A Hecatombe Juvenal

13.5.15 Unknown 0 Comentarios


A sensação de formigamento começava na ponta do dedão do pé esquerdo e irradiava pelo corpo, até chegar na cabeça, onde explodia no córtex cerebral. Era o sentimento já tão caro a Juvenal, desde suas primeiras fraldas mijadas: o ódio. Aquilo que outrora no berçário e nas primeiras interações na tenra infância escolar era apenas uma reação de pura pulsão, quase que um arco-reflexo, agora era dotado de consciência, complexidade e... requinte, por que não? Não sabia explicar como a reação em seu corpo começava, mas aprendera a desfrutar com certo prazer daquela sensação. Mas Juvenal sabia exatamente o que desencadeava todo o processo: o outro. Não se tratava de ter pavio curto, ou de ser uma pessoa tida pelos outros como intolerante. Antes, o contrário. Era uma criatura dotada da paciência de Jó. 
Essa era a dualidade essencial de Juvenal: ódio x parcimônia. A síntese em pessoa. Juvenal tinha essa consciência, só não tinha como precisar o que era tese e o que era antítese, qual delas era o ódio, qual era a parcimônia. Juvenal era isso: uma força resultante. Atuavam em sua alma o ódio e a parcimônia como forças opostas e Juvenal era a resultante. Mas, aproveitando o ensejo, por falar em resultante, com licença da aliteração, o resultado em seu organismo já começava a ser notado. A ponta do dedão do pé esquerdo já se encontrava em perpétua dormência, não chegando a necrosar, mas já não sentia a ponta do dedão do pé. Juvenal era nitroglicerina, instável, pronto para explodir a qualquer momento, mas não explodia. Juvenal era isso: uma bomba relógio que nunca zerava o contador.
O segredo desse delicado equilíbrio, entre a entropia e a serenidade, talvez fosse o seu senso de humor e a sua imaginação. Quantas vezes já não tinha cometido as maiores atrocidades com os objetos de seu ódio, em pensamento. Explodiu cabeças, arrancou-as fora; esmagou multidões com uma bigorna gigante que caia do céu ao seu comando, com alvo certo; arremessou janela afora centenas de milhares que lhe testaram a paciência; revirou pelo avesso, através do ânus, uma manada de criaturas intragáveis; empalou algumas bestas; eletrocutou "meninos bons"; derrubou toda uma esquadrilha de aviões, comerciais e militares...
Juvenal tinha essa faceta em sua psiquê: a crueldade criativa. Se um filme dessas cenas pudesse ser visto por uma plateia desavisada, talvez lhe causasse algum desconforto, um certo asco, talvez.
Mas, para quem fosse além dos primeiros 5 minutos de projeção, a diversão estaria garantida. Quem entre nós nunca fez uso da imaginação para o alívio das tensões, da mesma forma que Juvenal?
Ao ouvir os impropérios jogados ao vento pelas bocas malditas (essas malditas mesmo, no sentido pejorativo, não o usado para se referir a Gregório)... ao ouvir tais impropérios proferidos sem pudor, inconsistentes, incongruentes, intoleráveis, demasiado chulos, Juvenal se realizava fazendo uso de sua mais poderosa arma: sua imaginação. Quem em sã consciência intuiria que Juvenal ao fixar os olhos nos olhos de seus pares, acenar com a cabeça e emitir onomatopeias em resposta ao que lhe era dito, num simples diálogo despretensioso que fosse, quem iria intuir que naquele momento Juvenal "autistava" (ligava o chamado "modo autismo por opção")? Apesar de mimeticamente estar interagindo, na verdade estava apenas i-ma-gi-nan-do as mil formas como mataria aquele sujeito à sua frente. Dessa forma, mantinha-se num delicado e instável equilíbrio. Era notório aos seus que Juvenal nunca havia levantado a voz, nunca destratou alguém, fosse quem fosse. Não. Juvenal nunca havia perdido a compostura, sua calma de monge tibetano. Nunca. Até hoje. 
Tudo não passou de um auto-engodo, enganou a si mesmo por todos esses anos. Juvenal não era calmo, era acomodado. Acomodou-se em cima de si mesmo, se fez de assento e repousou sua bunda sobre a própria cabeça. Mas, não hoje. Hoje finalmente aconteceu: explodiu. E ao explodir provocou uma onda de impacto que atingiu toda a cidade. Juvenal tomou proporções de hecatombe nuclear. Agora, sua cidade natal era apenas uma enorme cratera no chão, um buraco sem vida. O único vestígio encontrado pela perícia técnica que investigou o caso: a ponta do dedão do pé esquerdo.

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