Voyeur voyage

28.5.15 Cabotino 0 Comentarios



Eu e as outras almas sebosas do bairro, Bida, Nêm e Sapuia nos reuníamos por volta das 15h30 após a indefectível sesta subsequente ao almoço. O sol no verão recifense é de rachar até poça d'água, e nos anos 1990 havia o agravante do Rombo na Camada de Ozônio, ou seja, era uma paranoia a mais para evitarmos o sol a pino. Ali na hora em que o comércio voltava a reabrir – há o costume, na periferia, de fechar o comércio após o horário de almoço – nos juntávamos entre as ruas 17 e 18 para deliberarmos a maloqueiragem da tarde.

Entre as propostas levantadas pela Alta Cúpula da Vadiagem estavam: jogar bola no campo da Fumaça; roubar manga no Sítio de Biu Oi de Poico; Tomar banho no açude do Sr. Narizinho ou ir à Bica lá da Rua 50. Daí Sapuia, punheteiro inveterado, olhou para Nêm e sugeriu: por que não brechamos Duda mais tarde? Duda é a corruptela de Eduarda, filha de Sr. Jaime, um dos coroas mais bombados da Quebrada, era um dos poucos que tinham carro na região. Acabara de comprar um Volkswagen Voyage zero bala. Nós olhamos para Sapuia e perguntamos estarrecidos: que história é essa, meu irmão? Todos nós éramos experts na arte de espionagem de mulheres nuas, eu, por meu turno, já havia brechado minhas primas, umas vizinhas na época que morava na rua 23, as filhas dela eram o pipoco, mas a mãe tinha um par de tetas maiores do que os braços do Padre Fritz, alemão que celebrava as missas dominicais na Capela Obra de Maria, localizada no bairro.

Sapuai disse-nos que havia brechado, junto com Nêm, Duda uns dias antes pela fresta das telhas canal que ele havia afastado partindo do telhado da casa de Nêm que era vizinha à de Sr. Jaime. Enquanto ele dava os detalhes sórdidos do voyeurismo mais cobiçado da Quebrada, nós, estarrecidos, começávamos a conjecturar as cenas e viabilizar os horários da espreita, falar com Nêm e os cuidados inerentes a tal empreitada. Sapuia nos informou que o horário ideal era por volta das 17h30 quando Duda retornava das aulas particulares com Dona Quitéria, velha que ajuizou muitos espíritos de porco da Quebrada com sua gramática normativa antes do acordo ortográfico de 1992, da tabuada de multiplicar e dos infinitos exercícios em algarismo romano.

Na época, Duda era de uma beleza estonteante. Dona de um par de pernas que punha muita mulher no chinelo. Era daqueles fenômenos da natureza que assolam as mulheres que, da noite para o dia, como em um toque de prestidigitação do maldito Tempo, transforma meninas em mulheres. Há pouco tempo, nós a víamos como mais uma menina da boa família pernambucana, pequena, com duas tranças no cabelo, um par de melissas da Sandy nos pés, roupas compostas. De repente, ela passava para ir à escola pela manhã no Voyage do seu pai: calça jeans apertada, cabelo castanho encaracolado; molhado pelo banho matinal e com creme para domar os cachos irrequietos pelos cálidos sonhos sobre os lençóis e os travesseiros – eternos confidentes das meninas acossadas pelos desejos que fariam molhar toda sua alcova.

Partimos para a casa de Nêm quando sol começava a declinar a oeste, lá por trás dos morros de Jaboatão dos Guararapes, e deixava o horizonte com aquele alaranjado cítrico como casca de laranja mimo pipocando os ácidos na retina ao descascá-la com a sui generis engenhosidade do corpo humano – o polegar opositor. Chegamos por lá e ficamos com aquela cara de menino pronto para fazer fuleiragem, como no momento que antecede o quebra panela no dia de Santo Cosme e Damião. Neste instante, vimos Duda voltando para casa, com seu ubíquo fichário cravado rente ao busto, um shortinho jeans da cor do céu de horas atrás, um top com gola em “u”, e calçando um par de Opankas.

Nos posicionamos pela laje do banheiro da casa de Nêm, no miudinho, agachados para não chamar tanta atenção, pois se fossemos flagrados estávamos fodidos. Para tapear, pegámos uma lata com linha e um papagaio de Bida que estava na casa de Nêm há um tempão, da época da última temporada de pipas. Decidimos que quem iria brechar de início era Sapuia e Nêm por terem a primazia da descoberta. Em seguida, iria eu e Bida. Afastamos as telhas e ficamos esperando o momento do bote.

Eu e Bida percebemos que Duda havia chegado no banheiro pela excitação de Nêm e Sapuia. Enquanto isso, minhas mãos suavam, havia um calafrio na minha barriga e uma vontade miserável de cagar. Mas, controlei-me por que não queria perder aquele momento, tampouco demostrar fraqueza frente àquelas almas sebosas especialistas em arriação. Após uns minutos, fizemos gestos para revezar a tocaia, mas Sapuia e Nem não davam a menor indicação de que iriam abandonar seus postos. Daí eu olhe para Bida e gesticulei com a mão direita além de balbuciar: vamos nessa. Conseguimos afastar um par de telhas e aí meu Deus! As cenas a seguir ficaram gravadas na memória como uma linda estampa chapa o tecido branco de algodão da camisa no processo serigráfico.

No interior do banheiro, sob uma lâmpada Osram de cem velas que caia no seu corpo como chuva florescente e iluminava ainda mais sua pele suada na véspera do banho, víamos Duda sentada em um banquinho de madeira com as costas apoiadas na parede. Suas pernas estavam abertas, à altura da cintura, e cada uma apoiava-se ora no criado mudo repleto de cremes, xampus, condicionadores, escovas, pentes etc., a outra estava sobre um banco de plástico no mesmo nível do criado mudo, daqueles bancos com quatro furos no seu centro. As pernas compunham em sua geometria um sensível triângulo equilátero. Entre as pernas dela, havia um segundo banco onde encontrava-se um espelho [apoiado por um pote de cremes] em formato retangular, daqueles de moldura vermelha, onipresente em qualquer barbearia suburbana do Brasil. Na mão direita de Duda, havia um prestobarba Probak de uma lâmina, daqueles da haste branca e da capinha laranja.

Enquanto se depilava, havia um silêncio glacial sobre a sua cabeça, quatro marmanjos donzelos a espreitava, descaradamente, enquanto ela fazia o seu ritual higiênico, ou estético, ou habitual vá lá saber. Seu corpo parecia um muçum brilhante, sua pele irradiava um brilho tal qual jambo maduro, uma maciez e um calor que podíamos sentir a metros de distância. Suas ancas aterradas no banco de madeira faziam transbordar a curva equatorial do seu corpo para fora da circular superfície da madeira. Enquanto sua mão direita ia e vinha, descrevia arcos nas virilhas e entre os dois lados da fenda vaginal. Em um dado momento, percebi, não sei se os demais também, que ela esboçou um leve sorriso, como aqueles assentimentos pueris que damos ao concordar com uma cumplicidade. Acredito que ela sabia que estávamos brechando-a.

Hoje, já adultos, poderia perguntar a ela se sabia da nossa espionagem daquela época, mas seria uma pergunta despropositada e inescrupulosa. Prefiro ficar com a atmosfera do interdito, do proibido que além de saboroso guarda o tostão da picardia do Tempo que deita tudo ao chão impelido pela força da gravidade da famélica senhora, a Morte. O Tempo e a Morte, duas entidades que nunca tiram férias assim como a prática vouyerista.


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Parônimos

24.5.15 Castanha 0 Comentarios


Parecidos, não iguais; como não confundir? Entender! Assim: integrar para não entregar, era o lema dos militares brasileiros em seu programa de avanço sobre a Amazônia durante a ditadura; não confunda um ônus com um ânus, você terá problemas; a eminência dos senhores poderosos é sempre iminente, eles não a deixam cessar; quem delata os companheiros dilata uma articulação, que pode estar visando uma revolução ou o roubo corrupto do dinheiro público; descriminar para parar de discriminar, é o que pedem as feministas sobre o aborto e os usuários sobre as drogas, pois, para tratar como igual a democracia precisa deferir diferindo; todo tráfico tem um tráfego, um movimento, coisas que não deveriam ir e vir, do jeito que vão, mas são movidas assim mesmo: drogas, pessoas, influências; aprender exige apreender, capturar o que está ao nosso redor, para olhar tudo diferente, transformando; infligir penas para quem infringi leis; quem não faz autocrítica corre risco de ratificar o que deveria retificar; emergir as mentiras e abusos de quem está no poder, faz imergir sua autoridade; para fruir ideias deixe fluir pensamentos; a falta de caráter é precedente e procedente da cretinice; são principalmente os pobres que acordam cedo ao soar o som do despertador, para suar a camisa ao longo do dia; a função do docente não tem sentido sem o discente, mas não por certa feita e sim, por muitas vezes, eles não se entendem; sortir a mente faz surtir reflexão; é triste ver que quem realmente trabalha está por suster quem vive de explorar o próximo, faz-se necessário sustar tudo isso, o outro não deve ser meu escravo, pois é meu irmão de raça humana; sessão para temporadas de teatro, cinema, apresentações ou seção para departamentos de burocracias, para lojas que têm coisas junto de outras coisas, parecidas mesmo, mas que precisam separar, resultando numa secção, cada coisa em cada canto dentro de cada lugar, separando tudo e criando muitas hierarquias fazendo haver cessão, onde quem o que não tem autoridade cede a quem tem, tantas vezes injusto.


Castanha 24 de maio de 2015

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Made in 80's

21.5.15 Unknown 0 Comentarios



   Mário sentia-se um peixe fora d'água agora. Agora mesmo, nesse exato instante. Olha só... viu!? A sensação de afogamento às avessas - respiração chiada, com dificuldade. Era estranho porque tinha sido uma criança triste, apesar de nunca ter transparecido isso, pelo contrário, sua atitude era brincalhona, o humor se fazia, e ainda se faz, presente na vida de Mário. Mas, não dizem por aí que o palhaço é uma figura no fundo tristonha. Pois bem. Assim era Mário. Seu sorriso não externava a lágrima que escorria para dentro.
  Mário gostava de aparelhos eletrônicos, sempre foi muito ligado nisso, era afeito às facilidades da 'modernidade'. Mas, se sentia um peixe fora d'água no século 21. Mário acompanhava, antenado a tudo à sua volta, as transformações tecnológicas e sua faceta revolucionária nos modos de ser e nos costumes: a era da informação. Mas, continuava, no fundo, no fundo, a se debater como um peixe fora d'água. Não entendia por que, só sabia que era assim que se sentia.
Febre nos anos 80 do século passado o Atari fez a cabeça
das crianças da época e de muito marmanjo também.
  Mário nasceu no final dos anos 70, portanto, teve toda a sua infância nos anos 80. Identificava-se bastante com essa década, pode-se dizer que tinha o espírito made in 80's. Sentia-se datado, de certa maneira, preso a um modo de ser, a um ritmo mais cadenciado, menos acelerado, lembrava-se de como gostava de perambular pela rua, moleque, passeava pela vila onde morava. Meio-dia, quando tudo fechava, voltava para casa para almoçar, nem sempre guiado pela fome, mas por esse movimento das pessoas da época - era um tempo onde fechava-se para almoço e voltava-se às atividades apenas às 14h. 
   Não chegava a ser nostalgia o que Mario sentia, pois, não idealizava aquela época, não era uma saudade idealizada, apenas uma saudade, mas também havia um certo alívio de não mais viver nos 80. Quando criança não se tem autonomia, não se pode isso, não se deve aquilo, o castigo era iminente, lembrava-se de como deixou de fazer tanta coisa que quis e o tempo, senhor implacável dos arrependidos, não colocou Mário novamente diante de situações semelhantes. Passou, perdeu - a oportunidade não voltaria. Mário se lamentava. Apesar disso, sentia saudade, uma saudade triste.
MacGyver o "faz tudo do nada" - seriado que durou de 1985 a 1992.
 Quando pensava naquela época e comparava sua vida à de hoje, entendia que a saudade era sadia, porque não queria 'voltar no tempo', gostava de quem tinha se tornado e de como as coisas hoje eram "mais fáceis", dinâmicas e, sobretudo, de como gozava de mais liberdade, tinha poder de decisão, autonomia. Outro dia, jogando conversa fora com um amigo, sobre os anos 60, rock and roll, cultura de massa, produção cultural, etc., teve uma sacada, pensou que havia um 'delay' cultural aqui, que os anos 80 foram os 60 da gente nesse sentido. Achou aquilo interessante, mas não chegou a verbalizar o que pensou. Guardou para si e não comentou com seu amigo. Sentiu que se identificava tanto com aquilo tudo que era quase como se fosse uma intimidade daquelas que não se deve compartilhar. 
   Mário, depois de adulto, nunca visitou a vila onde morou em sua infância, talvez por receio de que as mudanças na paisagem destruíssem aquela imagem que tinha do lugar. Preferia ficar com a memória afetiva imagética de como a vila era, não correr o risco de perder as imagens que guardava em suas lembranças. Mário era um peixe fora d'água, mas que não ia muito longe da margem, pois, caso a maré subisse a onda voltaria para buscá-lo.

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Nota pitoresca

19.5.15 Cabotino 0 Comentarios



Quando tinha por volta dos 12/13 anos, lá na segunda metade dos anos 90 do século passado, um escândalo sexual causou um frisson na opinião pública de canto a canto do planeta, talvez pelo fato de ter sido protagonizado pelo homem mais poderoso do mundo, o presidente dos EUA, Bill Clinton e sua secretária na época, Monica Lewinsky. O buruçú midiático envolvendo Clinton e Lewinsky consistia em: na acusação da prática de sexo oral que a secretária “pagou” no seu chefe. Vejam bem, quando o assunto é sexo e política, o rebu se alastra como rastilho de pólvora.

Nesta época o meu dia a dia consistia em: ir à escola pela manhã; jogar bola nos fins de tarde; jogar um playtime – de preferência Cadilac dos Dinossauros – no início da noite quando ia comprar pão lá pra casa; e bater punheta, descabelar o palhaço, usar Baygon no banheiro, matá-la na mão, se acabar na munheca como colher de pedreiro e outras alcunhas que atribuíamos a arte inaugurada pelo mestre Onã, segundo a Bíblia Sagrada, daí a expressão onanismo. Mas eu já sabia o que era um boquete, inclusive já havia recebido um, e não entendia o porque daquele burburinho todo. Meu Deus! Ficava imaginando... Se ele tivesse comido a Secretária acredito que teria até a sua primeira comunhão revogada pelo Papa! Pensava... com meu inglês de meteco à época: logo no país do fish, ball, cat um azáfama daqueles por conta de um “gagau”?

Eu não fazia muita ideia do que era o Salão Oval, as políticas do Pentágono e a posição central do presidente dos EUA no maior país protestante do mundo, a história dos EUA e sua inclinação moralizadora de ethos calvinista etc, etc. A única leitura que me valia na época eram as revistinhas de sacanagem de Miguelito e suas taras homéricas por vizinhas, primas etc. Por falar nisso, sinto muita falta das revistinhas do Miguelito, quem as tiver por aí (de preferência não grudadas) podem entrar em contato comigo que eu tenho interesse em comprá-las ou fotocopiá-las. Eu era de uma ignorância enciclopédica em relação a tudo – exceto futebol, vídeo-games e sacanagem – e meus conhecimentos em geopolítica eram equivalentes à quantidade de dinheiro no meu bolso, nenhum. Ainda não havia entrado na roda viva da Literatura e nos arcanos das ciências humanas, ainda não era uma cobra tentando morder a própria cauda.

Hoje, quase duas décadas após o escândalo-sexual-político (pleonasmo?) entre Clinton e Lewinsky, além de nesse ínterim ter fodido minhas retinas debruçadas em milhares de páginas sobre tanta coisa que valha-me Santo Expedito! E atarraxado a próstata por conta disso, eu me lembrei que na ocasião do polêmico “boquete”, houve a denúncia por parte dos jornalistas – arautos do caos – de um charuto cubano (provavelmente um Cohiba) que estava sendo utilizado pelos dois protagonistas de uma maneira, digamos assim, pouco ortodoxa. Daí hoje eu juntei as peças e fiz a pergunta derradeira, após quase meio século de relações diplomáticas azedadas entre os cubanos e os norte-americanos: o que porra um charuto cubano fazia na Casa Branca em pleno embargo econômico imposto por Washington à Ilha? 

Hoje como há duas décadas eu penso que o “bola gato” era perfumaria (sem ironizar com a esporrada de Clinton no vestido de Lewinsky), lá atrás eu apenas desconfiava, mas hoje tenho certeza que o escândalo fora uma cortina de fumaça (desculpem-me a redundância) para encobrir o charuto ou charutos que “furaram” o bloqueio do embargo (calvinista? Vou parar que já está demais, rs).

Antes, vale aqui algumas palavras sobre o futuro de Clinton na Casa Branca e, como a história provou, o “Severino” (Bill) lá de Little Rock fora reeleito em 1996 em meio ao rolo sexual (o presidente Clinton é casado com a hoje Secretária de Estado do governo Obama II, Hillary Clinton, e antes de ser reeleito pediu desculpas em cadeia nacional alegando que sexo oral não era sexo etc), o que prova que os estadunidenses, assim como todo o povo do mundo, vota com os bolsos. Se o norte-americano médio, unidimensional para usar uma expressão démodé criada por Herbert Marcuse nos jurássicos anos 1960, estava conseguindo pagar sua hipoteca, trocar o seu segundo carro no final do ano etc, então: mudar o status quo por causa de uma chupadinha? Nem fudendo. Quem dirá por uns charutos contrabandeados de Cuba? 

Ah, a História e suas notas pitorescas...

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Mataram o cinema e foram à brodagem

16.5.15 Cabotino 0 Comentarios


Jornalista (no WhatsApp): Que horas nos encontramos no Bar Central?

Cineasta pernambucano (no WhatsApp): Às 19h30 está ótimo para mim. Mas, poderemos nos encontrar nos bares da frente, pois as coisas por lá são mais em conta – risos – (entrementes, diz para si mesmo, o repasse do Funcultura para a produção do meu filme ainda não saiu, por isso, preciso economizar).

19h42 o jornalista encontra-se solitário à espera do cineasta no Bar São Jorge, um dos estabelecimentos defronte ao Bar Central. Enquanto espera, beberica uma Heineken (long neck) e fuma seu Marlboro de filtro branco.

19h50 chega o cineasta pedindo um milhão de desculpas pelo atraso alegando que estivera preso no trânsito. O jornalista levanta-se, cordialmente, para receber o convidado à entrevista e oferece-lhe um copo de sua cerveja. O cineasta recusa e pede uma Antarctica Original (600ml) ao garçom. O jornalista liga o gravador e saca da bolsa a tiracolo um bloco de notas e uma caneta esferográfica azul. Há, escritas no bloco, algumas perguntas que serão feitas ao cineasta.

Jornalista: Bem, gostaria de começar lhe perguntando sobre o seu novo filme. A quantas anda? Do que realmente se trata? E a previsão para o lançamento?

O cineasta bebe um gole de cerveja, olha de maneira apática para a lâmpada de mercúrio de um dos postes da rua Mamede Simões e fala.

Cineasta pernambucano: Então, o filme será um documentário em que pretendo fazer uma investigação a partir de uma larga pesquisa sobre os dispositivos móveis – celulares, gadgets, tablets –, que são utilizados por motoristas no trânsito. Uma espécie de etnografia-digital-urbana sobre o impacto do IPI reduzido para a compra de automóveis na Grande Recife nos últimos anos. Procuro analisar como se comporta essa nova classe média no trânsito. Parto do princípio de que o comportamento, na esfera doméstica, se reflete no trânsito. Porém, pretendo capturar esse comportamento através dos dispositivos móveis que, por ventura, captem essas atitudes dentro dos carros.

Jornalista: Mas, você já entrou em contato com esse público-alvo? Como está sendo isso que você chamou de pesquisa?

Cineasta pernambucano: No momento, quem está a cargo do recorte desta pesquisa é a minha equipe. Minha namorada encarregada da direção de fotografia – still – e Ulisses Santiago, na direção de produção. Ele trabalhou comigo no meu último filme: A venérea brasileira. E mais dois assistentes. A equipe é reduzida por conta da dificuldade que tive em obter recursos no último Funcultura. Eu parti do princípio que não deveria me envolver nessa etapa da produção justamente para não interferir na metodologia. Quanto menos eu conhecer o "público-alvo" – como você diz – melhor será para o desenvolvimento do filme, pois, não procuro criar empatia com os personagens nos meus filme. Essa uma característica do documentário brasileiro, ele sempre procurou empatia, uma boa relação entre cineasta e entrevistados, falo aqui do documentário nacional. Enfim, sempre há uma espécie de congraçamento na estreia do filme, com todo mundo confraternizando como se o cinema fosse puro afeto. Eu procuro desconstruir isso no meu filme a partir de duas maneiras. A primeira é essa que acabei de lhe falar, a ausência de empatia. A segunda é o uso dos dispositivos. Há no Brasil e, principalmente aqui em Pernambuco, um fetiche pela película. Pelo cinemão. Ou seja, as pessoas daqui em especial adoram idolatrar a imagem. Eu nunca tive isso. Assisti inúmeros filmes clássicos no notebook. Vejo série de tevê no celular. Por fim, chegou um momento em que pensei: há no mundo uma quantidade incomensurável de imagens produzidas. Acredito que o que produzimos em um único dia em quantidade de imagens, valeria por um ano inteiro de produção das mesmas no século XX, por exemplo. Então, por que não, trabalhar essas imagens já produzidas? A partir daí comecei a pensar na possibilidade das imagens criadas por dispositivos e, em cima disso, refleti sobre o inchaço ou crescimento desgovernado das cidades brasileiras, com ênfase no Recife. Vê, eu cheguei atrasado ao encontro por conta do trânsito. Nós devemos refletir sobre isso e o meu filme pretende trazer à tona esse debate. Não podemos esquecer que a redução do IPI foi uma política pública proveniente do segundo mandato de Lula. Ou seja, o Estado brasileiro dando concessões à indústria automotiva e ambos destruíram as cidades brasileiras. Tudo isso em prol da não estagnação econômica. Aquela história da "marolinha" etc.

Jornalista (com uma pergunta fora do bloco de notas): Quer dizer que seu novo filme fará uma inflexão para o tema do trânsito aqui em Recife e deixará um pouco de lado os argumentos dos seus dois últimos curtas: a especulação imobiliária, presente tanto em A venérea brasileira, quanto em 13 de maio não é dia de negro?

Cineasta pernambucano: não vejo assim de maneira estanque. Acredito que meu cinema esteja imbricado em um todo contínuo que seria: as novas configurações ou agressões urbanas que vêm afetando as pessoas nas grandes cidades brasileiras e Recife é o protótipo disso. Veja como essa cidade está se tornando hostil para quem vive nela. Principalmente para os mais desfavorecidos que usam o transporte coletivo todos os dias. Essas pessoas têm a impressão, cada vez mais confirmada, de que suas casas estão ficando cada vez mais longe do Centro da cidade. A especulação imobiliária e o IPI reduzido estão sufocando nossas cidades. Sem contar o projeto neodesenvolvimentista do PSB que acabou com as nossas praias, com as cidades da Região Metropolitana e agora transborda para a Zona da Mata, sem contar o Sertão, historicamente espoliado pelos sucessivos fracassos administrativos das instâncias governamentais desse país. O que o meu novo filme pretende é articular esses dois eixos do novo desenvolvimento regional: construtoras e indústria automotiva; com a explosão digital dos últimos anos. Tudo isso pensando as nossas velhas estruturas patriarcais, racistas e machistas que podemos ver refletidos em nosso trânsito, por exemplo.

Jornalista (outra pergunta fora do bloco de notas): Você não acha que há um paradoxo presente na crítica que seu novo filme pretende – criticar o novo desenvolvimentismo do PSB em Pernambuco ao mesmo tempo em que essa mesma administração abriu novas linhas de crédito e aumentou o aporte do Funcultura?

Cineasta pernambucano: Não acho, veja bem, você deve lembrar que o dinheiro para o Funcultura não sai dos cofres do partido, mas sim do ICMS estadual. Além disso, é papel da cultura, dos artistas e intelectuais, criticarem os destinos da nação pois se eles não fizerem, quem irá fazê-la? 

Jornalista: Bem, mas você deveria considerar, no mínimo, a administração atual porque as antecessores não fizeram nada para o cinema e as artes pernambucanas, ou se fizeram, fizeram muito pouco, não é?

Cineasta pernambucano: Acho que você não vai publicar isso, mas lhe pergunto? De que lado está a impressa desse estado? Do lado dos espoliados ou do lado dos espoliadores? Pelo jeito, mesmo vendo-o nas discussões do Ocupe Estelita, você, no fundo, está defendendo os interesses de João Carlos Paes Mendonça, o dono do jornal que você trabalha.

Jornalista: Sinceramente, estou tentando não ser cínico como muitos de vocês demonstram ser. Veja bem, sou branco, heterossexual, de classe média, tenho curso superior, carro e moro em um apartamento. Só não estudei cinema fora do país como você fez. Tirando isso, você tem uma vida igual a minha. Parece que se desfez do carro para tentar vender uma imagem de progressista eco-esquerdista da ideologia Ocupy. E sim, diferente de muitos de vocês, eu tenho dois filhos para criar e o futuro do jornalismo está indeterminado. Sim, sou sensível ao Ocupe Estelita mas tenho família para criar e o jornalismo ainda é a minha fonte de renda.

Cineasta pernambucano: Mermão, vamos deixar desse papo e vamos tomar a nossa cerveja numa boa. Te conheço há um tempão, lá da época do cineclube que nós organizamos lá na Unicap e não tô afim de morgar essa nossa história. Então, visse teu Sport ontem? Levou um vareio de bola. Levou três em plena Ilha do Retiro...

Jornalista: Nem me fale nesse jogo, tava lá ontem...

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A Hecatombe Juvenal

13.5.15 Unknown 0 Comentarios


A sensação de formigamento começava na ponta do dedão do pé esquerdo e irradiava pelo corpo, até chegar na cabeça, onde explodia no córtex cerebral. Era o sentimento já tão caro a Juvenal, desde suas primeiras fraldas mijadas: o ódio. Aquilo que outrora no berçário e nas primeiras interações na tenra infância escolar era apenas uma reação de pura pulsão, quase que um arco-reflexo, agora era dotado de consciência, complexidade e... requinte, por que não? Não sabia explicar como a reação em seu corpo começava, mas aprendera a desfrutar com certo prazer daquela sensação. Mas Juvenal sabia exatamente o que desencadeava todo o processo: o outro. Não se tratava de ter pavio curto, ou de ser uma pessoa tida pelos outros como intolerante. Antes, o contrário. Era uma criatura dotada da paciência de Jó. 
Essa era a dualidade essencial de Juvenal: ódio x parcimônia. A síntese em pessoa. Juvenal tinha essa consciência, só não tinha como precisar o que era tese e o que era antítese, qual delas era o ódio, qual era a parcimônia. Juvenal era isso: uma força resultante. Atuavam em sua alma o ódio e a parcimônia como forças opostas e Juvenal era a resultante. Mas, aproveitando o ensejo, por falar em resultante, com licença da aliteração, o resultado em seu organismo já começava a ser notado. A ponta do dedão do pé esquerdo já se encontrava em perpétua dormência, não chegando a necrosar, mas já não sentia a ponta do dedão do pé. Juvenal era nitroglicerina, instável, pronto para explodir a qualquer momento, mas não explodia. Juvenal era isso: uma bomba relógio que nunca zerava o contador.
O segredo desse delicado equilíbrio, entre a entropia e a serenidade, talvez fosse o seu senso de humor e a sua imaginação. Quantas vezes já não tinha cometido as maiores atrocidades com os objetos de seu ódio, em pensamento. Explodiu cabeças, arrancou-as fora; esmagou multidões com uma bigorna gigante que caia do céu ao seu comando, com alvo certo; arremessou janela afora centenas de milhares que lhe testaram a paciência; revirou pelo avesso, através do ânus, uma manada de criaturas intragáveis; empalou algumas bestas; eletrocutou "meninos bons"; derrubou toda uma esquadrilha de aviões, comerciais e militares...
Juvenal tinha essa faceta em sua psiquê: a crueldade criativa. Se um filme dessas cenas pudesse ser visto por uma plateia desavisada, talvez lhe causasse algum desconforto, um certo asco, talvez.
Mas, para quem fosse além dos primeiros 5 minutos de projeção, a diversão estaria garantida. Quem entre nós nunca fez uso da imaginação para o alívio das tensões, da mesma forma que Juvenal?
Ao ouvir os impropérios jogados ao vento pelas bocas malditas (essas malditas mesmo, no sentido pejorativo, não o usado para se referir a Gregório)... ao ouvir tais impropérios proferidos sem pudor, inconsistentes, incongruentes, intoleráveis, demasiado chulos, Juvenal se realizava fazendo uso de sua mais poderosa arma: sua imaginação. Quem em sã consciência intuiria que Juvenal ao fixar os olhos nos olhos de seus pares, acenar com a cabeça e emitir onomatopeias em resposta ao que lhe era dito, num simples diálogo despretensioso que fosse, quem iria intuir que naquele momento Juvenal "autistava" (ligava o chamado "modo autismo por opção")? Apesar de mimeticamente estar interagindo, na verdade estava apenas i-ma-gi-nan-do as mil formas como mataria aquele sujeito à sua frente. Dessa forma, mantinha-se num delicado e instável equilíbrio. Era notório aos seus que Juvenal nunca havia levantado a voz, nunca destratou alguém, fosse quem fosse. Não. Juvenal nunca havia perdido a compostura, sua calma de monge tibetano. Nunca. Até hoje. 
Tudo não passou de um auto-engodo, enganou a si mesmo por todos esses anos. Juvenal não era calmo, era acomodado. Acomodou-se em cima de si mesmo, se fez de assento e repousou sua bunda sobre a própria cabeça. Mas, não hoje. Hoje finalmente aconteceu: explodiu. E ao explodir provocou uma onda de impacto que atingiu toda a cidade. Juvenal tomou proporções de hecatombe nuclear. Agora, sua cidade natal era apenas uma enorme cratera no chão, um buraco sem vida. O único vestígio encontrado pela perícia técnica que investigou o caso: a ponta do dedão do pé esquerdo.

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Lembranças de uma saudade

7.5.15 Mademoiselle Fifi 0 Comentarios




Gostaria de começar essa narrativa como faziam os missivistas até o século passado: “escrevo com estas maus traçadas linhas, meu amor”. Porém, para mim, seria impossível. Não consigo mais escrever à mão. Minha letra está terrível, uma tremenda garatuja. Além disso, antes de completar duas laudas, minha mão começa a doer na altura do pulso. Então, escrevo-te a partir do “gélido” teclado de um desktop, na indiferença das teclas, defronte a asséptica tela branca do Word 2013. Não é mais possível pôr o lápis no papel e correr o risco. Tampouco ter a esperança de um dia corrermos o risco novamente de um futuro indeterminado a dois. Hoje você está aí, não sei onde, e eu, aqui destilando solidão e bebendo saudades. Diante de nós: a implacável intersecção entre o tempo e o espaço do que antes era uno e hoje é dispersão.

A saudade é a insônia do coração.

Ainda hoje me peguei pensando naquele dia em que você com desejo, grávida ainda de Frederico, obrigou-me a roubar manga espada no terreno de Dona Corina em um fim de tarde de domingo. Em seguida, vi você se lambuzar toda com a manga. Um sorriso de satisfação espalhava-se pelo seu rosto como uma borboleta. Daí, você deitou aquele olhar que um cachorro fita o dono quando este regressa para casa. E eu sabia bem o que você desejava. Ali mesmo, na mesa da cozinha, você foi me conduzindo delicadamente nos meandros do seu corpo de sete meses e meio de gestação. Eu, sem jeito, fui sendo guiado ao Éden pelo melhor dos cicerones: minha Eva, você.

Lembra-se daquele dia em que voltamos da praia com Frederico, acho que ele deveria ter uns três anos, todo queimado de sol? Parecia uma cenoura. Daí você perguntou a ele: “Dinho, o sol pode ser a lua?”. Ele respondeu: “Não”. E você replicou: “Porquê?”. Ele: “Porque o sol é o sol”. Caímos na risada com a resposta de Dinho. Hoje pergunto-me: de onde você tirou essa pergunta e de onde ele tirou aquela reposta? Acredito que nunca conseguirei encontrar a resolução. Está nas estruturas profundas da relação íntima da mãe com o filho. Seria como tentar buscar a resposta do por que minha mãe limpava meu rosto com a barra de sua saia. Dizia-me que era para não nascer barba. Será que era só por conta disso?

Das coisas que mais chateavam-me ao ponto de te admoestar e que me fazem uma falta lancinante: o assento do vazio abaixado (com dois homens em casa); a toalha molhada na cama; a calcinha pendurada no box do chuveiro; a tampa da pasta de dentes desenroscada; o leite fora da geladeira após usá-lo; o ralo do banheiro cheio de cabelos etc., entretanto, a ferida que nunca sutura é a saudade da tua presença intempestiva e calma ao mesmo tempo, como se o depois da chuva antecedesse a própria chuva. Teu corpo era o meu espírito.

Os meus braços ainda hoje estão impregnados do teu cheiro.

Não sei o que fazer com esses textos que há algum tempo venho-lhe escrevendo. Nunca vos enviarei. Penso em destruí-los. Mas, penso também em centralizá-los e enviá-los para um amigo que já tem livro de ficção lançado, sem muita repercussão, que poderia ver se tem lastro literário. Acredito que não irei fazer isso também. Por enquanto, deixá-los-ei aqui salvos no HD interno e externo. Penso também em digitalizar as cartas que te escrevi. Estão dispersas nas pastas. Reuni-las e pô-las em ordem cronológica assim como as cartas digitais porque correio eletrônico (e-mail) soa tão impessoal. Enquanto isso, escrevo e arquivo para tentar aplacar um pouco da dor de não podemos arquivar nossas saudades.

                                                                                                                        Recife, 12 de abril de 2008

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