Carlinhos, parte dois
Em outro momento, aqui mesmo no FoiHoje, escrevi sobre Carlos, conhecido como Carlinhos das Mulheres em Tejipió e redondezas. É importante lembrar, antes de tudo, que Carlinhos é uma pessoa em sofrimento psíquico, tem uma idade mental em descompasso com a idade cronológica, e que às vezes é acometido por uma profunda depressão, mas se for bem amado e cuidado consegue viver linear e tranquilamente, distribuindo sorrisos por onde passa.
Naquela ocasião relatei a tristeza que foi ver a mente frágil de Carlinhos ser abocanhada pela ideologia neopentecostal. Ela havia corroído o que tinha de mais alegre e espontâneo em sua figura. Lamentei isso, talvez em tom exagerado. Foi o espanto. Relevem.
Há quase um mês atrás minha mãe reencontrou Carlinhos. E nem fez esforço para isso: ele estava parado à frente de nossa casa. Estava sentando, com os cotovelos apoiado nos joelhos e as mãos segurando a cabeça. Chorava contidamente. Ao vê-lo, minha mãe acudiu, levantou-o e perguntou o que lhe havia acontecido. Ele soltou as rédeas do choro e falou sem cerimônia:
— As pessoas da minha casa não cuidam de mim, me deixam jogado na rua. E me deixam com fome, tô com fome, não tomei banho, tô a uma hora dessas na rua... Nem o dinheiro da minha aposentadoria eu vejo, quando sai, eles pegam e pronto. Tem sido assim desde que minha mãe morreu.
Minha mãe ouviu ele falar pacientemente. Quando desabafou, o choro esmoreceu, e um dedo de calmaria chegou, ela perguntou se ele não queria entrar para jantar e listou: tem pão novo, café quente, cuscuz, ovo frito, charque assada, suco de acerola.
— Você quer, Carlinhos?
— Quero papa. Minha mãe fazia papa para mim. Você faz papa?
Entraram todos, Carlinhos se acomodou na mesa. Minha fez uma papa de aveia, sem economia nem parcimônia. Encheu o prato, esperou exíguos cinco minutos e a serviu a Carlinhos, que desabrochou em felicidade. Até a primeira metade, não falou nada, concentrado. Daí em diante, já falava continuamente, intercalando um riso e um comentário. A certa altura, advertiu:
— Bem, você cozinhou uma papa. Uma papa média. Não é tão boa, a que a minha mãe fazia era melhor.
Rimos todos, suaves, a naturalidade de Carlinhos estava de volta. Comeu e proseou ainda por mais dez minutos, sem pressa. Ao cabo, levantou, andou até perto de minha mãe, e apesar de ter censurado a qualidade há poucos instantes, agradeceu:
— Muito obrigado pela comida e por me ajudar, na sua casa. — Fez o seu já conhecido gesto e finalzou. — Você agora está protegida e abençoada, é uma mulher de Carlinhos.
Carlinhos se despediu e partiu. Fiquei pensando nele, abatido pela angústia de não poder ajudá-lo mais, e lembrando das "peladas" que batia no Hospital Ulysses Pernambucano e das tardes que passava no Espaço Azul. Certa feita, um dos pacientes me disse o que vivia dizendo para todo mundo a todo tempo: cada um vem ao mundo viver à sua própria sorte.
Mas a sorte, essa raridade que dança a música do acaso, jorra em abundância para uns e pinga em comedimento para outros. Lembrei da imagem de Carlinhos sorridente, acenando, enquanto fechava o portão para ir embora e pensei: lá foi ele em busca da sua.
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