Carlinhos, parte dois

27.5.14 Unknown 2 Comentarios



Em outro momento, aqui mesmo no FoiHoje, escrevi sobre Carlos, conhecido como Carlinhos das Mulheres em Tejipió e redondezas. É importante lembrar, antes de tudo, que Carlinhos é uma pessoa em sofrimento psíquico, tem uma idade mental em descompasso com a idade cronológica, e que às vezes é acometido por uma profunda depressão, mas se for bem amado e cuidado consegue viver linear e tranquilamente, distribuindo sorrisos por onde passa.

Naquela ocasião relatei a tristeza que foi ver a mente frágil de Carlinhos ser abocanhada pela ideologia neopentecostal. Ela havia corroído o que tinha de mais alegre e espontâneo em sua figura. Lamentei isso, talvez em tom exagerado. Foi o espanto. Relevem.

Há quase um mês atrás minha mãe reencontrou Carlinhos. E nem fez esforço para isso: ele estava parado à frente de nossa casa. Estava sentando, com os cotovelos apoiado nos joelhos e as mãos segurando a cabeça. Chorava contidamente. Ao vê-lo, minha mãe acudiu, levantou-o e perguntou o que lhe havia acontecido. Ele soltou as rédeas do choro e falou sem cerimônia:

 As pessoas da minha casa não cuidam de mim, me deixam jogado na rua. E me deixam com fome, tô com fome, não tomei banho, tô a uma hora dessas na rua... Nem o dinheiro da minha aposentadoria eu vejo, quando sai, eles pegam e pronto. Tem sido assim desde que minha mãe morreu.

Minha mãe ouviu ele falar pacientemente. Quando desabafou, o choro esmoreceu, e um dedo de calmaria chegou, ela perguntou se ele não queria entrar para jantar e listou: tem pão novo, café quente, cuscuz, ovo frito, charque assada, suco de acerola.

  Você quer, Carlinhos?
 Quero papa. Minha mãe fazia papa para mim. Você faz papa?

Entraram todos, Carlinhos se acomodou na mesa. Minha fez uma papa de aveia, sem economia nem parcimônia. Encheu o prato, esperou exíguos cinco minutos e a serviu a Carlinhos, que desabrochou em felicidade. Até a primeira metade, não falou nada, concentrado. Daí em diante, já falava continuamente, intercalando um riso e um comentário. A certa altura, advertiu:

 Bem, você cozinhou uma papa. Uma papa média. Não é tão boa, a que a minha mãe fazia era melhor.

Rimos todos, suaves, a naturalidade de Carlinhos estava de volta. Comeu e proseou ainda por mais dez minutos, sem pressa. Ao cabo, levantou, andou até perto de minha mãe, e apesar de ter censurado a qualidade há poucos instantes, agradeceu:

 Muito obrigado pela comida e por me ajudar, na sua casa. Fez o seu já conhecido gesto e finalzou. — Você agora está protegida e abençoada, é uma mulher de Carlinhos.

Carlinhos se despediu e partiu. Fiquei pensando nele, abatido pela angústia de não poder ajudá-lo mais, e lembrando das "peladas" que batia no Hospital Ulysses Pernambucano e das tardes que passava no Espaço Azul. Certa feita, um dos pacientes me disse o que vivia dizendo para todo mundo a todo tempo: cada um vem ao mundo viver à sua própria sorte.

Mas a sorte, essa raridade que dança a música do acaso, jorra em abundância para uns e pinga em comedimento para outros. Lembrei da imagem de Carlinhos sorridente, acenando, enquanto fechava o portão para ir embora e pensei: lá foi ele em busca da sua.

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Sambou!

20.5.14 Pássaro Bege 1 Comentarios



Saiu de casa às 10 horas da manhã ainda com a ressaca do sábado. Pisou miúdo no chão do Barro, rumou pra Macaxeira e de lá pro Morro da ConceiçãoComeu rabada no sol quente e gargarejou a saliva pesada de gordura com a água dourada que cai da bica da misericórdia. Encontrou com Amanda, Kátia, Luíza, Bernardo e com mais meia dúzia de gente “devagar” no barracão; se saiu rapidinho deles e foi entrar no samba.
Haveria ainda fôlego pra ficar na roda e sambar o dia inteiro se não fosse um boyzinho, amigo de Amanda, que não tirava os olhos de cima dela deixando-a sufocada. Daí resolveu ir tomar um ar e quem sabe, de quebra, puxar uma ideia com aquele Boyzinho de olhar pidão pra ver qual era a de menos.
Prosa morgada se deu por lá. Frases feitas, sorrisos largos; o boy era limpeza, mas tinha umas conversas de tabacudo da porra; uns papos tronchos sobre a mulherada do samba, tava naquela de não saber pra que lado atirava. “Dai-me paciência senhor!!!” Era melhor voltar pra roda, ligeiro! 
Lá pelas 16h, cansou um pouco. Continuou no miudinho, de pé, falando com a galera das mesas. Tomou um caldinho de mocotó, deu uns pega numa manga rosa bem clarinha e pra lavar tomou umas Bohemias na sequência. Depois sentou numa mesa que estava fora do toldo e cantou por ali mais alguns sambas.
Na volta, rachou um Táxi pra tomar a saideira na Avenida Norte com um amigo, donde pegou o último Carro de-boi pra Macaxeira com a certeza de que chegaria em casa antes das 23h.  Chegou, tomou um banho, e entrou no facebook pra dizer a Cecília que o samba tava massa demais e também pra cobrar vacilo da amiga que ficou em casa vendo Faustão.
- Perdesse o samba hoje, minha irmã. Foi instiga!
- Mas, e aí, sambasse muito?
- Sambei! Comi rabada, dispensei um Boy donzelo, sentei beba na mesa de umas coroas que não conhecia pra cantar uns sambas, e ainda fui de saideira com “a Mauro” no karaokê da Avenida Norte. Dá pra tu?
- E tu tá boazinha assim?! Meus Deus, estaria morta.
- Tu é que é fraca, mulher!
 - Eita, porra! Sambou na minha cara e na cara da sociedade.
- Sambei!
- Sambou! 

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Quarto Monólogo: (é tudo invenção, nada é real!)

18.5.14 Castanha 0 Comentarios


Vera:
Trinta e dois anos. Morde-se de curiosidade querendo saber quem é a amante de Luco. Não gosta tanto de Luco quanto gostou de Rui. Detesta lembra que Rui não tem dinheiro, e gosta de lembrar de que Luco tem um bar.
Vera não entendeu porque não gostou daquela moça que estava ao seu lado no ônibus; não falou com a moça, mal olhou pra ela, simplesmente não gostou. Algum tempo depois que a moça foi embora, Vera se tocou de que tinha sentado justamente do lado dela, enquanto tantos lugares dentro do coletivo estavam vazios. Lembrou “Quando botei o pé no coletivo vi o rosto dela... Detestei... Por quê? Não sei! Sentei justamente do lado dela... Nem pensei em nada, só sentei; tinha um jeito de puta. Luco ta ficando com uma puta. Está me traindo. Será que é mesmo? Será que tia Joana tava mentindo? Tia Joana nunca gostou dele, mas mentirosa ela não é... Luco sempre foi mulherengo! Traste! Detesto aquele jeito dele falando ‘Venha cá meu bem, venha pro seu Luquinho’ cachorro!”. Houve uma pausa neste monólogo que havia começado com uma lembrança, pois Vera apreciava um casal de adolescentes que entraram no ônibus: jovens, bonitos, estudantes, provavelmente. “Saudade desse tempo” disse para si mesma, “tempo bom, sem obrigações, tempo de ser bonita... eu era bonita, muito bonita. O tempo passa, escorre por nós sem a gente conseguir segura; nos marca com suas ações. Não ta ruim, ainda; trinta e dois anos não são ruins; mas não é bom como era aos dezesseis, quando eu era parecida com essa menina; eu era mais bonita! Um dia vou ter sessenta e quatro, terei o dobro do que tenho agora e vou ver alguma mulher com trinta e dois e vou pensar o que penso agora em relação a essa menina. O tempo é uma merda! É Luco? Aquele traste! Luco também é uma merda!”. Vera lembrou-se Rui e reiniciou “Rui era bom. Ainda deve ser. Era carinhoso, mas não tinha dinheiro pra nada, e homem sem dinheiro não presta; não gostava de trabalhar, vagabundo! Sem dinheiro nem pra me levar pra tomar um sorvete, terrível! Minha mãe esta certa: ‘quando a pobreza entra pela porta da frente, a felicidade sai de casa pulando a janela’; se não fosse isso eu estaria com Rui, Rui é fiel, é vagabundo, mas é fiel...”. A lembrança de Rui agitou alguma coisa em Vera e ela sentiu-se mais viva: “Bem que Luco merece um par de chifres... Bem que eu mereço dar uma puladinha de cerca pra me reanimar... Quem será a cachorra que ta ficando com Luco? Será que já cruzei com ela por ai? Merda! Talvez eu ligue pra Rui”.

Castanha
12 de maio de 2014
Para entender melhor esse monólogo leia o anterior

http://foihoje.blogspot.com.br/2014/05/terceiro-monologo-e-tudo-invencao-nada.html  

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Os saques são só uma pequena amostra

16.5.14 Castanha 0 Comentarios


Tem tanta violência em Recife, por quê? O que há de errado? Ora, ora, nada está errado: nós simplesmente somos violentos. Construir uma cidade em cima da desigualdade e da exploração só pode gerar insatisfação. Imagine então construir várias cidades em torno de uma principal, apelidada por alguns amigos meus de “Hellcife”, e este neologismo não é à toa, e chamar este complexo de “Região metropolitana” ou “Grande Recife”, que é para quem conhece esse lugar, um inferninho que destrata a maior parte de seus cidadãos. O polícia militar entrou em greve. A greve durou um dia e umas tantas horas, no máximo dois dias, mas foi o suficiente para entrarmos em pânico: escolas fechadas, transporte coletivo parado, comércio paralisado, assaltos, roubos, saques a lojas, homicídios a mais, enfim, caos. Bem, não há o que estranhar, isso acontece no nosso dia a dia, mas a polícia, que é o braço forte, que dá porrada nos excluídos e insatisfeitos cada vez que eles tentam sair da linha, mantém o controle da situação, criando uma sensação de segurança, que não sei até onde falsa ou verdadeira. Se a polícia parar, as insatisfações vêm à tona e a casa cai. Os saques chamaram a atenção da população após serem mostrados nas mídias locais e nacionais. Por que houve saques? Muito simples: o sistema diz que devemos ter “coisas”, todo tipo de “coisas” – roupas, calçados, eletrodomésticos – mas, não é fácil ter “coisas”, então as pessoas que não conseguem ter “coisas” pegam à força. Desta vez foram os saques – pelo menos foram os que mais chamaram atenção – mas no cotidiano da cidade os indivíduos “buscam coisas” com roubos e assaltos. Há outras expressões da violência em nosso cotidiano, assim como houve outras violências, também, durante a greve da polícia militar, mas por hora basta falar dos saques para termos uma boa amostra de que muita coisa está errada em nossa querida Recife, a Veneza brasileira cortada por rios de água suja que despejam merda no mar. Não há felicidade no capitalismo, há consumo; igualmente não há tristeza no capitalismo, há exclusão. Do mesmo jeito que o “triste” quer ficar “feliz”, o “excluído” quer “consumir”. Recife é um lugar capitalista - tão capitalista que dá medo - cheio de “tristes / excluídos” que durante a greve viram uma oportunidade de serem “felizes”.          


Castanha 16 de maio de 2014

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Terceiro Monólogo: (é tudo invenção, nada é real!)

12.5.14 Castanha 0 Comentarios


Cassiana:
Trinta e sete anos. Solteira. Entediada com a vida. Não quer ser mãe. Tem temperamento forte. Não gosta de ter gostado de Luco.
Cassiana estava no ônibus, sentada, pensado que aquilo era coisa rara, estar no coletivo que não estava lotado apesar de ser quase horário de pico. Viu um cachorro morto no canto da avenida, provavelmente atropelado; lembrou de ter visto uma matéria na TV onde um cientista propunha usar sangue de animais na produção de cola e pensou “A gente faz com os animais o que não suportamos que façam com a gente... E tem muita gente que faz com as pessoas o que não se devia fazer nem com os bichos”. Por uns instantes pensou em nada e foi interrompida por ver entrando no ônibus uma moça alta, morena, nem bonita nem feia, com o rosto desenhado por uns traços grossos que eram sim esquisitos, mas também interessantes. Cassiana gelou “Puta que pariu! É a mulher de Luco, aquele cachorro” disse para si. A ironia foi maior quando a moça caminhou e sentou, com tantas cadeiras disponíveis, ao lado de Cassiana. “Caralho! Será que ela sabe?”, mas em seguida relaxou percebendo que a moça se comportava com uma frieza que só o desconhecimento total dos fatos pode gerar. “Nunca mais quero conversa com ele! Homem casado é uma merda! Deixa ele lá! No bar dele, vendendo cerveja choca pra os papudinhos da Várzea”. Olhou pelo canto do olho para a moça e recuou. “É muito esquisito estar do lado dela... Se ela soubesse... Marido cachorro... Coitada”. Lembrou das ultimas vezes que beijou e se deitou com Luco e um calafrio que era uma mistura de asco com arrependimento correu seu interior. “Quando a gente não quer ficar só a gente se joga nas situações... A solidão é uma bosta... A gente anda meio mundo, vê coisas, vive coisas, mas no final, bom mesmo é ter alguém pra fazer cafuné na gente. A gente precisa de alguém pra amar pra ver se assim a pessoa ama a gente também... No final, nessa lógica, amar o outro é um jeito de amar a gente mesmo”. Olhou para a rua, avistou um grupo de estudantes saindo de uma escola de ensino médio; reiniciou o monólogo “Não serei mãe, quem quiser que fique com essa história de que a mulher precisa ser mãe pra ser completa... Eu já nasci completa. Criança pra me dar trabalho?! Pra chupar meus peitos até ficarem murchos?! Pra me deixar gorda e flácida depois que nasce?! Pra me prender pro resto da vida com todo tipo de responsabilidade?! Pra eu descobrir na prática o que é estar presa a um ser que quanto mais se afasta da gente, pela distância e pelo tempo, mais a gente se sente presa a ele?! Eu não! Nunca!”. A simples ideia de assumir essa responsabilidade irritou Cassiana e em seguida lembrou-se de Luco e também da esposa de Luco, ali ao lado, e ficou ainda mais irritada e então percebeu que sua parada era a próxima, então levantou e pediu licença para passar e foi com um olhar esnobe que a esposa de Luco lhe concedeu passagem e então ela disse pra si mesma “Cachorra esnobe, merece aquele traste!”.

Castanha

10/05/2014 

Para entender melhor esse Monólogo, leia o anterior  http://foihoje.blogspot.com.br/2014/05/segundo-monologo-e-tudo-invencao-nada-e.html      

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Cicatriz

11.5.14 Cabotino 0 Comentarios


Naquele tempo eu acho que tinha uns dez para onze anos, um pouco mais ou um pouco menos que isso. Estudava pela manhã e tinha o resto da tarde para maloqueirar à toa.

Por esse tempo, andava muito com Ildo, um amigo que tinha duas irmãs gatíssimas e que morava na rua antes da minha, não me lembro muito bem dele agora, o que ficou dele para mim hoje é que tinha uma cicatriz no pescoço e era banguelo, ou como se dizia: “janelinha” pois perdera os dentes de leite da frente tarde demais.

Assim como ele, também tinha minha cicatriz, só que no braço esquerdo por conta de uma queda de bicicleta.

Outra coisa que lembro é que diziam que éramos muito parecidos, as pessoas achavam que fossemos irmãos. Eu e Ildo irmãos... Imaginem a fuleiragem que seria eu babando por minhas “irmãs” hein? Vixe, deixemos esta doidera pra lá.

Ildo era mais velho do que eu cerca de dois anos e esta diferença, nesta faixa etária, faz muita diferença, mas nos dávamos muito bem, eu levava os meus bonecos, em sua maioria velhos e quebrados – O He-Man já não tinha dedos e o G. I. Joe já não tinha braços –, e ele me deixava jogar Space invaders em seu Atari com as suas irmãs, era uma loirinha e uma morena, eram muito bonitas e o que eu não daria para revê-las só para lhes perguntar os nomes que infelizmente foram embora assim como quase tudo daquela época – as pessoas perdem alguma coisa em nossa memória quando não lembramos os seus nomes, caras e nomes são como unha e esmalte em minha memória.

Foi nesta época que chegou a neta do Velho, acho que era neta ou alguma coisa parecida. O Velho morava a duas casas abaixo da de Ildo e era muito chato conosco, por exemplo: quando começávamos a jogar bola ele chegava e pedia para pararmos de jogar por conta do barulho, dor de cabeça etc., mas nós éramos pirracentos e continuava mesmo assim, era algo de tomar o espaço que era nosso, aquela rua era nossa desde a Copa de 1990 quando pintamos o chão com os dizeres: “o tetra é nosso!” e a decoramos com as bandeirinhas em verde e amarelo como um varal de roupas. Hoje a tiração de onda dos meninos não tem essa de tomar a rua e tal, eles brigam entre eles e contra todo mundo de graça, ninguém entende, aliás, como um montão de coisa hoje em dia, ninguém entende.

Lembro-me desta menina, a que chegou à casa do Velho, porque eu acho que foi um dos meus primeiros amores, eu tive vários primeiros amores e ainda hoje os tenho, é curioso isso, mas acho que um montão de gente tem isto também, se não tem, menos mal.

Lembro-me dela por conta de uma cicatriz de queimadura que ela tinha no pescoço e que estranhamente a deixava mais bonita, uma beleza de lobo guará, uma vez vi um lobo guará na tevê e ele ali tranquilo no canavial, esperando alguma coisa. A menina na casa do Velho lembrava o lobo guará, quieta ali em cima do muro branco em cal da casa do Velho, na dela e nos olhando o tempo inteiro. Dava para ver que era do interior, menina do mato.

Como eu gostei desta menina, por ela eu era capaz de dar uma volta na rua, indo e voltando, plantando bananeiras. Eu voltava da escola e comia nadinha no almoço, era pensar nela e o estômago esfriava e a fome ia embora apenas ao toque de sua lembrança. Era um sentimento sem maldade porque neste tempo eu jogava Space invaders e lia a série das Aventuras Fantásticas de P. Jackson.

Após o almoço eu me dirigia direto para a nossa rua, era assim que eu me referia à rua que trabalhei por ela e deixe-a um pouco parecida comigo, pelo beco que ligava a minha casa, na rua debaixo, à nossa rua.

Lembro-me bem do rosto daquela menina com cicatriz no pescoço, acho que as cicatrizes dos outros ficam também cravadas em nós como a extensão de uma dor não sentida, mas mais ou menos entendida e sentida por nós. Era morena, parecia uma vagem de amendoim cozido. Tinha ou ainda tem um olhar de cadela vira-lata quando rever o dono. Mas, às vezes, este olhar era tão grande pra cima de mim, acho que devia ser por conta da altura do muro da casa do Velho, mas acho que não, o olhar dela às vezes lembrava o da professora Solange na terceira série, uma coroa com mais de um 1,80m e que uma vez me disse: “você é sonso”.

Ah! Ela tinha ou tem ainda, sei lá, um cabelo lisão à altura do pescoço cuja cor misturava-se ao da pele do pescoço e ao da cicatriz, parecia até o encontro da areia da praia de Boa Viajem quando vem à água das ondas e deixa a areia toda moreninha.

Minha desculpa quando saia de casa após, vamos dizer assim, o almoço, era a casa de Ildo que me deixava próximo da do Velho onde se encontrava ela. Ela ficava lá esperando alguma coisa. Olhando-me sempre de cima e eu gelava e sentia minhas mãos molhadas e acho que ficava branquinho porque uma vez umas das irmãs de Ildo me flagrou em alguma coisa e disse que eu parecia o lençol do Gasparzinho, fiquei sem entender, se o Gasparzinho é um fantasma por que ele tem lençol? Sei lá, vai entender as meninas.

Eita que esqueci de dizer a vocês que nesse tempo eu era da uma timidez muito maior do que a que tenho hoje, com um agravante, naquela época eu não bebia, e o tímido que não bebe faz mais bobagens do que um homem embriagado.

Houve um dia em que a menina da cicatriz me chamou ao muro da casa do Velho e quase que eu tenho um troço antes de ir atendê-la. Acho que pensei: “vou falar com ela... Pegar em suas mãos... Olhá-la e quem sabe beijá-la e se Velho não tiver em casa etc...”. Uma vez em sua frente, acho que me encontrava mais pálido do que primeira comunhão de Sivuca. Ela me perguntou: “você conhece aquele menino ali?” e apontou para Ildo. Eu falei: “quem, Ildo? Sim, ele é meu amigo”. Daí ela disse isso: “pegue isso aqui e dê a ele” e me deu um papel dobradíssimo como se eu conseguisse desdobrá-lo e lê-lo no curto caminho da casa do Velho para a casa de Ildo que, estava sentado em frente a sua casa. Saí do muro da casa do Velho como um garoto de recados e com aquele gosto na boca que se perguntava algo assim: “por que este bilhete não foi para mim?” Sabe aquela sensação que você tem quando leva uma queda no chão e você, uma criança, não pode chorar porque os outros estão olhando e é só o primeiro da plateia soltar a gargalhada e seu choro vai junto? Pois é, só faltou a primeira gargalhada para eu começar a chorar ali mesmo. Entreguei o bilhetinho a Ildo que pegou o papel e leu: “quero te conhecer”. Foram três palavras que ficaram marcadas em mim como cicatriz.

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Segundo Monólogo: (é tudo invenção, nada é real!)

10.5.14 Castanha 0 Comentarios


Magno:
Caminha pelas ruas de Recife. Acha fedorenta essa cidade. Adora caldo de cana e cerveja gelada. Faz pouco tempo que aprendeu que o sentido da vida é o outro, que ele ainda não sabe qual é.


“Recife está mais quente hoje... Esse calor está terrível. Parece que não vai chover nunca mais. No ônibus, o cobrador falou – Não vai chover nunca mais. Que figura!”. Moveu-se um pouco para a esquerda, em sua caminhada pela AV. Alfonso Olindense, para desviar de uma poça de urina. “Recife é uma cidade porca...” pensou “uma cidade fedorenta, catinga de fezes e urina. Urina e fezes na calçada em todo canto. Urina e fezes assim, na calçada, fedem mais quando está quente. Os dias mais quentes de Recife são também seus dias mais fedorentos. O observatório meteorológico internacional afirma que os últimos treze anos foram os mais quentes da história. Então foram os mais fedorentos de Recife.”. Parou numa barraca ambulante pra tomar um caldo de cana. Sorriu pensando “Será confiável beber um negócio que é feito numa rua de uma cidade que fedeu tanto nos últimos treze anos? Tem merda no caldo, também?”. Cumprira obrigações desde que saiu de casa às oito horas da manhã. Enfrentou o transporte público; bateu pernas pelos becos e ruas do centro da cidade; almoçou uma coxinha vagabunda com carne meio azeda e um suco de goiaba doce demais e gelado de menos. “Tudo no mundo é dependente do que a gente não vê...” pensou ele, olhando o mover da máquina triturando a cana “... as fezes e a urina incomodam por causa de um cheiro que não vemos, o calor aquece mais ele não é visto, o gosto ruim do almoço de hoje não foi captado por meus olhos, mas estava ali, tremendo em minha língua, e a força que move essa máquina para a cana ser moída não é vista, nunca será.”. Deu uma pausa. Voltou “O que nos faz viver, também, é um conjunto de elementos que não podem ser vistos... Está tudo ai sem ninguém ver. Muita coisa não parece ser, muita coisa já é sem parecer ser.”. Caminhou até o bar de Luco e pediu uma cerveja; o primeiro gole foi logo cuspido para que Magno pudesse protestar “Luco, essa cerveja ta choca!”.        

Castanha

 30 de abril de 2014

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A entrevista sem conotação

5.5.14 Foi Hoje! 0 Comentarios


Eram três candidatos finalistas concorrendo a uma vaga numa empresa. Todos três haviam se saído muito bem em todas as etapas do processo de seleção e estavam agora na ante sala do presidente da empresa, que fez questão de que a entrevista, última etapa do processo, fosse realizada pelo próprio. Claro, era um administrador à moda antiga, daqueles que rezava pela cartilha de que o "olho do dono engorda o negócio".
A pergunta era aparentemente simples, mas capciosa - "como você se define?" - , sobretudo porque seriam todos indagados um na presença do outro, seriam os três candidatos frente a frente com o presidente e seus concorrentes.
A primeira dos três estava bastante confiante, especialmente pelo extenso currículo que trazia, com diversas especializações na área. Contudo, sua resposta não agradou ao presidente. O segundo, que aparentava ser o mais velho e mais experiente, logo enxergou uma oportunidade na escorregadela de sua concorrente e pensou que se desse uma boa resposta, por tabela, o terceiro provavelmente ficaria nervoso também e a vaga estaria no papo. Mas, novamente o presidente não gostou da resposta dada pelo segundo candidato. Chegara a vez do terceiro e último candidato, que tentou não aparentar o nervosismo tremendo que lhe tomava conta depois da rebordosa dos anteriores. Já não esperava conseguir a vaga, visto que o presidente parecia ser um homem difícil de agradar. Mas, foi justamente daí que tirou o restinho de coragem que ainda tinha consigo. Não tinha nada a perder mesmo, a não ser a tão desejada vaga. O presidente mais uma vez bradou: "filho, como você se define?".
Tentou se dar um tempo para que a resposta que o presidente gostaria de ouvir viesse à sua mente, como uma iluminação de um anjo salvador, porém, não tardou a perceber que não poderia ficar a esperar por um milagre que não viria. "Como eu me defino?". Na verdade é bem simples, senhor. Levantou, tirou a camisa, deitou no chão e começou a fazer abdominais.

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Proseamentos estatísto-etílicos e outras fuleiragens

5.5.14 Foi Hoje! 0 Comentarios


Eu tinha 20 anos de amizade com a figura e por isso o papo já fluía sem a necessidade glossários, legendas ou notas de rodapé. Daí, lá pelas tantas, no meio de uma conversa sobre amenidades, o sujeito me diz: "meu trabalho é 90% transpiração e 1% inspiração". Cá com meus botões fiquei pensando: "Porra! Nunca vi esse cara sapecar máximas, nem mesmo de ditados populares ele gosta. O que será que está acontecendo?". Talvez devesse estar passando por algum problema sério e não quisesse me contar. Seria uma crise de meia idade? Uma gaia? O time que não foi bem no campeonato desse ano? Dívidas? Enfim. Melhor do que tentar adivinhar, seria perguntar-lhe diretamente o que estava havendo, mas preferi soltar essa:
"90% transpiração e 1 % inspiração, cara?! Não sabia que tu agora trabalhava numa sauna!".
- Meu irmão, eu aqui chorando minhas pitangas e tu perdes o amigo, mas não perdes a piada, né?!
- Calma, meu bom! Tu me conheces bem e sabes que é só pra descontrair, deixar a conversa com uns 500 quilos a menos... a intenção é rir "com" e não "de".
- Beleza! Beleza! Já me costumei com tuas pilhérias "calanguísticas", seu triste! HaHaHa!
Daí, seguiu-se o papo regado a algumas cervejas naquele padrão "c* de foca", pegou de mal jeito na garrafa e ela pedra. Entramos num papo existencial daqueles e chegamos a um ponto do efeito alcoólico onde trava tudo e a voz embola. Pedimos a conta e rumamos ao encontro do salvador bacurau. Já no Cais de Santa Rita, de olho na hora da partida do danado pra não correr o risco de perdê-lo, lembrei do papo sobre trabalho, da frase que ele soltou e me apercebi que aquela conta não fechava. Pensei comigo: "melhor deixar quieto, já aloprei muito com o cara hoje e apesar das minhas tiradas terem arrancado umas boas gargalhadas dele, não vou perguntar pelos 9%, senão é capaz do bicho perder a paciência e voltar pra casa chateado". Não era esse o intuito. Deixei aquele pensamento de lado e mirei no vendedor de caldinho de mingau de cachorro: "Irmão, bote dois aí no capricho, que é pra eu e o chegado aqui não dormimos no ônibus e perdermos o ponto, faça esse favor!". Pelando o céu da boca, escalando a língua, o mingau tava rochedo demais! Já raspando o copo, eu não resisti e perguntei:
- Ei, véi, tá ligado naquela fita que tu disseste sobre a transpiração e a inspiração?
- Tô ligado, man! Lá vem tu arriar na minha de novo, né?!
- Não, mago! Juro que não é arriação! É que fiquei curioso pra saber se tu tinhas errado nas contas ou se tinha alguma malícia na história e eu não me liguei. Porque tu disseste "90% e 1%", tá ligado?! Como é isso? Era pra eu perguntar sobre os outros 9% e tu me dar uma resposta bem escrota, ou tu erraste nas contas?
Ele respirou fundo, já subindo no bacurau e me disse:
- Mermão, se eu trabalho numa sauna, tu agora, além de sociólogo és matemático, mago?! Vai dar meia hora de c* com o relógio parado, Calango chato do cara***!!!
Depois subiu no bacurau rachando o bico de rir e seguiu no rumo de casa.

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