Os fosseis dão as cartas


por Renato K. Silva – doutorando em Ciências Sociais pela UFRN e Visiting Graduater Reseacher pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
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A paralisação dos caminhoneiros nas estradas do país deu visibilidade a um nó do tamanho dos nossos mais de oito milhões de quilômetros quadrados: como nossa economia é dependente dos derivados de petróleo e das rodovias para escoar a produção nos mercados interno e externo. 

A ubiquidade de um meio para escoar e abastecer a produção/consumo de um país de proporções continentais como o nosso é frágil não apenas no tocante às questões econômicas como de soberania. Num cenário de beligerância com um inimigo externo, quanto mais plural for os meios e os modos de produção mais o país terá condições de alimentar de maneira autônoma o esforço de guerra.

Historicamente, o Brasil já teve outros modais para escoar sua produção e nossas cidades também eram interligadas por outras formas de transporte que não o rodoviário movido a petróleo e seus derivados. Quem anda por qualquer grande cidade brasileira ainda percebe os trilhos dos bondes de outrora que insistem em vir à tona como se fosse o esqueleto de uma era antediluviana. Tenho 32 anos e ainda criança alcancei o ônibus elétrico que rodava pelas ruas do Recife. Meu avô ia ao trabalho de uma forma quase surreal para os dias de hoje: segurava o chapéu dependurado no estribo do bonde que fazia a linha Várzea/Pina, rodando praticamente por toda a cidade. Estima-se que a cidade do Rio de Janeiro, até meados da década de 1950, tinha mais de 250 Km de trilhos de bonde. É quase a distância entre Recife-Natal. Ou seja, em menos de três gerações o Brasil conseguiu solapar outras formas de se locomover pela cidade e outras formas de despachar sua produção. Poderíamos ter coadunado, em nossas cidades, os transportes rodoviários com o ferroviário a exemplo de Amsterdã, Berlim, São Francisco.

Imagens dos bondes rodando na Rua Nova, Centro do Recife. Meados da década de 1930/40. Fonte: Google.

 
Mapa das linhas férreas na grande Recife. Meados do séc.XX. Fonte: Google.

Os historiadores apontam que o início do ocaso das nossas ferrovias começou sistematicamente a partir do governo de Washington Luís (1926-1930) – último governante da República Velha. É de Washington Luís a frase: “Governar é abrir estradas”. A partir de Vargas o automóvel começou a tomar o protagonismo na esteira do raciocínio que já vinha sendo idealizado no governo anterior. Isto é, tanto na República Velha quanto na Era Vargas a ordem era abrir estradas. É do ano inaugural do Estado Novo (1937) que é criado o Departamento Nacional de Estradas e Rodagens (DNER 1937-2001), órgão responsável pela, entre outras iniciativas, criar as rodovias federais – as BRs.

O Brasil de fato precisava se interiorizar e aplainar o monopólio da vida no litoral e esse ideário teve a sua mais perfeita tradução nos anos JK (1950-1960) –  ou chamado 50 anos em 5. A interiorização da capital com a construção de Brasília veio coroar um projeto de país, de nação, povo, identidade nacional e modernidade que vem, se puxarmos o novelo até o início, desde 1808 com a chegada da família real, passando pela geração dos escritores românticos, o movimento abolicionista, os modernistas e as vanguardas dos anos 1950 até a Tropicália quando há a entropia de toda a nossa não contemporaneidade com o centro do capitalismo. Não me alongando tanto nesse tema, deixo apenas o trecho de uma canção do álbum de estreia de Caetano Veloso: “Os automóveis parecem voar/ Os automóveis parecem voar/ Mas já se acende e flutua/ No alto do céu uma lua/ Oval, vermelha e azul/ No alto do céu do Rio/ Uma lua oval da Esso”. 

Paralelo aos anos JK surge no Brasil as primeiras multinacionais automotivas. A Volkswagen é inaugurada aqui em 1959 e foi o presidente Juscelino o responsável por guiar o Fusquinha conversível – primeiro exemplar saído dos fornos da montadora em terra pátria. Sinais mais auspiciosos, para a política de carros e estradas, do que construir uma capital no interior do país e dirigir o veículo primeiro de uma multinacional automotiva, não há. O recado estava dado desde o início do século: governar é abrir estradas e priorizar os veículos movidos a derivados de petróleo. Não esquecer que a Petrobras (1953) vem desta quadra histórica e a campanha pelo “o petróleo é nosso” teve Monteiro Lobato como lobista. 

Advogo que concomitante as aberturas de estradas e ao favorecimento aos veículos movidos a combustíveis fosseis (não renováveis) tivéssemos continuado com o transporte ferroviário tanto em âmbito municipal, estadual e federal. Além disso, poderíamos investir mais e permanecer com a modalidade de transporte de cabotagem por nossa costa tanto na locomoção de passageiros quanto de cargas. Sem contar o transporte fluvial pois todos os nossos grandes rios possuem vasão para tais fins. Imagina o volume de carga que poderíamos transportar pelo Rio São Francisco, o rio que até um passado recente era chamado de “rio da integração nacional”. 

Morei um tempo na Califórnia e o capitalismo da quinta economia do mundo é tão plural quanto as condições geofísicas da região. Lembro-me de ter ficado estarrecido – numa viagem de carro de Los Angeles a Las Vegas – de ver a quantidade faraônica de locomotivas quilométricas cruzando o deserto de Nevada. Além dos infinitos campos de produção de energia solar. Cansei de percorrer as ruas e freeways de Los Angeles no interior de carros híbridos – movidos a eletricidade ou pela energia criada pelo freio regenerativo dos modelos da Toyota. Essa diversificação na matriz energética dos veículos é acompanhada com a pluralização das fontes de energia para casas e industrias. Economia atada à estratégia de soberania nacional. 

Retomando a nossa linha do tempo, com os militares (1964-1985) o cenário só fez se agravar por conta, especialmente, das obras nababesca empreendidas pelos milicos que visavam a integração do país por meio do monopólio do sistema rodoviário. É desta época a construção da ponte Rio-Niterói e da famigerada Transamazônica, por exemplo. Outro dado relevante deste período é o fortalecimento das grandes empreiteiras que à medida em que iam ampliando seus domínios sob o beneplácito do Estado, convertia este em seu cliente secular tanto nos regimes de exceção quanto democrático – os filhos devorando Saturno, numa inversão da mitologia. 

A partir da redemocratização (1985-), tivemos o solavanco político-econômico dos anos Collor que sem nenhuma mediação abriu nossa economia – oclusa pela ideologia nacional-desenvolvimentista dos milicos – para o desastre que foi a internacionalização abrupta de um mercado pouco diversificado; passamos pelo pacote de privatizações realizado pelos tucanos liderados por FHC (1994-2002) que abriu espaço para a privatização das nossas estradas e o início dos pedágios; até chegarmos aos anos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016). 

Até 2006 o governo Lula vinha investindo maciçamente no projeto do etanol e a Embrapa estava conseguindo excelentes resultados com o combustível menos devastador que o seu correlato fóssil. O etanol brasileiro é mais eficiente que o produzido nos EUA, por exemplo. Pois o nosso é feito por cana de açúcar que é mais potente que o milho, matéria prima do etanol dos gringos. Sem contar que o milho faz parte mais diretamente da mesa dos dois países do que a cana in natura. Some-se a isso a ampla tecnologia e estrutura que desenvolvemos há séculos em volta da cultura da cana. 

Foi no ano de 2006 que a Petrobras revelou a descoberta das reservas de pré-sal, segundo foi alardeado pelo nosso típico ufanismo tupiniquim em ocasiões como essas – a maior reserva do mundo. Num período em que a civilização do petróleo vem dando sinais de decadência, o pré-sal até aqui produziu mais ruído que efeitos práticos. Dos desdobramentos do pré-sal uma presidente foi deposta sem a confirmação de crime de responsabilidade o que, desde então, lançou o país num vácuo de deslegitimidade e de consequente crise institucional propícia à emergência de autoridades não legítimas (vide o poder Judiciário) e dos bucaneiros que hoje tomam conta do Alvorada. 

Por fim, a referida paralisação só veio confirmar uma máxima certeira no tocante aos países que focam sua matriz energética de escoamento produtivo e sua principal matéria prima de exportação em uma única commodity: a descoberta de grandes reservas de petróleo em um país é sinônimo de desestabilidade provocada por forças internas e externas. O movimento pulverizado dos caminhoneiros escancarou nossa fragilidade econômica e nossa vulnerabilidade estratégica. Enquanto estivermos sob o encanto do ouro negro seremos apenas um país à altura de uma superfície entre as rodas (derivada) dos nossos veículos e o piche (derivado) suspeito de nossas estradas. 

O corpo e a memória

Quando lembro do calor do sol das manhãs em minha pele enquanto eu crescia, quando lembro do cheiro de minha região natal, que me parecia contraditoriamente seco e úmido, e que invadia minhas narinas dando uma estranha sensação agridoce, quando lembro da diversidade de sons que rondavam meus ouvidos... Em tudo isso percebo que sou pensamentos e sentidos, de tal forma que memória e corpo se apresentam fundidos desde o começo, permitindo sentir satisfações ou calafrios no simples fato de recordar o que já foi. Quando lembro das tardes longínquas da infância, que passavam em horas lentas, quando lembro do céu azul malhado por nuvens brancas e cinzas de todas as formas, tamanhos e percepções e que dava vontade de alcançar com as mãos, quando lembro de todos que estavam perto ou longe, e que de uma forma ou de outra eu vi envelhecer...  Em tudo isso me espanta a quantidade de dias passados desde então. Parece até que foram todos os dias que já existiram, o que de certa forma foram para mim, e sinto cada vez mais forte que a vida é fluxo paradoxal tão rápido e tão lento, fazendo os corpos envelhecerem a olho nu, porém sem permitir que isso seja visto, se não a longo prazo. Quando lembro das noites longas e escuras, quentes e frias, agitadas ou entediantes, quando lembro das assombrações que invadiam meu quarto por meio de minha imaginação de menino, apertando meu peito com medo, quando lembro das noitadas em mesas de bares e sinto de novo a alegria que explodiu em minhas gargalhadas, quando lembro das muitas noites em que a ansiedade impediu a chegada do sono... Em tudo isso sinto como se estivesse acontecendo de novo comigo, aqui, agora e imediatamente. Por fim, quando penso na textura das paredes, areias, portas, tecidos, ferrolhos, cadernos, lápis, brinquedos, pratos, copos, papéis e tudo mais que toquei e manuseei, quando lembro dos sabores das refeições, frutas, saladas, remédios e biscoitos, quando lembro dos festivais de imagens, coloridos, lugares, pessoas, das vergonhas minhas e alheias, enfim, de tudo que meus olhos captaram...  Em tudo isso, definitivamente, meu ossos, pele, pálpebras e entranhas são acionados a sentir como se estivesse acontecendo de novo, e de novo e novamente.


Castanha 23 de dezembro de 2017

Crônica da cidade de Montevidéu

Um motorista estacionou em lugar proibido na Rua Mercedes. Os guardas de trânsito apareceram e o multaram. O homem tentou argumentar, mas os guardas foram inflexíveis. Dia e noite as pessoas caminhavam tranquilas furando o frio que envolvia tudo. Comerciantes e clientes ofereciam e se interessavam, girando em torno de coisas de vender e de comprar. Pessoas fumam maconha em público, sem medo de represálias, contrariando a fracassada política de guerra às drogas que atormenta e devasta nossa querida América Latina desde a década de 1980. Detalhes e mais detalhes apresentavam-nos Montevidéu. Nossos sentidos buscavam a cidade como uma criança tentando montar um quebra-cabeça sem fim; cidades são fluxos.
Caminhamos pelas ruas de Montevidéu, eu e Lu. Ruas dos séculos 20 e 19, montadas sobre as ruínas do século 18. Uma arquitetura imponente. Talvez aquela arquitetura represente a identidade dos Uruguaios. Talvez ela sirva para deixar claro que apesar de pequenos eles são grandes, e não se deixam esmagar por seus vizinhos gigantes sul-americanos, Brasil e Argentina. Uma viagem de uma semana pela capital de um país não dá plena autoridade para falar das minúcias deste e das almas de seus habitantes. Mas a impressão que as mulheres e homens dali deixaram em nós foi de terem um espírito firme.
Por lá, anda-se sossegado pelas ruas, senta-se tranquilamente em um lugar qualquer para comer, conversar ou descansar. Vai-se de um lugar a outro tateando suas calçadas, praças e prédios. Esse movimento cria uma via de mão dupla: pessoas e locais vão se apresentando.
 Ficamos pequenos e envolvidos, frente ao monumento a Artigas, ou ao palácio legislativo, frente ao palácio Salvo, ou ao teatro Solís, e também do topo do Mirador da Intendência, de onde muito se vê. Tudo suturado por pedras, paredes, telhados, palavras, histórias, fotografias, museus.
Após a caminhada de cada dia, íamos num bar de esquina com a 18 de Julio para pensar, conversar, sorrir e embriagar. Tentamos o possível para nos diluir naquele caldo de gente e movimentos. Montevidéu fazia o mesmo por nós, e se diluía porta adentro de nossas percepções.  


Castanha 29 de agosto de 2017.

Belchior: o trapeiro das coisas pedestres

Durante a década de 1970 a música popular brasileira, em ampla medida, polarizou-se em duas grandes narrativas: as relacionadas à Tropicália e as identificadas com a chamada “canção de protesto”. Essa polarização atualizou a agenda da Guerra Fria para a esfera da canção: os pró-Tropicália vistos como os neo-colonizados pelas ideias e ideais dos países do centro capitalista, e os do “protest song” galvanizando os afluxos do lado de lá da “Cortina de Ferro”.

Evidentemente, como acontece sempre com as polarizações: os matizes foram solapados e os artistas que não compactuaram com nenhuma dessas duas narrativas foram relegados a uma espécie de limbo da nossa MPB. Esse limbo, muitas vezes considerado segunda divisão ou pura indústria cultural, recebeu diversos rótulos que por definição são limitadores: “Udigrudi”, “Rock Rural”, “Malditos”, “Jovem Guarda”, “Pessoal do Ceará”... 

A partir da polarização política-ideológica formou-se o cânone da moderna MPB. No panteão: Tropicalistas e a “canção de protesto”. No limbo, todos os demais. 

Dentre os artistas que vieram a reboque sob a alcunha de “Pessoal do Ceará” encontra-se Belchior. Mas Belchior, por sua própria condição de periférico na periferia do capitalismo e, por conseguinte, catalisador dos resíduos das circunstâncias internas e externas ao Brasil, conseguiu ultrapassar todas as narrativas que desde então tentou capturá-lo. 

O Brasil encontra-se na periferia do capitalismo e no interior do país encontra-se outra periferia: a região Nordeste. Portanto, para o artista oriundo dessa região, com exceção da Bahia que naquela quadra histórica já estava no mapa simbólico nacional, era um atestado de mais uma subalternidade que, poderia desembocar numa segunda ou terceira, caso o artista fosse negro ou mulher. 

Neste quesito, Belchior foi um tipo de “passing” (cidadão norte-americano que no séc. XX embaralhou sua identidade étnica para escapar das leis racistas do país) simbólico. Para se tornar esse “passing” simbólico Belchior utilizou um expediente arriscado: a negação. 

Imagem I. Fonte: Google Imagens.

Belchior negou tudo desde sua região de origem: “Nordeste nunca houve, Nordeste é uma ficção”. Negou a família patriarcal burguesa: “A gente se olha, se toca e se cala/ E se desentende no instante em que fala”. Negou a eternidade: “Quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno/ Viver a divina comédia humana onde nada é eterno”. Em uma palavra: negou tudo o que é mistificação e ufanismo, duas dimensões caras aos artistas associados à agenda dos Tropicalistas ou à “canção de protesto”. E numa época de radicalização política negar essas duas categorias foi sinônimo de não tomar partido, isto é, viver e ser lançado às margens.

O poeta mais citado nas canções de Belchior é Fernando Pessoa, o bardo lisboeta que modulou como ninguém as implicações do anômalo verbo “ser”. Neste sentido, é interessante observarmos como o cantor cearense recolhe as “coisas do porão” e da rua para transformar-se no ser farejador da implacável sobrevivência cotidiana, sem heterônimos e sem ortonomia, assim mesmo, como os anônimos da metrópole indiferente.  

Atentem a completa ausência, nos trabalhos de Belchior, de vislumbre com a vida metropolitana, com a “brasilidade” ou a ênfase paternalista na “causa popular” tão marcadas nas obras dos artistas ligados à Tropicália e à “canção de protesto”. Sem mistificação, sem a pseudo ênfase na “alegria” de viver e sem ufanismo, Belchior conseguiu erigir uma obra montada nos detritos de um projeto nacional historicamente concentrador – o “bolo” que nunca foi dividido.

“Nos trata como gente é claro: aos pontapés”.

Nesta toada, Belchior conseguiu ser o cronista mais fidedigno da nossa canção pós-Milagre. Num país que hipoteca suas esperanças em “milagres” econômicos cíclicos (açúcar, ouro, café, desenvolvimentismo, pré-sal...) Belchior recolhe do chão, como um trapeiro das coisas pedestres, o que foi negado aos subalternos deste país: uma narrativa desprotagonizada de mistificação e paternalismo.

Imagem II. Fonte: Google Imagens.
“Que o pecado nativo/ é simplesmente estar vivo,/ é querer respirar”.

A canção de Belchior é o 3x4 de uma civilização de anônimos sem virtuosismo vocálico, sem cadência e sem ritmo. Não é a fotografia do lúmpen, nem do malandro tampouco da classe média, é o retrato dos batalhadores, da ralé, dos migrantes, do povo que enxerga a vida a palo seco e que não sabe rir à toa.

“Era feito aquela gente honesta, boa e comovida/ Que tem no fim da tarde a sensação/ Da missão cumprida”.

Contudo, a ausência de ufanismo e mistificação é compensada com generosas doses de um lirismo das coisas do dia a dia: “Não estou interessado em nenhuma teoria/ Nessas coisas do oriente romances astrais/ A minha alucinação é suportar o dia a dia/ E meu delírio é experiência por coisas reais”. As “coisas reais” são aquilo que o ufanismo e a mistificação não conseguem capturar, o lirismo impregnado de cotidianidade com todas as suas venturas e desventuras: os corações selvagens, as paralelas, a perseguição policial, os encontros e transas casuais, os rapazes delicados e alegres, os humilhados do parque, o gole de cerveja, o refrigerante, o cachorro quente... É o lirismo de mãos calejadas, de rostos vincados com os sulcos do batente das 8h às 18h, da alma escalavrada pela dura existência, do corpo alquebrado pela subalternidade.  

Cantar as coisas pedestres foi a vocação do trapeiro de Sobral que, enquanto existiu, negou as coisas celestes, a mistificação, o paternalismo, o ufanismo: “Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto”.

por Renato Ribalta – Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.

Paterson: o lirismo da repetição


Paterson (Jim Jarmusch, 2016) narra a história de um jovem bonachão, poeta e motorista de ônibus cujo nome também é Paterson (Adam Driver), assim como também é chamada a cidade onde se desenvolve a trama. Com a progressão da história percebemos que o protagonista e sua cidade mantém mais pontos de convergência do que a simples relação homônima. 

Em Paterson temos uma confluência de elementos sob a palavra que nomeia o filme: a cidade, o nome do protagonista, o ônibus (nº23) que este dirige todos os dias, e o topônimo da antiga fábrica da região. Estes elementos homônimos, a princípio dispersos, entram em confluência sob o catalisador de rotina, que permeia o longa através da narrativa estruturada nos dias da semana, que é o cotidiano de Paterson. Isto é, em um dado instante Paterson se torna um único elemento impregnado de lirismo: a cidade e seus desdobramentos desembocam-se no poeta e este, por seu turno, converte-se naqueles. 

A rotina circular do espirituoso Paterson é contrastada com a da sua ebuliente esposa Laura (Golshifteh Farahani). 

Imagem I. Fonte: Google Imagens.

Paterson acorda todos os dias, sem o auxílio de despertadores, por volta das 6h. Confere o relógio que descansa sobre o criado-mudo. Põe-o no braço. Levanta-se. Prepara o mesmo café da manhã: cereal com leite. Em seguida, sai para trabalhar de farda e lancheira – com o almoço – na mão. 

Antes de ligar o ônibus e sair com ele da garagem da empresa, Paterson aproveita o entreatos para escrever alguns versos. Nas viagens, o jovem poeta-motorista capta histórias (ou fragmentos) dos passageiros-confidentes que ele conduz pelas ruas do seu lirismo urbano – o poeta conduz a cidade.

Imagem II. Fonte: Google Imagens.

No intervalo para o almoço, mais alguns versos saem da lavra do poeta. 

À noite, após o jantar, Paterson passeia com o ciumento Marvin, cachorro de Luara que é o nêmesis do poeta, e vai até o bar de Doc (Barry Shabaka Henley). Este bar é uma espécie de memória viva e sentimental da cidade. Nele há fotos de celebridades que nasceram ou passaram por Paterson. O motorista-poeta é o único branco a frequentar o estabelecimento. O Tempo no bar do Doc e seus habitues coexistem em outra dimensão espaço-tempo: mais elástica. Passado, presente e futuro se alargam à medida em que a efusão etílica ganha contornos de dramaticidade com as querelas dos frequentadores, ou pelas doses cavalares de tédio. Nunca vemos o motorista saindo do bar. O bar é um jogador de xadrez que joga um jogo contra si mesmo.

Todos os dias Paterson segue a rotina à risca.

O poeta não tem smartphone.

Num oximoro: Paterson é o nômade sedentário.

Já Laura é a intempestiva dona de casa que é irrequieta até nos sonhos – ela sempre narra seus sonhos, ainda com trevas nos olhos, para seu companheiro assim quando este acorda ao seu lado. 

Laura todos os dias inventa uma novidade para fazer: pintar cortinas, quadros, tapetes, uma nova receita de cozinha, aprender a tocar violão, fazer bolinhos para a uma feira agro-ecológica... O mundo de Laura lembra uma convulsionante tela de Van Gogh nas cores preto-branco, Yin-Yang de vertigem lírica-cromática.

Num oximoro: Laura é a sedentária nômade.  

A regular imagem da divisão social do trabalho no tocante ao gênero, na vida de um casal, é borrada no filme. A imagem tradicional da rua – suas aventuras e surpresas – é substituída pela imagem da casa. Laura é o lirismo doméstico da aventura; Paterson é o lirismo monótono das ruas. Ambos: a repetição do maior mantra cósmico, o amor – sentimento mútuo em meio a duas narrativas antagônicas. 

O amor é o irmão gêmeo de si mesmo. 

O duplo é um elemento constante no longa assim como a recorrência de irmãos gêmeos. Paterson não estranha a recorrência dos duplos (gêmeos) em seu caminho porque ele é, assim como todo poeta, historicamente, o demiurgo de toda cultura. Por exemplo: não há como imaginar Portugal sem Camões, a Alemanha sem Goethe, a Itália sem Dante ou a Inglaterra sem Shakespeare. A poesia erige civilizações. Vivemos em uma língua antes de vivermos em um território.

Paterson e sua cidade homônima sangram pela mesma ferida porque dividem o mesmo corpo.

A poesia é um estado irredutível, independe de suportes, instituições, reconhecimento, reprodutibilidade técnica... a poesia é um canto seja ele um berro ou um banco de praça.

Enfim, Paterson conduz a cidade, seu casamento, sua vida... com o lirismo circular que é, ao cabo, o movimento da natureza: as estações do ano, o dia, a noite, plantar, colher... Paterson nos mostra que, na vida, não há espaço apenas para a circulação de mercadorias. Há lirismo nas reentrâncias das coisas miúdas. A poesia pode sair de uma reles caixa de fósforo e a(s)cender o dia.

por Renato Ribalta - Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.