstâncias de trabalhos esporádicos (“bicos”). Interpelado sobre o futuro dos filhos (um casal), Geraldo não deseja a eles a profissão que tem. Relembra os tempos da greve do ABC. Fala sobre sua experiência com Lula. Traça uma breve história sobre a gênese da palavra “peão”. Em seguida é indagado se sente saudades do tempo de fábrica: “Sim, com todo o sofrimento... A gente trabalhava sem segurança, sem nada... Eu tenho saudade ainda. Mas, eu gostaria que meu filho não fosse peão [...] Espero que eles não passem o que eu passei... É duro”. Em seguida, um gigantesco silêncio de mais de 20 segundos.

Vemos Geraldo abater-se numa prostração angustiante sobretudo para o espectador habituado a ter todos os silêncios preenchidos por sons tanto na ficção, na tevê e no documentário brasileiro. Mas, E. Coutinho e Geraldo seguram o silêncio e tenciona-o até o ponto em que o metalúrgico consegue emergir do fundo do poço de sua condição e pergunta, à queima-roupa, para E. Coutinho: “Você já foi peão de fábrica?”. Coutinho responde: “Não”. E continua o silêncio até o desligar da câmera e a subida dos créditos.

O silêncio de Geraldo antes e depois de sua pergunta para E. Coutinho, de alguma forma, desconfiava do tom triunfalista amplamente capitaneado pelo marketing político de Duda Mendonça sobretudo no otimista slogan: "A esperança venceu o medo". De fato, havia uma exultação no ambiente social brasileiro por conta da eleição de Lula após três derrotas nos últimos pleitos. Entretanto, havia alguma coisa de sobriedade e cautela naquele silêncio de Geraldo. Parecia que o silêncio do peão antevia o futuro do PT e do Lulismo não como uma profecia de Cassandra, mas como alguém que está diante da indeterminação do seu futuro e, por extensão, de sua família. Era um silêncio destituído de conchavos político e econômico. Um silêncio destituído de marketing eleitoral. Era um silêncio de ferro.

Naquele mesmo 27 de outubro de 2002, Lula sairia das urnas com um capital político de mais de 52 milhões de votos e ficaria no poder até 2010, e com direito a fazer uma sucessora. Mas, a pergunta de metalúrgico Geraldo continua ecoando no interior da sociedade brasileira, ora sendo respondida com um “não”, ora sendo respondida com silêncio.


REFERÊNCIAS

ENTREATOS. Direção: João Moreira Salles. VideoFilmes, 2004. DVD (117 min).






PEÕES. Direção: Eduardo Coutinho. VideoFilmes, 2004. DVD (85 min).








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Escritor e doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.

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Ode à punheta

2.11.15 Cabotino 1 Comentarios


A punheta é a única companheira inseparável do homem. Ela está sempre ali ao alcance de sua mão. 

Quantas vezes ela não salvou-me numa noite de sábado: solitário, sem dinheiro e triste. Ficava no meu quarto pensando, com o pau na mão, se valia ou não tocar uma bronha. Tudo vale a pena se a tara não é pequena. Masturbava-me. Bebia um copo d’água e ia dormir com uma placidez bovina.

Quem bate punheta não toma tarja preta.

O tempo que já gastei punhetando-me daria, com certeza, para escrever dois Guerra e Paz. No duro. Não me arrependo do tempo que gastei masturbando-me, até por que essa atividade lúdica é infensa à lógica capitalista do utilitarismo. 

Quem bate punheta não gosta de bater ponto. 

O punheteiro é o inverso do ascetismo intramundano. 

Ele é o Papai Noel que não fica de saco cheio, nunca.

Acredito que o cara que não se masturba é um forte candidato a cometer um crime sexual. A punheta tem uma função pedagógica, além de uma certa beatitude franciscana da humildade. Se levei um fora; punheta. Se não deu para rolar hoje; punheta. Se o dia foi uma merda; punheta. E assim, de mão em mão, a humanidade foi construindo este edifício social altamente responsável pelas civilizações: o onanismo.

Sem a masturbação, certamente a vida social seria uma quimera.

Existem vários tipos de punheta: tem a punk rock, aquela que não passa de três acordes, dura entre um minuto e meio e dois minutos. Sem floreio, vai direito ao assunto num ritmo frenético e feérico. 

Tem a tipo Bossa Nova, o pau meia-bomba por conta da concentração dissonante do modelo visual que inspirará o esporro. Até localizarmos a nossa “Garota de Ipanema”, ficamos em estranhas escalas no “braço do violão”. 

Tem a punheta hamletiana, que nos deixa cheios de dúvidas: bater ou não bater, eis a questão.

Tem a punheta Fernando Pessoa, aquela que vive mudando de personalidade, ora indo num ritmo moderno-acelerado (Álvaro de Campos); ora num bucolismo (Alberto Caeiro); ora classicista greco-romano (Ricardo Reis) ou finalmente na acedia (Bernardo Soares) em que, misteriosamente, nos vestimos e desistimos, alegando que não vale a pena, nada tem sentido, os astros nos são indiferentes...

O onanismo é o melhor amigo do homem, é o cachorro na palma da mão.

O onanista é o solitário solidário. Pois sabe que nada é pessoal, tanto que a masturbação é uma suposta solidão imersa em uma coletividade. Nunca estamos sozinho, e a punheta é a alteridade encarnada no vai e vem da mão.

Em tempos de “cálculos frios e egoístas”, a punheta nos ensina a partilhar o sensível. Sem ela, muito provavelmente, estaríamos destinados a um descarado interesse pragmático em nossas relações sociais.

A punheta é doce herança romântica em tempos burgueses.

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No vídeo, o curta-metragem: Zézero (1974) escrito dirigido pelo lírico da Boca do Lixo, Ozualdo Candeias. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=mUHaSCfy4R4> Acesso em: 2 de nov. 2015.

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