Voyeur voyage
Eu e as outras almas sebosas do bairro,
Bida, Nêm e Sapuia nos reuníamos por volta das 15h30 após a indefectível sesta
subsequente ao almoço. O sol no verão recifense é de rachar até poça d'água, e
nos anos 1990 havia o agravante do Rombo na Camada de Ozônio, ou seja, era uma
paranoia a mais para evitarmos o sol a pino. Ali na hora em que o comércio
voltava a reabrir – há o costume, na periferia, de fechar o comércio após o horário
de almoço – nos juntávamos entre as ruas 17 e 18 para deliberarmos a
maloqueiragem da tarde.
Entre as propostas levantadas pela Alta
Cúpula da Vadiagem estavam: jogar bola no campo da Fumaça; roubar manga no
Sítio de Biu Oi de Poico; Tomar banho no açude do Sr. Narizinho ou ir à Bica lá
da Rua 50. Daí Sapuia, punheteiro inveterado, olhou para Nêm e sugeriu: por que
não brechamos Duda mais tarde? Duda é a corruptela de Eduarda, filha de Sr.
Jaime, um dos coroas mais bombados da Quebrada, era um dos poucos que tinham
carro na região. Acabara de comprar um Volkswagen Voyage zero bala. Nós olhamos
para Sapuia e perguntamos estarrecidos: que história é essa, meu irmão? Todos
nós éramos experts na arte de espionagem de mulheres nuas, eu, por meu turno,
já havia brechado minhas primas, umas vizinhas na época que morava na rua 23,
as filhas dela eram o pipoco, mas a mãe tinha um par de tetas maiores do que os
braços do Padre Fritz, alemão que celebrava as missas dominicais na Capela Obra
de Maria, localizada no bairro.
Sapuai disse-nos que havia brechado,
junto com Nêm, Duda uns dias antes pela fresta das telhas canal que ele havia
afastado partindo do telhado da casa de Nêm que era vizinha à de Sr. Jaime.
Enquanto ele dava os detalhes sórdidos do voyeurismo mais cobiçado da Quebrada,
nós, estarrecidos, começávamos a conjecturar as cenas e viabilizar os horários
da espreita, falar com Nêm e os cuidados inerentes a tal empreitada. Sapuia nos
informou que o horário ideal era por volta das 17h30 quando Duda retornava das
aulas particulares com Dona Quitéria, velha que ajuizou muitos espíritos de
porco da Quebrada com sua gramática normativa antes do acordo ortográfico de
1992, da tabuada de multiplicar e dos infinitos exercícios em algarismo romano.
Na época, Duda era de uma beleza
estonteante. Dona de um par de pernas que punha muita mulher no chinelo. Era
daqueles fenômenos da natureza que assolam as mulheres que, da noite para o
dia, como em um toque de prestidigitação do maldito Tempo, transforma meninas
em mulheres. Há pouco tempo, nós a víamos como mais uma menina da boa família
pernambucana, pequena, com duas tranças no cabelo, um par de melissas da Sandy
nos pés, roupas compostas. De repente, ela passava para ir à escola pela manhã
no Voyage do seu pai: calça jeans apertada, cabelo castanho encaracolado;
molhado pelo banho matinal e com creme para domar os cachos irrequietos pelos
cálidos sonhos sobre os lençóis e os travesseiros – eternos confidentes das
meninas acossadas pelos desejos que fariam molhar toda sua alcova.
Partimos para a casa de Nêm quando sol
começava a declinar a oeste, lá por trás dos morros de Jaboatão dos Guararapes,
e deixava o horizonte com aquele alaranjado cítrico como casca de laranja mimo
pipocando os ácidos na retina ao descascá-la com a sui generis engenhosidade do
corpo humano – o polegar opositor. Chegamos por lá e ficamos com aquela cara de
menino pronto para fazer fuleiragem, como no momento que antecede o quebra
panela no dia de Santo Cosme e Damião. Neste instante, vimos Duda voltando para
casa, com seu ubíquo fichário cravado rente ao busto, um shortinho jeans da cor
do céu de horas atrás, um top com gola em “u”, e calçando um par de Opankas.
Nos posicionamos pela laje do banheiro da
casa de Nêm, no miudinho, agachados para não chamar tanta atenção, pois se
fossemos flagrados estávamos fodidos. Para tapear, pegámos uma lata com linha e
um papagaio de Bida que estava na casa de Nêm há um tempão, da época da última
temporada de pipas. Decidimos que quem iria brechar de início era Sapuia e Nêm
por terem a primazia da descoberta. Em seguida, iria eu e Bida. Afastamos as
telhas e ficamos esperando o momento do bote.
Eu e Bida percebemos que Duda havia
chegado no banheiro pela excitação de Nêm e Sapuia. Enquanto isso, minhas mãos
suavam, havia um calafrio na minha barriga e uma vontade miserável de cagar.
Mas, controlei-me por que não queria perder aquele momento, tampouco demostrar
fraqueza frente àquelas almas sebosas especialistas em arriação. Após uns
minutos, fizemos gestos para revezar a tocaia, mas Sapuia e Nem não davam a
menor indicação de que iriam abandonar seus postos. Daí eu olhe para Bida e
gesticulei com a mão direita além de balbuciar: vamos nessa. Conseguimos
afastar um par de telhas e aí meu Deus! As cenas a seguir ficaram gravadas na
memória como uma linda estampa chapa o tecido branco de algodão da camisa no
processo serigráfico.
No interior do banheiro, sob uma lâmpada
Osram de cem velas que caia no seu corpo como chuva florescente e iluminava
ainda mais sua pele suada na véspera do banho, víamos Duda sentada em um
banquinho de madeira com as costas apoiadas na parede. Suas pernas estavam
abertas, à altura da cintura, e cada uma apoiava-se ora no criado mudo repleto
de cremes, xampus, condicionadores, escovas, pentes etc., a outra estava sobre
um banco de plástico no mesmo nível do criado mudo, daqueles bancos com quatro
furos no seu centro. As pernas compunham em sua geometria um sensível triângulo
equilátero. Entre as pernas dela, havia um segundo banco onde encontrava-se um
espelho [apoiado por um pote de cremes] em formato retangular, daqueles de
moldura vermelha, onipresente em qualquer barbearia suburbana do Brasil. Na mão
direita de Duda, havia um prestobarba Probak de uma lâmina, daqueles da haste
branca e da capinha laranja.
Enquanto se depilava, havia um silêncio
glacial sobre a sua cabeça, quatro marmanjos donzelos a espreitava,
descaradamente, enquanto ela fazia o seu ritual higiênico, ou estético, ou
habitual vá lá saber. Seu corpo parecia um muçum brilhante, sua pele irradiava
um brilho tal qual jambo maduro, uma maciez e um calor que podíamos sentir a
metros de distância. Suas ancas aterradas no banco de madeira faziam
transbordar a curva equatorial do seu corpo para fora da circular superfície da
madeira. Enquanto sua mão direita ia e vinha, descrevia arcos nas virilhas e
entre os dois lados da fenda vaginal. Em um dado momento, percebi, não sei se
os demais também, que ela esboçou um leve sorriso, como aqueles assentimentos
pueris que damos ao concordar com uma cumplicidade. Acredito que ela sabia que
estávamos brechando-a.
Hoje, já adultos, poderia perguntar a ela
se sabia da nossa espionagem daquela época, mas seria uma pergunta
despropositada e inescrupulosa. Prefiro ficar com a atmosfera do interdito, do
proibido que além de saboroso guarda o tostão da picardia do Tempo que deita
tudo ao chão impelido pela força da gravidade da famélica senhora, a Morte. O
Tempo e a Morte, duas entidades que nunca tiram férias assim como a prática
vouyerista.
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