Um instantâneo de felicidade?

29.6.16 Cabotino 0 Comentarios


“Eu sei que é junho, o barro dessas horas /
O berro desses céus, ai, de anti-auroras”


Uma franja de sol incidia sobre as lentes escuras dos meus óculos enquanto esperava o Circular Direto da UFRN, próximo à parada da Reitoria. Cofiava meu bigode enquanto esperava o Circular rumo ao Restaurante Universitário. O homem por trás dos óculos e do bigode é sério, como vaticina Drummond, e eu estava sério, quase casmurro. Talvez por conta da incipiente fome, talvez pela inexorável luta de classes, talvez pela propriedade privada, talvez... Súbito! Me dei conta que o sol da capital potiguar àquela altura do ano, mês de junho, e àquela altura do dia, às 13h, era tal uma luz de geladeira: iluminava mas não esquentava. Me dei conta de que o sol de Natal finalmente não me fustigava. Senti alívio. Chegou o Circular. Subi no coletivo e achei uma cadeira vazia rente à janela do nascente em meio à lotação do ônibus. O alívio foi cedendo espaço para um sentimento de paz. Sentei-me ao lado de uma moça seguramente estudante da área de saúde, pois estava toda vestida de branco. Fui atravessado por uma sensação de bem-estar. Bebi um gole d'água de minha onipresente garrafa de alumínio. De chofre! A sensação de paz foi perpassada por uma sensação de... felicidade? Nunca havia sentido algo parecido em minha vida: uma integração com o cosmo. Pela primeira vez senti o meu caos dissipando-se e em seu lugar uma colônia de ramificações - tal fungos - foi pondo coesão e coerência onde antes havia apenas dispersão. Uma felicidade instantânea perpassou-me por inteiro tal a sensação de um gol? de um gozo? de um banho num dia tórrido de janeiro...? Talvez. Infelizmente a tal felicidade não chegou a durar mais de um minuto. Antes do Circular chegar ao Departamento de Educação Física, uma parada após a da Reitoria, senti que a sensação foi embora. Talvez pelo fato de ter começado a pensar: se alguém jamais foi feliz como é que essa pessoa discernirá a sensação de felicidade quando esta chegar? Eis a pergunta que atravessou-me e que por ora deixo com vocês, caros leitores.  

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Sobre livros, negros e dramas

19.6.16 Foi Hoje! 0 Comentarios


          Segundo um trecho de uma música dos Racionais Mc´s “(...) Tem dia que é melhor não acordar que dá tudo errado”. Mas o fato é que também há dias em que vale a pena ter visto o nascer do sol e ter contemplado o poente. Hoje foi um dia desses. Porém, antes de narrar o que ocorreu preciso fazer referência à noite anterior, pois foi nela gestado o bom momento que surgiu hoje. Foi nela que tive o prazer de iniciar a leitura de um ótimo livro sobre como os negros foram vítimas de um "processo de desumanização". Quando me foi indicado à leitura, por minha professora, inicialmente meu pensamento foi “eita, lá vem ela e suas indicações de mil leituras pra gente fazer em uma semana”. Mal sabia eu que após ler as primeiras páginas de O Livro Dos Negros (2015) seria totalmente arrebatado pelo conteúdo ali presente. Trata-se de uma ótima narrativa sobre a escravidão dos negros e o sequestro extremamente cruel e desumano dos povos de seus territórios de origem. Uma narrativa sobre o rompimento com tudo aquilo que os faz humano; sobre sua sua cultura (no sentido mais amplo possível deste termo).
Confesso que ainda não li o livro todo, mas não tenho dúvidas que o devorarei em poucos dias. Ele já ocupa o espaço entre os melhores livros que já tive contato, certeza será mais um daqueles que a gente lê e relê várias vezes. Trata-se de uma história contada de maneira tão visceral e direta sobre a escravidão, que só não se identifica com ela quem está amplamente e historicamente estabelecido na posição do Senhor.
       Para mim que sou um ouvinte amador do Rap nacional e que as vezes me pego ouvindo Emicida; Rapadura; Criolo; percebi de cara uma identificação entre o relato visceral contido na obra de Lawrence Hill e as letras dos Racionais Mc´s ou as do Facção Central, onde há narrativas bastante semelhantes, cada uma em sua época e em seu espaço. Tão doloroso e complicado de digerir quanto o relato de Aminata Diallo (personagem central de O Livro dos Negros) é a letra narrada, também em primeira pessoa, da música Negro Drama (Nada como um Dia após o Outro Dia, 2002) dos Racionais MC´s. Impossível não pensar que os condenados da cidade de hoje são muito semelhantes aos negros que foram escravizados durante séculos de vergonhosa história da humanidade.
Para fechar esse maravilho dia tive ainda o prazer de, no final da noite, ver uma apresentação musical em uma sala muito aconchegante da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Executou-se ali a música Maria da Vila Matilde (A Mulher do Fim do Mundo, 2015) de Elza Soares, onde se diz que um homem que levanta a mão pra uma mulher vai se arrepender de a subjugar.
Que todos dominados se unifiquem e destruam todas as formas de opressão!! E quem é esse tal de Marx?



 Texto de Dândi Cosmopolita  


* Créditos da imagem: <http://ascattarinas.blogspot.com.br/2015/07/informativo-primavera-editorial-lanca-o.html>

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Comentários a respeito de Ulisses

10.6.16 Castanha 0 Comentarios


Faz seis meses e dezenove dias que Ulisses abandonou o ventre de sua mãe, Sandra Luíza, que eu carinhosamente chamo de Lú, para se aventurar aqui fora. Acredito que veio a contragosto, pois alguém em sã consciência não abandonaria o conforto das entranhas maternas para viver nesse mundo de dinheiros e cifrões, onde as pessoas são destratadas. Se ele tem uma cabeça boa, uma consciência sóbria para usar nas decisões, isso saberei com o tempo; essas coisas a gente não sabe assim, tão no começo. Por hora, Ulisses anda bem da saúde, apesar de recentemente estar gripado. Está firme e forte, sorridente, atento ao que lhe cerca e com bom apetite. Quando a mãe de Ulisses, Lú, o carregava no útero, eu não fazia ideia de como ele seria e tampouco me empenhei em imaginar. Esperei que ele nascesse para ver seu rosto e lhe conhecer. Fiz isso pra evitar qualquer idealização de meu filho. Queria viver com o que ele era de fato e não com o que eu poderia querer que ele fosse. Agora, olhando para ele, bonito, saudável e forte ao meu lado, ou nos meus braços, tento repetir a negação de “como será”; assim como fiz ao longo da gestação dele, o futuro deve permanecer em aberto. Pode ser que ele faça as coisas que fiz, de forma muito parecida ou diversa. Ou pode ser que ele queira fazer o oposto: queira ficar sóbrio ao em vez de se entorpecer, queira acreditar em deus ao em vez de ser ateu, talvez seja insensível ao sofrimento dos outros; talvez, mas espero que não... Bem, de todo jeito, seja lá quem esteja lendo essa crônica, onde e quando estiver lendo, saiba que agora, pelo menos agora, estou empenhado em pensar que Ulisses, desde o começo, terá uma boa margem de liberdade. Uma margem e tanto. Espero não mudar de ideia, espero de verdade! E você, Ulisses, se estiver lendo essa crônica agora, anos depois dela ter sido escrita, saiba que o título dela não e à toa. Ele é baseado numa canção chamada “Comentários a respeito de John”, cantada por um sujeito chamado Belchior. Assim como a personagem dessa canção não quer ninguém em seu caminho lhe indicando o que fazer, desejo que seu espírito seja igualmente livre. E que seu coração bata onde nasce o sol, assim você terá certeza de que no horizonte há algo que buscar. Na caminhada em direção ao horizonte, você entenderá que o fato dele ser inalcançável não torna inúteis os passos que o buscam, pois é justamente aí, no percurso, que descobrimos o sentido das coisas.       


Castanha 10 de junho de 2016

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Achados arqueológicos contemporâneos I

10.6.16 Cabotino 0 Comentarios


“Na escuridão a luz vermelha do walkman” (Anoiteceu em Porto Alegre)
“Os olhos tristes da fita, rodando no gravador”
(Beradêro)

Na segunda metade da década de 1990, os anos que encerravam o breve século XX, era a época da paranoia das previsões da Mãe Dinah, do rombo da Camada de Ozônio e dos golaços de Romário, eu ganhei de presente de minha mãe: um walkman Aiwa TA144. Na época eu arrotava pra todo mundo: ganhei um walkman da Aiwa! A pronúncia saía assim: a-í-va. Anos depois é que descobri a pronúncia dita correta: ai-wa, lendo o “w” como se fosse “u” e não “v”, à moda inglesa. Mas ninguém me corrigia à época porque quem lá sabia pronunciar o nome daquele troço. Imaginem, eram tempos antediluvianos onde o Google Tradutor era coisa de, pra nós espectadores da Sessão da tarde, Steven Spielberg. Era uma época mais pausada, movida à pilhas Rayovac amarelas, num tempo que não havia tantos gigabytes nem aplicativos, tampouco Romário era um político arrivista.

Walkman Aiwa TA144

Lembro-me da alegria ao abri a caixa do walkman, parecia gol de Túlio Maravilha contra a Argentina num mata-mata de Copa América. Ele era pequeno, cabia direitinho no meu bolso. Comprei oito pilhas da Rayovac e corri pro abraço. De início, ouvia apenas rádio. Além da função AM e FM, o walkman tocava fita K7. Era preciso garimpar umas K7s. Em casa haviam apenas fitas de Mastruz com Leite, Magníficos... e toda a coqueluche do forró estilizado direto do Ceará.

Tinha duas opções para conseguir K7s ao meu gosto musical eminentemente rock n roll: ou comprá-las por meio das lojas do centro: Vinil, Flower, B-side ou gravá-las em casa.

A primeira hipótese era praticamente inviável por conta do preço das K7s, em média R$ 5,00, uma fortuna sobretudo pra um pobre diabo como eu amante de futebol, música e contemplação – a literatura ainda não tinha entrado em minha vida.

A segunda hipótese também era difícil porque o aparelho de som CCE – marca preconceituosamente chamada de “Começou Comprando Errado” – que havia em casa, chamado de “4 em 1”: rádio, K7, vinil e CD tinha um deck de fita muito ruim. As coisas começaram a melhorar quando chegou o aparelho de som “carrossel” da Panasonic modelo: AK77. O nome “carrossel” era por conta da bandeja de 3 CDs que ele comportava em sucessão, girando. Esse aparelho foi o primeiro objeto 100% digital que chegou em casa. Tinha 1600 watts PMPO, que os mais maldosos chamavam de: “Potência Máxima Para Otários”.

Súbito, a coisa começou a suceder-se com mais velocidade. De repente estava com duas caixas de sapatos repletas de fitas K7s acumuladas através das gravações no deck do Panasonic. Comecei a gravar fitas: de um deck para o outro, de um CD para o deck de fita, da programação das rádios Cidade e Transamérica para as fitas. Em resumo, a palavra Rec. começou a fazer parte do meu repertório como se fosse a “puberdade” da relação: arte-experiência-tecnologia que então começava.

As mixtapes que eu gravava tinha um rígido grau de exigência. Não gostava de gravar por cima por conta da queda na qualidade. As músicas não ficavam cortadas por conta do simplesmente: “acabou o lado”. Eu fazia cálculos dos minutos de cada música para que os lados A e B – geralmente com meia hora cada – fossem totalmente preenchidos.

Como todo proprietário de walkman pobretão, eu andava com uma esferográfica sempre a tiracolo para na hora de rebobinar a fita eu sacava-a do deck e girava-a, inserindo a esferográfica e um dos “olhos” da K7. Com isso, economizava a pilha e tinha mais horas de fruição com as mixtapes.



Ouvir uma nova fita K7 ou as novas mixtapes que você gravava ou garimpava nos “rôlos” com amigos dentro do fortíssimo circuito de câmbios das K7s – trocar ou emprestar fitas era sinônimo de grande amizade – era uma experiência iniciática. Eu tinha uma banda de hardcore com mais alguns amigos da escola e fomos socializados, musicalmente, pelo circuito das mixtapes pois CDs e vinis eram caros e a MTV sempre tivera um pendor: mainstream, o que não nos interessava. Portanto, as fitas K7s foram um patrimônio de educação sentimental, via música, de minha geração.

As mercadorias estão prenhes de fetiche. São como fantasmas a assombrar nossas lembranças através da implacável efemeridade. A obsolescência inerente à produção tecnológica leva de roldão muitos objetos que hoje se encontram no paradoxal: achados arqueológicos contemporâneos. Como, por exemplo: o walkman. Meu Aiwa TA144 não está no “ferro velho” da memória como mais um objeto da nostalgia romântica do “tempo bom que não volta mais”. Meu Aiwa está comigo e sempre estará porque o modo que me relaciono com a música hoje eu formatei-o com o auxílio dele. Assim como certas pessoas, a ausência de certos objetos nos deixa coisados.

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Aforismos, disparates, flechas e outros ditos jocosos IV

10.6.16 Cabotino 0 Comentarios


Todo poder emana ou exala do povo?
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Tomar as coisas ao pé da letra leva-nos ao calcanhar de Aquiles delas.
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Concursos:
Tanta vaga de edital por aí que mais poderia se chamar: é de tal...
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Aviso na porta para o Amor:
Bata, depois entre.
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Minha utopia é o dia seguinte.
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Tudo posso naquele que em mim investe.
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No Brasil, a luz no fim do túnel é uma viatura.
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O Brasil é o país da piada e da tragédia pronta.
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A mercadoria mais cara de Brasília: o silêncio.
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Em 2016, conseguimos perder até o posto de Vira-Lata internacional.
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Stephan Zweig dizia que: o “Brasil é o país do futuro”, deve ser por isso que já nascemos velhos e acostumados com o passado.
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Impeachment, a palavra inglesa mais abrasileirada por força do hábito e do uso.
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PMDB, nunca vi algo de bom começar com as iniciais PM.
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STF
Toda vez que um juiz faz um pedido de vistas, eu penso logo em: vista grossa.

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