Águas de junho

30.6.14 Cabotino 0 Comentarios



Os melhores dias do ano vêm com as chuvas, porém os mais tristes também.

Há um quê de insulamento nos dias de chuva, principalmente, para quem vive nesta cidade anfíbia, Recife.

A água que escorre obliquamente do céu e cai por terra ora com calma, ora intempestivamente, e nos fazem abrir guarda-chuvas; procurar uma marquise ou correr sob ela, por isso, sempre achei a chuva um elemento pecaminoso que devemos, às vezes, nos proteger para poder seguir em frente depois.

A chuva é como alguma coisa que despenca dos píncaros da virtude [céu/cultura] e tomba, invariavelmente, pelas frestas do chão [terra/corpo] e gera um sentimento de alheamento, como alguém que acaba de ter um orgasmo.

A água é o elemento mais presente dentro e fora de nós e as chuvas são a prova de que algo nosso bate lá fora e está indo embora. É a vida que escorre e não voltará, mesmo com outro junho ou canalizando-a em cisternas, pois água parada é água morta.

Com as chuvas somos imersos em uma triste e divertida solidão – as águas caem lá fora e cá dentro puxamos os lençóis da existência, nos encolhemos fetalmente para aquecermo-nos em meio ao líquido amniótico dos que nos fazem ter forças para sairmos da cama no dia seguinte, enquanto o vento frio e hostil externo nos impele a ficarmos na cama.

Quando chove, somos mergulhados em uma prostração que não condiz com a nossa condição de seres criados no mundo moderno, ou seja, seres voltados para o movimento das mercadorias, em uma palavra, para o trabalho assalariado onde nossos corpos são a principal mercadoria destituída de sua total potencialidade, alienados porque o seu trabalho não lhe pertence. Acredito que nossos ancestrais tinham o peito menos opresso quando viam a chuva, acho que até trabalhavam sob ela, faziam seus ritos e até transavam.

Hoje, nosso humor é embotado diante da chuva porque fomos privados dela. Não tem como ficar sério quando se toma um banho de chuva com gosto, tal qual quando erámos criança. Ficamos tristes porque gostaríamos de estar lá fora correndo não da, mas com a chuva.

Entretanto, a água é ambivalente, pois se ficarmos macambúzios com ela que cai lá fora, bate algo aqui dentro que nos força a criar alguma coisa. Já reparam quantas vezes não fomos surpreendidos com boas ideias no chuveiro e até cantamos de felicidade, pois a chuva também tem esse potencial só que com uma diferença: a chuva nos molha por dentro e, como tal, revolve alguma coisa internamente que é irmanada com aquilo que vai lá fora em busca do mar, da imensidão, do vazio, da morte.


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À guisa de síntese, de conclusão ou de coisa nenhuma

27.6.14 Unknown 0 Comentarios


                                                                                                                                                                                       Em diálogo com o Cabotino

Sócrates, ídolo da Seleção Brasileira e do Corinthians,
liderou, neste clube, a Democracia Corintiana, movimento
que simbolizou, no futebol, a luta contra a ditadura militar.
Tão falsa quanto uma cédula, límpida e cintilante, de três reais, e tão inverossímil quanto a cerimônia fúnebre daquele ser que tem uma estatura absurdamente baixa é a tese que sustenta que o futebol carrega uma falta de sentido inata, que ele não teria nada a oferecer além daquilo que está dentro da sua própria redoma.

Falsa. E acrescento: estapafúrdia. Ora, futebol é mais do que, simplesmente, futebol. Digo: é mais do que um mero esporte. É isso também, mas é mais. E só não enxerga quem não quer.

Como dizer, portanto, que a partida entre a República Democrática Alemã e a República Federal da Alemanha, em 1974, não estava revestida de uma rivalidade, mais que futebolística, ideológica? Como escapa aos olhos de alguns que comemorar um gol com uma saudação nazista é um (abominável) posicionamento político, como fez o grego Giorgos Katidis, não há décadas, mas apenas há um ano atrás?

Os exemplos pululam, tanto para um lado quanto para outro, e antes que alguém se levante e esbraveje aos céus que futebol é matéria alienante, lembro que no começo do século XX a Asosiación Atlética Argentino Juniors nasceu se chamando Clube Mártires de Chicago justamente em homenagem a trabalhadores anarquistas enforcados num primeiro de maio.

Vê-se, pois, como o futebol é uma expressão cultural que guarda íntima relação com as nossas mais profundas raízes.

No caso específico do Brasil, e do evento esportivo que está sendo sediado neste momento, ouvem-se muitas vozes “esclarecidas” afirmando que as manifestações esmoreceram exatamente por causa do potencial alienador do futebol.

Ora, nada mais incorreto. Quero, acima de tudo, inverter essa relação aqui: o futebol não dificultou, mas facilitou todo o processo de reivindicações e protestos que ocorreram no ano passado e neste também.  

E a tese é simples: todas as questões envolvendo superfaturamento, corrupção e desapropriações que cercaram a preparação e organização da Copa do Mundo não são novidades na vida política brasileira. No entanto, só tomaram tamanha proporção quando mexeram nessa que é a grande paixão nacional. O futebol foi como uma lente que serviu para desembaçar nossa vista para esse fato.

Talvez a grande lição que o evento Copa do Mundo/das Confederações nos deixa é: não esqueçamos de olhar para o futebol.  Jamais.

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Hot Philadelphia

25.6.14 Cabotino 0 Comentarios


Por amor você cruza a Agamenon Magalhães na hora do rush, cortando a zona norte a sul.
Por amor você come uma iguaria fria e fica na boca o gosto de salmão e creme cheese misturado ao cheiro de buceta impregnado no bigode – O homem atrás do bigode é sério, simples e forte como assevera Drummond.

No ônibus você vai em pé e ninguém segura a sua mochila. As mulheres lhe olham à sorrelfa, sabem que há algo estranho em você, o cheiro de sexo é quente e atraente mesmo sob o cabelo molhado. Você tem um olhar distante, alheio como quem acabou de sair de uma sessão de cinema e sua retina ainda está se adaptando às luzes da cidade. A cara de monge tibetano que suscita o post-coitum é afrodisíaca e você irradia aquela paz e autoestima de quem saí de um banquete. 

Você está fornido de sexo e temaki.

Por amor você flana à toa pela cidade na hora mais caótica. O movimento na rampa do Hospital da Restauração; o mau cheiro do canal da Agamenon; as pessoas no bairro do Derby e toda a cidade que caminha atrás de dinheiro e de descanso são inofensivos a você e seu olor que desfilam vertical e soberanamente sobre o vale da sombra e da morte entre Boa Viagem e Olinda.

Você desce a Conde da Boa Vista, a pé, sentido Marco Zero, e neste instante nenhuma faixa de pedestre ou semáforo são capazes de turvar teu pensamento. És a um só tempo amor e certeza.

Teus olhos acompanham o movimento da cidade que pulsa, com certeza, mais rápida do que as batidas do teu coração, porém o teu ritmo é invejado pela cidade que já vai com várias pontes de safena e um marca passo que a qualquer hora pode parar. Mas teu coração é da cor de um salmão e ele bombeia flores e borboleta na sístole e diástole de uma trepada seguida de sushi. 

És engolfado por uma capsula odorífica que te protege da hostilidade exterior, sorves aos poucos a marca da mulher amada em teu bigode. Arrotas felicidade e peidas satisfação na cara de todos. Pouco importas para onde irás – o amor é alheio às ruas e não usa relógio. O amor segue contigo borrifando seu aroma e ruminando o seu sabor. Enquanto ambos durarem, a morte não passa de uma faixa de pedestre com o sinal verde para atravessares no teu ritmo, só no teu ritmo. 

Eu não deveria te dizer, mas essa lua e esse cheiro te põem comovido como o Diabo.

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Sobre futebol, etc

20.6.14 Foi Hoje! 0 Comentarios


Como saciar a sede por futebol e, ao mesmo tempo, manter uma coerência ética e ideológica em tempos de efervescência política? Talvez essa seja a querela interna que muitos brasileiros tentam resolver, de si para si, nos últimos dias. Claro que há, para um extremo e para o outro, quem  não se encaixa neste dilema - os aficionados e os apáticos. Mas o grosso médio dos brasileiros que acompanha futebol sente sua paixão ser instrumentalizada econômica e politicamente mas, em contrapartida, não consegue se desvencilhar da televisão, nem que seja para torcer contra, fazer as vezes de "secador(a)". Essa sensação novíssima, no entanto, está calcada numa velha dicotomia que ora sustenta o poder progressista e libertador do futebol e ora apregoa que ele é matéria alienante e escamoteadora da realidade. E eis que é esse debate que o Cabotino, literariamente, nos apresenta:


Panem et Circenses [Tese]


Sempre tiro férias no mês de fevereiro por conta do Carnaval já que não suporto a catarse coletiva da festa de momo. Porém, troco o mês de fevereiro por junho quando o ano é de Copa do Mundo e vou para a minha casa na serra porque acho que o evento da FIFA deixa os brasileiros mais histéricos do que o Carnaval. Por conta disso, subo a serra e vou ler romances, tomar banho de rio, ouvir música barroca e dormir na santa paz do silêncio.

Acredito que o futebol seja o ópio do povo mais até do que o Carnaval, pois este dura apenas quatro dias, enquanto aquele, um mês, e como tal suga às forças da plebe em prol de um desperdício de economia antropológica sem igual.

No caso brasileiro, a Copa do Mundo de 2014 foi anunciada na Suíça em 2007, de lá para cá, passaram-se sete anos em que o governo, os estados [a FIFA queria oito cidades sedes, o governo conseguiu impor doze, inclusive em cidades que não tem uma tradição futebolística, como são os casos de Cuiabá, Brasília e Manaus, ou seja, estes estádios serão futuros “elefantes brancos”] e os munícipios advogavam que todas as obras ficariam prontas a contento. Sabíamos que seria impossível, mas fingimos que ficariam, como sempre fazemos, é velha prática da indolência tupiniquim que acredita que as coisas ficarão prontas por si só porque afinal de contas “Deus é brasileiro”.

E por ironia, calhou da Copa do Mundo ser realizada um ano após a assim chamada: “jornadas de junho”. Sei que as condições são bem mais auspiciosas, mas vale o exemplo com a Copa do Mundo de 1970 no México, ocasião em que, aqui no Brasil vivíamos os anos de chumbo do governo Médici e a população [leia-se classe média] vivia garroteada pela censura e com seus direitos políticos e eleitorais cerceados. Este ano, a Copa está tendo os mesmos efeitos alienadores que tivera em 1970, pois após um ano em que “o gigante acordou” ele calçou chuteiras e foi aos estádios, ou ficou em casa vendo os jogos em sua nova tevê smart de led, a alienação em alta definição. O que acalentou um pouco a população em seu panis et circense [pão e circo] em 1970, foi que a seleção brasileira fora tricampeã jogando um belíssimo futebol, o que não está no horizonte da atual seleção que busca o hexa.

Daqui de cima, vejo o efeito narcotizante do futebol nas consciências medianas da massa brasileira que fora entorpecida pela bola que está rolando nas arenas, que ao invés de areia, estão forradas de uma grama verde [gerando até um certo grua de “daltonismo” nas massas] e cercada de propaganda por toda a parte, mas não devemos nos esquecer, que a população romana também queria seu pão e seu circo com os gladiadores enfrentando feras ou lutando mutuamente para alimentar a fome das arquibancadas por espetáculos. Na Copa, saem de cena a areia, as feras, os gladiadores e entram a bola, a publicidade e as 37 câmeras que captam tudo, inclusive, a apatia de uma plateia que de tão estimulada por todo o aparato alienador dos meios de comunicação que há sete anos bombardeando todos com o legado milagroso que a Copa deixará para as cidades em que passara.

Neste sentido, o “gigante que acordou” no ano passado está tal qual Polifemo [ciclope da Odisseia de Homero] que teve seu único olho furado por Odisseu que se aproveitou de sua bebedeira de vinho para cegá-lo e que em seguida, ficou arremessando pedras de sua ilha para as naus de Odisseu que ganhou mar e fugiu de seus domínios. O vinho de nosso “gigante” é a Copa do Mundo e o Odisseu que o cegou é o futebol.


Vamos falar do pão e do circo [Antítese]

Ano de Copa do Mundo tiro férias no mês de junho porque gosto de ver os jogos, este ano inclusive comprei uma super TV de 42 polegadas! Para ver as partidas, gosto de futebol e ponto e pronto!

Algumas pessoas “esclarecidas” – desconfio que os esclarecidos são os que produzem as maiores desgraças do mundo – afirmam que: “o futebol é o ópio do povo”. Daí eu respondo: “ainda bem, pior seria se fosse o crack”.

Muitos põem uma relação de causa e efeito quando se trata de futebol e política, afirmando que o futebol entorpece o poder contestatório das massas etc., ora, eu faço-vos uma pergunta: “Foi Pelé que destituiu Jango em 1964?”. Outra coisa, Mussolini com sua esquadra Azzurra fora duas vezes campeão mundial, 1934 e 1938, e nem por isso escapou de ser morto e exporto em via pública pela população italiana. 

Outra coisa que merece destaque na tese entre futebol e política é que ela, em larga medida, é associada apenas ao caso brasileiro, pouca gente questiona a alienação dos ingleses, alemãs ou italianos com o futebol, por que será?

Outra dimensão que não podemos esquecer é que o futebol fora a via de várias manifestações emancipatórias na política brasileira, basta ver os times do Vasco da Gama e Bangu no Rio de Janeiro da década de 1920. Estes times incentivaram a profissionalização dos atletas, antes amadores, pagando salários no final do mês e, o mais radical, aceitaram negros em seus times porque um era clube de fábrica, o Bangu, e o outro, de imigrantes, o Vasco, algo que desafiou a elite branca (desculpem o pleonasmo) do futebol carioca e brasileiro. No final da década de 1970 surgira à democracia Corinthiana, movimento que clamava, a partir de uma forte política endógena em que o massagista tinha o mesmo poder de veto do presidente, uma forte participação democrática dentro e fora de suas dependências. Recentemente, o movimento intitulado “Bom senso” que é arregimentado pela própria categoria dos jogadores de futebol no Brasil, questiona a arbitrariedade do calendário futebolístico brasileiro realizada pela CBF e pela Globo que detém “naturalmente” os direitos de exibição do futebol no Brasil, pois esta mantém uma relação escusa de compadrinhamento com aquela.

Tenho a forte impressão que a hipótese do futebol como alienação das massas – o próprio termo é carregado da ideologia paternalista –, no Brasil, fora disseminada pela elite que vê o futebol como uma paixão indomável e ressignificada, haja vista, que o futebol enquanto prática esportiva da elite britânica no século XIX chegara ao Brasil no início do XX de maneira formal – o mito fundador de C. Muller, membro da elite paulista, chegando ao porto de Santos com duas bolas entre os braços e o livro de regras na bagagem – e que deixou de ser monopólio das elites e, paulatinamente, foi ganhando a adesão em sua prática pelo grosso da população brasileira. Um processo semi-análogo podemos ver no carnaval e no samba. A elite brasileira tem ojeriza a tudo aquilo que o povo escolhe para se manifestar e imprimir a sua criatividade, pois ela é destituída de gênio e paixão.




E você, caro(a) leitor(a), como resolve esse embate interno? Toma sua cerveja e masca seu amendoim sem um grama de peso na consciência? Ou, numa postura sincera, se recusa acompanhar o evento e só assiste aos jogos do Brasil porque inevitável, e, ainda assim, para "secar"? Exponha aqui sua opinião e nos ajude a por termo, mesmo que momentâneo, a essa contenda secular do mundo da bola.

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* Fotografia de Thomas Farkas que retrata crianças assistindo a uma partida de futebol do lado de fora do estádio do Pacaembu, São Paulo, em 1941.

** Foto tirada por Ricardo Azoury no Maracanã por ocasião do primeiro título brasileiro do Flamengo contra o Atlético Mineiro em 1980 (3x2). Na foto, vemos a vibração da torcida do Flamengo.

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Sétimo Monólogo: (é tudo invenção, nada é real!)

15.6.14 Castanha 0 Comentarios


Lúcio:
Cinquenta e dois anos. Alcoólatra. Mendigo. Desgraçado. Acostumado à desgraça.
            Sentado no banco da praça, a vida passava monótona para Lúcio. Todo dia era igual. Não importavam os eventos inusitados. Lúcio havia intencionalmente se condenado a mesmice, tinha uma consciência clara disso: “Sou assim porque quis ser...” pensava “não choramingo”. Vez por outra Lúcio se lembrava do passo a passo que o levara àquela liberdade absoluta e miserável “Se eu não tivesse mudado tudo seria diferente e assim eu ainda estaria casado com Marilene... Eu não suportava Marilene... E ainda estaria trabalhando... Trabalhar era tão ruim quanto estar casado com aquela praga... Agora não há dinheiro, mas não há patrões nem contas nem Marilene; vinte e três anos casado com ela, que terror”. Sua barriga roncou e ele lembrou amargurado que graças a sua liberdade absoluta ele não tinha recursos para ir à barraca de Angélica tomar uma sopa; suspirou um suspiro triste, mas não desistente. De longe, Lúcio viu Valdir, dono da barraca, entregar alguma coisa pra Carvão, um mendigo das redondezas: “Valdir é pirangueiro que só a porra! Que será que ele ta dando pra Carvão?”. Lúcio deitou no banco da praça e olhou por baixo a copa das árvores. Apreciou a visão “O mundo mesmo não é de um jeito só. Tem uma palavra para isso... Uma palavra que eu não lembro agora, uma palavra que aquele cara me falou, o professor... Deixa pra lá, depois eu lembro.” Por um instante Lúcio não pode pensar, por causa de um carro de propaganda que passou fazendo um barulho entorpecedor, e em seguida passou outro e quando Lúcio pensou que aquela algazarra se ia acabar, então passou outro, um terceiro. Percebendo que o barulho das propagandas se despedia, Lúcio pensou xingando e continuou “Porra! Barulho da porra! Nem dá pra lembrar da palavra desse jeito... Palavra difícil da porra!”. Deu uma pausa, mudou sua posição, sentando-se. Acendeu um cigarro barato retirado do bolso de sua camisa; era o último. Amassou a embalagem vazia de cigarros e jogou num canto do chão da praça. A embalagem quase bateu nos pés de um casal de jovens que ia passando, um jovem casal com cara de universitários. A moça mirou Lúcio com um olhar de repugnância que dizia: “Porco!”. Lúcio sentiu a mensagem, mas não deu importância, naturalizara a imundice. Deitou novamente de costas para o banco e começou a fumar. A fumaça de suas baforadas ia se desmanchando no ar enquanto afastava-se do rosto fedorento, remelento e mal barbeado de nosso personagem. Retomou “O mundo mesmo tem tanto jeito de ser visto pela gente que parece até que não tem jeito nenhum. Essa árvore aqui eu vejo de baixo eu vejo do lado e se pudesse eu via de cima. A árvore mesmo é qual? A de baixo a do lado ou a de cima? Ela é as três, mas as três eu não vejo de uma vez só! Então eu vejo a árvore assim e assado, mas não vejo tudo ao mesmo tempo. Que merda! Quem vê os pedaços da coisa, mas nunca vê a coisa toda não vê porra nenhuma!”. Viu uma evangélica gostosa passando do outro lado da rua: os quadris largos rebolando dentro da saia que ia até abaixo dos joelhos; sorrio canalha e já excitado; tornou “O mundo todo é desse jeito, a gente vê as partes de todas as coisas, mas nunca pode ver a coisa por completo. Tem coisa que a gente pega, feito uma bola, usa e mesmo assim não consegue ver ela toda ao mesmo tempo. Tem coisa que a gente não pega, mas que mexe com a gente e tanto faz quanto tempo passou, a gente não consegue enxergar essa coisa por inteiro nunca... Não entende... O sentimento que me fez suportar vinte e três anos com Marilene é uma coisa dessas”. Lúcio viu Carvão aproximando-se esmoleu com a mão estendida, e viu também que lá longe a evangélica gostosa parou para conversar com uma pessoa e sem esperar sentiu uma palavra estalar em sua cabeça “Perspectiva! A palavra que o professor disse foi: Perspectiva!”. 


Castanha 13 de junho de  2014

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Sexto Monólogo: (é tudo invenção, nada é real!)

8.6.14 Castanha 0 Comentarios


Valdir:
Quarenta e poucos anos. Tão rabugento e conservador quanto um sujeito de cento e tantos anos. Não suporta vadiagem. Odeia a vadiagem de Rui (e de tantos outros da vizinhança). Apesar de tudo, tem um bom coração.
Quando Rui deu as costas para a barraca de Valdir este resmungou, um resmungo tão baixo e rebuscado que só ele, envolvido pelos pensamentos que alimentavam aquelas palavras, conseguia compreender: “Esse, menino, é um vadio... Sujeito assim não tem utilidade nem pra enxugar gelo... Não percebe que a gente tem que se mexer? Que todo mundo tem que dar utilidade pra vida? Esse cara parece um bicho preguiça!”. Organizou outros maços de cigarro na prateleira, colocou mais confeitos em um dos potes de doces, organizou os biscoitos ao lado dos salgados e ao final, como não aguentava ficar parado, foi limpar pela sexta ou sétima vez naquele dia, o balcão que passava os dias sob as caixas de bolos salgados. “Estou aqui com meus quarenta e tantos anos e não tenha essa preguiça rabugenta desses meninos!” disse isso a si mesmo ao ver passar do outro lado da rua uns adolescentes com caras de asno e que arrastavam os pés feito tartarugas; “Estou aqui firme e forte, trabalhando feito um touro... Um touro sem os chifres, que chifre é coisa de corno, e eu sei que Nalvinha não ia fazer isso comigo. Sou disposto feito um touro, acho que sou assim por que não sou dessas modas que mudam a toda hora que fazem esses meninos ficarem assim: molengas, preguiçosos, abestalhados, veados! Nem ia me casar com uma mulher que tivesse o jeito dessas meninas de hoje: Tudo mostrando as pernas, sem vergonha na cara, tudo se oferecendo, que baixaria!”. Carvão, um mendigo negro que vivia por ali com a ajuda dos outros e dormindo nas calçadas do bairro, cruzara a dobra da esquina e era avistado de longe por Valdir: “Lá vem o vagabundo!” e pensando isso Valdir irritou-se “como é que o cara vive desse jeito, é pior que Rui! Esse cara deve ter o quê? Trinta anos? Trinta e poucos? Sem estudar, sem trabalhar, sem pagar contas... Seboso!” Valdir virou o rosto, os passos lentos de Carvão irritavam-no. Acenou para D. Severina que ia passando lá longe. D. Severina era bem idosa e tinha cuidado de Valdir durante uma parte de sua infância. Sem perceber Valdir foi mergulhando em algumas memórias e se lembrou de uma vez que D. Severina lhe falou ‘Escute, Valdir, tem gente que nasce com a bunda virada pra lua e tem tanta sorte que pode de tudo fazer, parece até um pássaro que vai voando sem limites; já têm outros que parece que nascem pra passar aperto... Que nascem mesmo é com o cu virado para o formigueiro!’. Revirou outras memórias: encontrou trelas, alegrias e monotonias da infância. A consulta aos causos da infância de Valdir foi quebrada pela chegada de Carvão: mão estendida, boca desdentada e o pouco juízo que a vida de pobreza não lhe arrancou. Valdir olhou aquela figura: tão miserável quanto desmiolado e infantil; pegou umas moedas e lhe entregou. Carvão sorriu tão feliz que sua alegria causou graça em Valdir, e este achou bonita a satisfação do outro.                 

Castanha 20 de maio de 2014

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A morte não anula o riso

4.6.14 Castanha 0 Comentarios


Jorge, apesar de ter diabete e problemas cardíacos, comia até se empanturrar e quando estava prestes a explodir, falava orgulhoso e sorridente “Quero ser um defunto bem pesado!”. Pois assim foi, com seus sessenta e poucos anos Jorge morre saciado e gordo, tão gordo que foram precisos dez homens para carregar seu corpo até o cemitério. Enquanto faziam pausas periódicas para descansar, um dos indivíduos que trabalhava arduamente carregando o falecido aproveitou a situação e protestou em tom de pilhéria “Mas será possível! Que peso é esse?! Parece até que o caixão é de madeira de cedro!” todos riam. Em outra situação esse mesmo piadista foi ajudar a preparar o corpo de outro parente que falecera, irmão de Jorge, porém magro, tão magro, raquítico mesmo, ao ponto de ser apelidado de “Bichinho”. Bichinho morrera lá pelos setenta e tantos anos. Oneide, esse era o parente piadista, chegou cheio de boas intenções para ajudar o dono da funerária a preparar o corpo de Bichinho para a derradeira despedida, esses rituais que chamamos “velório” e “enterro”. Distraído, Oneide pegou um casaco pendurado num canto da sala e vestiu o defunto achando que a peça de roupa fazia parte das vestes de despedida de seu magro parente. Só no final do serviço foi que percebeu o engano: o dono da funerária estava às voltas procurando seu casaco dentro da sala, encontrando-o por último no defunto Bichinho. Oneide se desculpou pelo mal entendido, mas a piada já fora involuntariamente feita e a família inteira iria rir às tortas. E o que podemos falar de Alfonso, que estava internado em um hospital envolvido por complicações em sua saúde, resultado de um erro médico, que logo o levaria a morte enquanto este beirava os oitenta anos. Mas, durante as visitas, quando era questionado por seus parentes sobre como se sentia, respondia sorridente “Sinto-me bem, cercado de anjos, essas enfermeiras de branco são todas uns anjos”. Temos também Maria, que lá pelos noventa anos, mais ou menos, tinha diabete, mas se enchia de açúcar. Maria era gaúcha descendente de italianos e sua família tinha a deliciosa e embriagante tradição de produzir, em casa, vinhos, salames gordurosos e um pão doce que lá por aquelas bandas eles chamam de “cuca”. Maria ia escondida de madrugada comer e beber até se fartar e embriagar na despensa do porão; um dia ela foi encontrada sentada e morta ao lado do barril de vinho e com bastante comida no seu colo. A diabete associada à gula e a embriaguês foram mortais, mas no rosto de Maria um sorriso havia ficado estampado: um sorriso de satisfação. Em algum lugar que não lembro onde, li uma frase que dizia que nada define melhor o caráter de uma pessoa do que aquilo que a faz sorrir, sendo assim, rir da morte pode ser entendido como a aceitação sossegada e sorridente do fim natural desse movimento que chamamos “Vida”.

Castanha 02/06/2014            

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Quinto Monólogo: (é tudo invenção, nada é real!)

2.6.14 Castanha 0 Comentarios


Rui:
Irmão de Anácio. Vinte nove anos. Gostou muito de Vera. Nunca gostou de trabalhar. Nunca gostou de estudar. Nunca gostou de responsabilidades. Nunca gostou de muita coisa que as pessoas se forçam a gostar.
Rui, voltando da padaria, pensava no irmão, Anácio, que dias antes criticara a postura consumista e vazia da vizinha, D. Maria. Acabara de ouvi-la, na fila da padaria, gabando-se para uma amiga por causa da troca de carro do marido ‘É lindo!’ dizia ‘o outro era um carrão, mas esse é ainda mais’, e Rui se perguntava “Se ela soubesse que metade das mulheres do bairro vão pro motel com o marido dela nesse carrão, será que ela diria isso?” parou na barraca de Valdir e comprou uma carteira de cigarros para Anácio. Seu irmão havia lhe pedido o favor e tinha lhe dado o dinheiro para tal. Pensou em fumar um cigarro. Desistiu. Essa vontade sempre vinha, mas ele se controlava. Dois anos sem fumar. A vontade era cada vez menor. “O cigarro está mais caro... Ainda bem que parei de fumar... Não tenho dinheiro pra fumar... Não trabalho, por isso não tenho dinheiro pra muita coisa que eu gostaria de ter, mas é melhor assim do que viver trancado num emprego, levando ordens. Na fábrica, Roni me dava ordens... Não dá mais, ninguém dá”. O telefone vibrou no seu bolso, Vera estava ligando, pensou em atender; desistiu. “Deve ser a mesma ladainha: ‘Vamos nos ver’ ela diz ‘estou com saudades, gosto muito de você, vou à sua casa’, depois desisti e quando eu pergunto por que ela desistiu, então ela diz ‘Você não trabalha, não tem ambição, você é preguiçoso... ’ não quero, deixa ela lá com o Luco dela e eu fico aqui com minha liberdade, minha vadiagem e minhas punhetas”. Em casa, entregou os cigarros para Anácio e lhe falou o que ouvira na fila da padaria. Anácio não deu importância, acendeu um cigarro e depois de alguns minutos em silêncio falou para o irmão “Tenho a impressão de que não existo” e Rui pensou “Começou, lá vem loucura”, Anácio continuou “E se a gente não existir? E se a gente não for mais do que personagens numa história inventada por alguém? Que sentido tem estar aqui se a gente não existir de verdade? Se sou um personagem criado por alguém então eu estou preso, estou congelado dentro de alguma crônica, ou conto, ou desenho, ou qualquer coisa assim. Estamos condenados como figuras dentro de um quadro: estáticos, inanimados, dependendo da interpretação de alguém que existe para que possamos existir, também. O que você acha?” Rui ignorou o irmão, deitou no sofá e pensou “Estou com fome”.             

Castanha

12 de maio de 2014

Para entender melhor esse monólogo, leia o anterior 
http://foihoje.blogspot.com.br/2014/05/quarto-monologo-e-tudo-invencao-nada-e.html

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Poemas simétricos sobre a gênese social das assimetrias humanas. Parte 1: Sobre os processos de castração.

1.6.14 Pássaro Bege 0 Comentarios


No princípio era o verbo,
mas um tosco ego
fustigado por um id e um superego menino, disse:
“fecha as pernas, menina!”
- E assim, ao criar-se essa sentença, organizou-se este mundo. Entendeste, filha?
- Entendi, painho! Então quer dizer que eu posso ficar na chuva?
- Vá perguntar a sua mãe!

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