Aprendiz de feiticeiro
Tem dias
que você acorda acabrunhado, com a autoestima um nível acima da de Kafka, por
exemplo. Se olha no espelho e diz: “que lixo!”. Daí dá um “tapa na cara”
tirando a barba. Ganha, pelas convenções sociais, uma redução de alguns anos na
aparência. Toma banho ao som de The Who. Põe um trapo na caveira e vai ao supermercado
por que já é hora de almoçar, baby.
Traz
peito de frango, tomates e batatas. Retira o feijão, o arroz e as laranjas que
estavam na geladeira. Põe água no fogo com as batatas e uma pitada de vinagre
para extração mais harmoniosa da pele. Enquanto o feijão é requentado, o frango
vai sendo temperado: alho, limão, vinagre, pimenta e sal. As batatas estão
prontas. Manteiga, sal e leite nelas e o purê está feito. Hora de fritar o
peito de frango. Quase no ponto – quando o frango começa a ganhar aquela cor de
cobre – é hora de refogá-lo com cebola. Enquanto isso, já é tempo de fazer o
suco de laranja e cortar o tomate em rodelas para a solitária salada – a próstata
agradece. E a pilha de pratos vai se acumulando na pia.
O fogo
fez a parte dele – cozinhar é a tênue arte de equilibrar o fogo com os ingredientes,
o resto é raio gourmetizador.
Refeição
posta, uma pitada de mostarda nas margens, agora é correr para o abraço! (Detesto
exclamações e já vou usando-a pela segunda vez até aqui).
Acredito
que deveriam ensinar as crianças a cozinharem nas escolas. Eu, por exemplo,
nunca tive aulas e sei a falta que fez não ter aprendido antes. Na verdade,
aprendi sozinho a me virar na cozinha. Como cientista e escritor, desenvolvi
durante os anos a perspicácia da observação. Observo, experimento, comprovo ou
refuto – minha veia científica. Presto atenção, separo os ingredientes,
estetizo e procuro as texturas, minha veia artística. Arte e ciência, quem não
tem afinidades com nenhuma destas formas de interação com o mundo, pode se
encontrar em maus lençóis.
Enquanto
minha mãe cozinhava eu fica ali ao lado papeando com a mulher que me botou no
mundo (quer mais?); a mulher que me deu “régua e compasso” para as aritméticas
da vida. Ela crente que estava ali extraindo o que queria de mim – com fome
ninguém mente e é na cozinha que a vida social começa – e estava mesmo, só que
eu ficava ligado enquanto ela manipulava os ingrediente na panela. Valeu mais
uma vez, minha mãe.
Ensinar
a cozinhar deveria ser um ato de fé em qualquer cultura. Preparar seu próprio
alimento, além de ser uma questão de segurança alimentar, lhe dá uma sensação de...
(odeio a palavra plenitude assim como as reticências) conforto, satisfação não
só por saciar-se com a comida, é algo na esfera do sentimental. Você saber que
está comendo o que cozinhou – se há felicidade neste vale de lágrimas que
chamamos de vida, é uma sensação parecida como a de comer algo bom que você
mesmo preparou. Amém!
Estás
saciado e além de agradecer a comida, agradeça a você por sair da inércia e da conveniência
de comer “qualquer coisa”, para fazer uma refeição digna. Cuide do seu corpo que assim ele cuidará de você quando precisar.
Das
desvantagens de cozinhar só para você, além da óbvia solidão que pode ser
contornada com um som ou um aparelho de televisão, é que os pratos sempre serão
seus. Assim como a crítica – ah, as malditas ambivalências da vida solitária.
Das
vantagens de morar só: não dar satisfação; chegar na hora que quer; ficar à
vontade e a melhor de todas, usar o banheiro de porta aberta.
Enfim,
chega de digressão que uma pilha de pratos me espera.
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