O certo é o certo
Quando o vi colocando a
carteira, os óculos de sol e o molho de chaves no repositório, já pensei:
“maluco conhece maluco! Mas deixa ele passar da porta giratória, que eu dou o
veredicto”. Pimba! O doidera carregava debaixo dos braços o livro-manual “Se
saindo das butadas”[1]
e não tardaria para que houvesse uma demonstração pública de sua erudição, à
moda dos antigos lombreiros idealizadores deste que é uma espécie de vade-mécum
universal. Aliás, sentado, depois, ao meu lado, pude perceber que a sessão do
livro-manual que possivelmente ele vinha lendo, no 5603, era a intitulada: “O
certo é o certo!” Tive certeza disso depois do desfecho de sua atuação, quando
ele olhou pra mim e disse “Que nada!”, risonho, “O certo é o certo, né não,
Grande?!”, isso logo após ouvir um “Olha aí, já paguei a conta e tu ficou aí,
otário!”, que uma Galega soltou quando saía. Naquele instante, em mim, nasceu
uma empatia inefável, a qual o meu olhar se encarregou demonstrar-lhe.
Sua tese: escolhera aquela
agência por conta do movimento baixo e também por ser perto da praia, próximo
ao Busto de Tamandaré. Rolava um mergulho depois, final da Epitácio, orla de Cabo Branco e, tratando-se do Banco do Brasil, calculou: “Não é começo e nem o final
de mês, por acaso. Só deve ter uma ou outra madame pagando boleto aqui e, de
quebra, vai ter água e cafezinho lá dentro... Mas preciso evitar os meus modos
horrendus, que esse povo deve ser frescurento demais.” Dito e feito. Passando
da porta giratória, pegou a senha no “bicho” lá e foi direto encher sua
garrafa, da Sublime de 500ml, no gelágua do Banco, não sem receber os olhares
reprovadores do gerente da agência, menos pelo gesto, que pela água que deixou
cair no chão. “Caralho, que merda, foi mal aí!” A amiga da galega, uma morena,
que estava ao meu lado, disse logo ao ver a água esborrar: “Que bichinho
selvagem, aff!”
Ele possuía a senha C207 e
no painel, já haviam chamado a C202, o que corroborou sua tese da escolha da
agência, ao mesmo tempo em que causou-lhe um acesso de ansiedade, curado com um Free suave,
numa saidinha do banco. Após fazer fumaça e voltar, a senha no painel já era a
C204, fato que o fez perguntar aos presentes: “E aí, galera! A minha é a C207,
e a da vocês?” Depois de uns 20 segundos de silêncio, ele só ouviu minha voz:
“A minha é a C206, velho, já a C205, sei não...”. Depois disso, ciente de que
não haveria necessidade de perguntar novamente quem então possuía a C205, ele
se levantou da cadeira e foi pra frente dos caixas.
Provavelmente, nessa hora,
ele lembrou de uma das subseções do capítulo “O certo é o certo”, em que se
expressa:
1. Se, ao perguntares a senha em um fila de banco, não obtiveres resposta satisfatória, levanta-te e andas até o Caixa. Posto ser certo que haverá alguém querendo furar a fila e deves mobilizar-te para sairdes desta butada feiosa presente na terra derna que o mundo era menino.
1. Se, ao perguntares a senha em um fila de banco, não obtiveres resposta satisfatória, levanta-te e andas até o Caixa. Posto ser certo que haverá alguém querendo furar a fila e deves mobilizar-te para sairdes desta butada feiosa presente na terra derna que o mundo era menino.
Parágrafo único: Não faça
mugangas extremas.
E num era que ele estava
certo! A galega ao meu lado e a morena do “Que bichinho selvagem, aff!” foram
em direção ao caixa juntas, cada uma segurando uma fatura e uma cara de pau
caricata, digna daquelas meninas de Malhação que são escaladas, do nada, pra fazer
figuração no núcleo principal de uma novela das 23h, de baixa audiência, na
Globo. Ridículas, demonstraram medo e uma extrema impaciência quando no painel
pintou a senha C205. Ao se dirigirem ao caixa, olhando pros lados, perceberam
que meu amigo estava de pé, firme, esperando a hora certa de intervir. Quando a
morena, a dona da senha C205, já ia puxando a galega para pagar a fatura dela,
ecoaram as seguintes sentenças no BB: “Êpa, como é isso aí! Qual a senha dela?
Ela é a C206? Senão, é para chamar a C206!” Mais uma vez, um silêncio de uns 20
segundos se estabeleceu na agência, depois, ouviu-se uns resmungos da morena
com o rapaz do Caixa: “Ela é minha amiga, é só uma fatura da Thiago Bolsas que
ela quer pagar, e só!” “Deixa ela passar na frente, moço, por favor!”, implorou
baixinho. E em seguida, bradou meu amigo: “Não, não, não e não, o senhor sabe
que não pode, viu! O senhor sabe que não pode!”, e o caixa, olhando pro
Segurança que fazia menções de sorrir da situação, concordou: “Realmente, não
pode senhora! Ele está certo! A senhora deve pegar outra senha para ser
atendida, não posso fazer nada a respeito, me desculpe!”
Daí, 10 segundos depois, no
painel, a Senha C206 piscou em letras garrafais, e eu agradeci ao meu amigo de
guerra: “Porra, meu velho, muito obrigado, se garantiu, valeu mesmo!”
De resto o que eu tinha pra
pagar era tanta coisa, que deu tempo da galega pagar sua fatura no caixa
eletrônico e soltar a pilhéira, que mencionei lá no início, “Olha aí, já paguei
a conta e tu ficou aí, otário!”. Mas, não importa porque o certo é o
certo. Ah! o certo é o certo!
[1] O livro-manual “Se saindo das butadas”, paradoxalmente, é um Best-seller que jamais foi publicado. De linguagem universal, orienta diversos malucos (as) no mundo inteiro a não entrarem em roubadas em suas andanças cotidianas. Um escritor e documentarista recifense, Cobra Norato, tem planos de desenvolver o “Se saindo das butadinhas”, versão infantil e ilustrada do livro-manual. Faço referência ao "Se saindo das butadas" em outro texto, intitulado: “Diálogos flácidos para acalentar bovinos”
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