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22.9.15 Unknown 0 Comentarios


A Pele que habito é casca e, sendo grossa,
deixa os passos ruidosos e pesados demais.

É como se na hora de mostrar-se ao outro,
você, habitando uma extensão de si, na qual não se identifica,
ficasse louco porque não é apenas uma fantasia.

Daí é preciso mexer, bulir, usar tesouras, fazer cortes.
Tatuagens? Bem mais que isso.

A Pele que habito é chuva e, sendo fina,
faz doer bem mais na fila do SUS:
“Esse ser impuro quer mexer naquilo que Deus lhe deu”


Sigo assim rumo ao necrotério:
Silicone industrial;
Músculos infiltrados;
Dor.

E tudo isso,
junto com a pobreza,
somada à mesquinhez do espírito de quem me tolhe,
se transforma em meu espelho,
mutilando-me todo santo dia.  






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Um dia na vida de um Homo Lattes Lattes

15.9.15 Cabotino 0 Comentarios


Um acadêmico deve organizar sua vida com retidão e atilamento.

Vejam a programação do meu dia a dia.

Acordo cedo. Meu despertador está programado para tocar, todos os dias, exceto às quartas-feiras, às 11h37m. Nas quartas, ele desperta às 11h23m.

Nunca deixo de fazer minhas refeições. Faço meu desjejum às 11h40m e termino-o às 11h43m. Alimento-me de maneira frugal para não ter futuras indigestões, e de maneira lenta (temo engasgar-me). No desjejum, alimento-me apenas de mingau de aveia acompanhado de iogurte grego, pois uma harmoniosa eliminação dos alimentos não interferirá em minhas inspirações à privada.

Às 12h20m percorro as pejadas prateleiras de minha biblioteca. No momento, faço prospecção para a feitura de um artigo sobre as crises cíclicas do capitalismo no debate entre os marxistas ocidentais.

Depois de ler duas laudas da Dialética Negativa (Adorno); cinco laudas de Americanismo e Fordismo (Gramsci) e mais meia lauda de O Discurso Filosófico da Modernidade (Habermas), eu tiro um cochilo em meu divã forrado com pele de lhama dos andes peruano.  

Meu despertador sobressalta-me às 14h40m. 

Às 15h00m minha empregada serve-me o almoço. Sou adepto da dieta macrobiótica. Balanceio minha alimentação no equilíbrio entre: sódio-potássio. Com o tempo, minha empregada aprendeu o equilíbrio entre os dois compostos químicos por meio de exaustivas aulas que lhe conferi sobre a dialética oriental do yin-yang (sódio-potássio).

Às 15h43m ponho a coleira em Debord (meu cachorro é um vira-lata espetacular, adotei-o por iniciativa de uma hastag: #viralataécordial que vi no Facebook) e saio para passear com ele. 

Minhas caminhadas com Debord são inspiradoras. Entre uma evacuação e uma excitação de Debord para qualquer cadela que passe na rua, eu penso na classe trabalhadora e no cada vez mais diminuto prazo para submeter meu artigo nos periódicos Qualis (Estrato A1) de minha área. 

Às 16h50m volto da caminhada revigorado.  Solto Debord e pratico um pouco de Sânscrito com um professor iraniano que mora em Calcutá. Conheci-o por meio do YouTube. Seu canal têm meia dúzia de pessoas inscritas. 

Às 17h00m navego pelo currículo Lattes de meus colegas de departamento e vejo quais são as suas mais recentes produções, e em quais periódicos eles publicaram. 

Às 17h13m olho a foto de Baudelaire pendurada na parede de meu escritório e reflito: to be Dandy or not to be Flaneur, that is the question. 

Às 17h21m, banho-me e em seguida faço um leve jantar à base de legumes. Geralmente uma sopa. Estou reduzindo minha alimentação, antes comia em pratos fundos, depois passei para os rasos, logo depois, para os de sobremesa e hoje como em um pires. 

Às 18h28m vou à universidade, de carro, ministrar minhas aulas. Neste semestre, estou lecionando uma eletiva intitulada, Problemas centrais na produção de imagens no século XXI: uma agenda pós-narcísica

A disciplina que conta com uma dúzia de alunos começa, britanicamente, às 19h15m. Os alunos geralmente chegam atrasados, em plena exibição dos vídeos que escolhi após exaustivo exercício heurístico. Ao acender as luzes, percebo que alguns deles se emocionaram com as imagens, pois seus olhos estão em rubra cintilação. 

Às 21h30m volto para casa. 

Às 21h40m retiro um cravo do rosto.

Às 21h45m ponho o pijama. Em seguida pego o meu regador de estanho, em formato de cisne, que comprei por $ 50,00 de um artesão/hippie em Fresno (Califórnia, EUA). Com ele, aguou minhas mudas de açafrão, cardamomo e anis estrelado ao som de Ravi Shankar.  

Às 22h10m escrevo dois parágrafos e meio do meio artigo.

Às 22h21m faço minha citação diária no Facebook. A de ontem foi: As ciências humanas na América Latina necessitam de uma rigorosa revolução metodológica. Não podemos continuar construindo teorias sociais progressistas, para uma agenda política contemporânea, com uma metodologia do século XIX. É preciso atualizar o método científico para além dos pólos: nomotético ou ideográfico. Caso contrário, padeceremos – ad nauseam – de um cacoete metodológico que só faz reproduzir as velhas estruturas do pensar/agir político tão característico do nosso continente.

Às 22h43m recolho-me exausto ao meu leito. Para embalar meu justo sono, geralmente escuto Kanne G em som ambiente. Durmo e sou despertado às 2h25m para tomar meu suco detox com uma cápsula de 50mg de ansiolítico. Depois volto a dormir.

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Os números que envolvem a vida e a morte

12.9.15 Cabotino 0 Comentarios


Das duas forças que mais atraem o ser humano estão: o sexo e a morte. Talvez porque seja o início e o fim da vida. Ou talvez por ser dois fenômenos humanos que lembram, respectivamente, a completude e a cisão de duas experiências distintas que um dia buscaram unidade.

Deixarei o sexo para outras paragens, no momento, o que me interessa é refletir sobre a morte não de maneira filosófica ou científica, mas sim de maneira prosaica. Algo do tipo: o que nos leva a quantificar a tragédia? 

Por estes dias me deparei com um cadáver crivado de balas próximo à minha casa. Era um domingo à noite e eu voltava para casa bêbado. Por estes movimentos incalculáveis do destino, eu estava ouvindo no smartphone a canção: Quanto vale a vida? A versão do Filmes de guerra, canções de amor dos Engenheiros do Hawaii. 

Na rua anterior à da minha casa estavam lá: polícia científica e seu macabro rabecão, policiais militares fazendo a contenção para os policiais da civil (quantas policias precisa o Brasil?), e claro, a infinidade de curiosos debruçados sobre o cadáver. Me aproximei e vi que tinham matado Guará. Um “correria” da favela que praticava algumas transgressões – fazia seus “corres”, como se diz por aqui. 

Na boca miúda diziam, a princípio, que Guará estava envolvido com mulher casada. Em seguida, falaram que ele havia esfaqueado há uns dias, dois caras lá para as bandas de riba, por isso, talvez, tenham vindo vingar o sangue alheio que Guará havia vertido dias atrás numa discussão de bar. 

Eu sou mais próximo do irmão de Guará do que era deste. Mas senti o baque da morte pois a finitude daquela maneira é algo que não desejamos a quase ninguém e, o corpo dele ali na sarjeta, crivado de balas, com a água do córrego levando seu sangue morto e coagulado, era uma imagem forte e degradante. Em meio à multidão, uma menina filmava o morto.

Não há nada mais inútil do que filmar um cadáver, pensei.

Ao meu lado havia outra menina, Lilica. Fiz-lhe uma pergunta filho da puta, mas que de tão usual torna-se lugar-comum em momentos assim: quantos tiros ele levou? Ela respondeu-me que: “uns sete tiros só na cabeça. Os caras vieram certinho, dois encapuzados que só queriam ele. Fecharam ele e saíram andando assim como vieram”. Acho que foi uns sete tiros mesmo, ou mais, pois a fisionomia de Guará estava irreconhecível. 

De imediato lembrei do sorriso de Guará quando jogava sinuca lá no bilhar de Sr. Nezinho. Era um dos melhores tacos da favela. Era difícil ganhar para ele, apenas Mago e Careca, às vezes, podiam bater Guará no tapete verde. 

Depois fiquei pensando, o que leva uma pessoa a querer saber os detalhes do impacto, digo, os números que envolvem, como a fumaça de um misterioso incenso funesto, a morte? Vejam bem, quando alguém morre ao cair de um edifício – suicídio ou acidente – as pessoas (inclusive eu) perguntam logo: caiu de que andar? Ou quando alguém é esfaqueado a pergunta de pronto é: quantas facadas?  

Em caso de suicídio a mórbida curiosidade também vem à tona: quantos comprimidos? Se jogou de que ponte? Aquela mais alta? Ou coisas do gênero: “Ele deu três nós na corda!” com exclamação e tudo.

Há um silêncio tácito na quantificação macabra da morte quando se trata de calibre 12. O cara levou um tiro de doze. Pronto, ninguém precisa perguntar quantos tiros foram. Um apenas basta. O emissor e receptor da notícia são cúmplices de um silêncio que assente, no pensamento de ambos: caixão fechado para a família e amigos.

No fundo o que está pautando as interjeições das trágicas notícias é a quantidade, seja ela em toneladas, calibres ou polegadas.

Fico aqui pensando, o que nos leva a esta lúgubre curiosidade diante da morte? Às vezes penso que em relação à finitude e ao sexo, os números são os nossos dínamos. Os amantes têm sua matemática assim como qualquer causa mortis porque no fundo necessitamos fatorar a morte e o sexo para ver se encontramos, por meio de Eros e Thanatos, o máximo divisor comum ou o mínimo múltiplo comum de nossas vidas mesquinhas.

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As coxas de Lú...

4.9.15 Castanha 0 Comentarios


Lú não é só coxas, mas eu gosto muito das coxas dela, o título dessa crônica não é à toa. Lú é, na verdade, Sandra Luíza Gomes e mais uns sobrenomes, mas eu gosto de chamar: Lú; com a língua batendo no céu da boca e o som voando monossílabo vindo de minhas cordas vocais até alcançar os ouvidos próprios e alheios: Lú! Lú tem coxas bonitas! Coxas boas de apertar, envoltas em pele clara, encaixadas em quadris largos... Bonita! Um sorriso fácil, largo, solto... Sorri. Cabelos curtos cortados pouco abaixo das orelhas. Pouca mais de um metro e cinquenta de altura. Um temperamento meio paciente meio nervoso. Inteligente, dedicada. Lú é um pouco atrapalhada, e também um tanto esquecida, muita vezes eu me irrito com isso e discutimos, mas passa.  Lú, quando não está gravida, tem, também, cintura de menina, cintura parecida com as cinturinhas de suas alunas de 14 e 15 anos. Digo “quando não está grávida” porque agora Lú traz Ulisses no útero, e dentro de dois meses ele nasce. Depois disso tudo Lú volta a ter cinturinha de menina. Por hora eu olho a barriga grande pontiaguda e dura de Lú; olho ela sem roupa ou com roupa, antes e depois do banho quando dorme e quando acorda... Continuo desejando Lú, continuamos nos desejando. Olhar Lú barriguda não diminuiu meu desejo, do mesmo jeito que carregar uma barriga de gestante não diminuiu o apetite dela por sexo: transamos tanto agora quanto transávamos antes de Lú ficar barriguda. Lú tem uma bunda bonita, e eu gosto tanto da bunda dela quanto das coxas dela quanto do sorriso dela quanto da barriga dela... Eu tinha escrito que Lú tem alunas, mas ela tem também alunos, e isso porque ela é professora de língua portuguesa, redação, literatura, coisas que alimentam o espírito da gente. Por ter essa capacidade de tratar de coisas que são boas pra alma, eu peço ajuda pra Lú: quando faço leituras, compartilho com Lú; quando penso em coisas que quero escrever, compartilho com Lú; quando escrevo essas coisas, peço pra Lú corrigir (essa crônica mesmo que você está lendo, Lú vai corrigir logo mais, bem antes de você saber que essa crônica existe). Nós éramos amigos, uns dois anos atrás. Depois viramos confidentes, por volta do ano passado. Depois viramos amantes, no começo desse ano. E rapidinho nos casamos quando descobrimos que Lú estava grávida. E quando Ulisses chegar, o que não demora muito, vai me encontrar, pai dele e marinheiro de primeira viagem em matéria de paternidade. E vai encontrar Lú, que uns oito anos atrás deu a luz a Gabriel.  Lú será então mãe de Ulisses, além de ser mãe de seu irmão Gabriel, além de ser tudo que descrevi nessa crônica e mais um milhão de coisas que não caberiam nessa página.


Castanha 04 de setembro de 2015         

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A lógica da brodagem

2.9.15 Unknown 0 Comentarios


Recentemente o tumulto causado por Cláudio Assis e Lírio Ferreira no debate sobre o filme "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert, que contava com a presença da diretora e que foi realizado no Cinema do Museu, Casa Forte, tomou conta da cena cultural pernambucana. A postura lamentável dos dois cineastas foi, inicialmente, denunciada nas redes sociais, e só depois alcançou a mídia tradicional.

A repercussão do caso obrigou a Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco), instituição que administra o cinema, a se posicionar. O que ela fez, primeiramente, através de uma nota onde condenou a atitude dos cineastas e pediu desculpas ao público. Posteriormente, outra nota foi divulgada, dessa vez comunicando uma "punição" ao dois envolvidos - que consiste numa suspensão, por um ano, de qualquer atividade relacionada a Cláudio Assis e Lírio Ferreira nas dependências da Fundaj, o que inclui também, e sobretudo, a exibição dos filmes deles.

A indexação da obras dos cineastas repercutiu bastante e foi alvo de reflexões também por parte do FoiHoje. Em "Complexo de Mersault", o Cabotino levantou questões relativas ao papel do Estado, que teria a função de garantir o acesso a obras, como os filmes dos dois cineastas, produzidas com dinheiro público; a Fundaj, instituição de pesquisa fortemente sustentada com aporte público, seria o caminho pelo qual essa produção é escoada.

A questão é que os dois diretores, ao quererem protagonizar um espaço no qual não cabiam seus protagonismos, ao desrespeitarem diretora, elenco e público - tudo isso conforme relatos publicados nas redes sociais -, assumiram uma conduta machista e homofóbica, e acenderam uma discussão sobre gênero e sexualidade. Estes talvez sejam os temas mais candentes do debate político e social, hoje, no mundo. Tema esse que já alcançou a esfera da produção cultural, área mesma de Cláudio e Lírio, como atestam os beijos gays das últimas novelas da Globo, o filme francês "Azul é a Cor Mais Quente" e o pernambucano "Tatuagem", para ficar nos exemplos mais recentes e variados possíveis.

É aqui que todo o "argumento prático" em torno do papel do Estado e da Fundaj parece degringolar; é aqui que a punição ao triângulo diretor-equipe-público, e não estritamente a diretor-pessoa, ganha plausibilidade e começa ser aplaudida. Porque toda a nossa organização socioeconômica e todas as formas de produção, inclusive as de produção de cultura, se coordenam com práticas e hábitos mentais. Isto é, há normas e valores em jogo. Há um código simbólico - e Cláudio e Lírio parecem ter rompido, agora, de forma irremediável esse código.

Digo "agora" porque, e acredito que não seja difícil recordar, Lírio e Cláudio já foram os ícones maiores do ufanismo pernambucano. Suas obras davam o tom desse esquisito nacionalismo provinciano; forneciam a sustança da vaidade local. E seus diretores pareciam corporificar essa aura. O segundo deles, de sobrenome "Assis", era amiúde, e até mesmo em espaços institucionais e acadêmicos, classificado como um diretor "anárquico", "liberto", "sem pudores".

Será demais lembrar a estreia de "Febre de Rato", no Janela de Cinema de 2011, onde Cláudio Assis subiu num Variant azul, carro utilizado nas filmagens do longa, e foi ovacionado pelo público presente, que, àquele momento, ainda aguardava do lado de fora a abertura das portas do Cinema São Luís para a sessão?

Recordo para isso pontuar que a mesma "cena cultural" que agora repreende, desaprova e censura os dois diretores, outrora os aclamou e quase os"santificou". Em outro termos, essa "cena", esse esquema de produção baseado na "brodagem", que configura um certo tipo de "sociedade do elogio mútuo", onde o que é caseiro é necessariamente legal, tem parte de culpa na egolatria dos dois cineastas, egolatria essa que transbordou em machismo na sessão de debate de "Que Horas Ela Volta?". A cena, tal e qual chronos, quer tragar quem ela própria concebeu.

Ajuda também a colocar mais algumas nuances na decisão, que parece ter passado quase ilesa a críticas, da Fundaj de proibir obras de Cláudio e Lírio. Isso porque em toda formação cultural há certos grupos em disputa. No caso da produção do audiovisual de Pernambuco, a turma do "sertão pop" - Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Marcelo Gomes -, parece estar perdendo espaço para a galera que critica, através de seus filmes, a categoria a qual pertencem: a classe média urbana de Recife e ajdacências  - desse grupo, fazem parte Daniel Aragão, Gabriel Mascaro, Marcelo Pedroso, Kleber Mendonça Filho. Este último, a figura responsável pelo setor de cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Pois é...

Refletir e criticar a punição da Fundaj a Cláudio Assis e Lírio Ferreira não é, nem de longe, anuir ou defender a conduta deles dois. Enquanto escrevia estas linhas, tomo conhecimento que a figura central em toda esta celeuma, a diretora Anna Muylaert, se pronunciou a favor de uma punição, mas contra a proibição dos filmes. Isso é significativo, mas a sanção imposta fela Fundaj não parece que vai ser retificada - tendo em vista, também, que ela foi bem recebida pelo público. Dentro desse quadro, portanto, vale a indagação: passaremos em revista a conduta particular e as atitudes pessoais de diretores e diretoras antes  de colocarmos suas obras em cartaz?







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Complexo de Meursault

1.9.15 Cabotino 0 Comentarios


Em 1942 Albert Camus lançava O Estrangeiro, um daqueles romances que não deixam o leitor passar ileso. Um livro sem concessão. A narrativa conta a história de Meursault, um homem branco que mora no bairro francês em Argel, capital da Argélia. A tantas da narrativa, Meursault atira e mata um árabe no litoral de Argel por motivos digamos assim, fenomenológicos – fazia muito calor no dia. No final, há o julgamento de Meursault e a certa altura da sessão, entra em cena o porteiro do asilo onde a mãe do protagonista vivia antes de morrer. O porteiro disse ao júri que o réu era indiferente à mãe e relembra que ele não chorou quando fora ao asilo reclamar o corpo. O júri fica horrorizado com tamanha indiferença e ausência de sentimento do réu frente à notícia da morte da mãe na ocasião relatada pelo porteiro.

Trouxe à tona o episódio do julgamento em O Estrangeiro para falar da punição que a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) decretou sobre os cineastas Cláudio Assis e Lírio Ferreira, após o imbróglio que envolveu a dupla de diretores no último sábado (28/08), no cinema do Museu, em Casa Forte, na ocasião do debate sobre o filme Que horas ela volta? (2015) que contou com a presença da diretora do longa-metragem, Anna Muylaert, amiga dos dois cineastas. A punição consiste em: suspensão de um ano para qualquer atividade que envolva os nomes de L. Ferreira e C. Assis dentro das dependências do cinema da Fundaj (Derby e Casa Forte). Isto é, proibição das exibições dos filmes da dupla de realizadores.

A celeuma ocorreu porque a dupla de cineastas “visivelmente embriagados”, segundo relatos da plateia, chegou à sessão e começou a monopolizar o debate com expressões de gordofobia em direção à protagonista do filme, a atriz Regina Casé, e comentários de cunho misógino e homofóbico com membros da equipe de Que horas ela volta? Tudo isso gerou inúmeros comentários nas redes sociais, sobretudo no Facebook. Alguns dizendo que foi justa a punição; outros, que foi exagerada. Enfim, aquela polarização política que mistura: patrulhamento ideológico, politicamente correto, dedos em riste no teclado e discursos batidos envolvendo a famigerada expressão, tolerância. Tão liberal quanto anódina.


O que aparentemente escapou do debate é a posição de censura da Fundaj. Sim, censura porque quando o Estado resolve ser crítico de arte surgem distorções como a desta decisão. De maneira apressada e sem um mínimo de ponderação, a Fundaj resolveu indexar às obras dos cineastas aos comentários repugnantes de dois homens bêbados (o que não justifica o comportamento reles de ambos, é claro). Ou seja, o que os filmes de L. Ferreira e C. Assis têm a ver com os lamentáveis comentários preconceituosos dos seus criadores? E digo mais, com esta decisão a Fundaj está privando quem de fato pagou e paga não só as produções da dupla de diretores indexados, como também as instalações da própria Fundação Joaquim Nabuco, o cidadão brasileiro.

Não devemos nos esquecer que ela é uma instituição de pesquisa social financiada pelo poder executivo. Já os filmes são produzidos com recursos do governo federal, por meio da dedução fiscal da Lei Rouanet, em menor aporte, e com maior aporte do Funcultura – o Fundo de Fomento à Cultura de Pernambuco – por intermédio do ICMS estadual. Ora, o grande prejudicado desta decisão de horizonte político-social limitado, é quem realmente paga a conta de tudo, o público. 

Não sei se Sangue Azul (Lírio Ferreira, 2015) ainda está em cartaz na Fundaj, e se estiver qual deve ser o posicionamento da instituição frente ao longa-metragem: retirá-lo de cartaz? Ou deixá-lo porque a punição não é retroativa?

Qualquer obra de audiovisual produzida no país com dinheiro público não é apenas de quem produz – diretores, equipe técnica etc., - é um patrimônio do povo brasileiro que, de fato, pagou a fatura do produto. Outro agravante, a punição não recai apenas nos cineastas e no público de modo geral, ela recai também sobre a equipe técnica que, acredito, não teve nada a ver com o lastimável episódio protagonizado por L. Ferreira e C. Assis. Se é para fazer alguma sanção, que esta seja praticada em quem realmente produziu o mal-estar, ou seja, os diretores.

Episódios deste tipo me fazem lembrar a história do escritor francês, Louis Ferdinand Celine que foi um colaboracionista na época da invasão alemã à França, durante a Segunda Guerra Mundial. Sei que o exemplo é extremo, mas há uma analogia. Na época que descobriram o colaboracionismo de Celine, muitos quiseram indexar sua obra literária fazendo um estranho – e não muito incomum – exercício de universalizar uma postura que fora individual. Isto é, impuseram um julgamento à obra artística acabada (tanto na esfera estética quanto ética) de Celine, no mesmo patamar de sua colaboração com os nazistas. Tentando inferiorizar sua obra por conta do seu posicionamento ideológico-político.

Ao que me parece, o exercício de jogar a água da banheira fora com o bebê junto, foi praticado no episódio da punição aos dois cineastas. Mais uma vez, as obras artísticas que foram realizadas em condições certamente opostas das que foram vilmente protagonizadas por seus realizadores estão sendo, metonimicamente, responsáveis.

Não seria um desserviço público: uma instituição de pesquisa social com décadas de atuação em esfera nacional e internacional, com um recém programa de pós-graduação em Sociologia para o ensino médio, privar o público de assistir aos filmes financiados por este mesmo público? Um absurdo tipicamente brasileiro: dinheiro público barrando dinheiro público. 

Com esta decisão unilateral e pouco ponderada, parece que há mais coisas em jogo. Talvez a decisão não fora apenas tomada pela repercussão que o entrevero teve nas redes sociais a priori, somado o “agravante” de ter sido praticado na recém inaugurada sala de exibição no coração da Fundaj – o Museu do Homem do Nordeste – a instituição quis tomar uma decisão enérgica. Ao que parece, a sentença mira o incipiente campo do audiovisual pernambucano. Em uma palavra, o gancho de um ano para a dupla de diretores parece indicar qual o lado em que a balança do audiovisual está pesando mais em Pernambuco no momento, e o lado é o da Fundaj que tem sua programação sob a curadoria de dois cineastas, Kleber Mendonça Filho e Luis Joaquim.

Finalmente, o Complexo de Meursault se abateu na Fundaj que, com esta decisão, fez as vezes do porteiro do asilo em que vivia a mãe do personagem-narrador de O Estrangeiro: esquivou-se do cerne da questão – as posturas repugnantes da dupla de realizadores – e culpou a reboque quem de fato não teve nada com a história, os filmes que serão privados de serem exibidos em uma das duas melhores salas da cidade, justamente em um período em que a cultura agoniza em todo o país. Parece que o absurdo é realmente a tônica humana como aponta Camus, sobretudo abaixo do Equador.

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Na imagem, o ator Luiz Carlos Vasconcelos interpretando Lampião no filme Baile perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997).

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