DOMINGO É O FINO DA BOSSA
Estava
sentado no respaldo de um dos bancos de granizo da Praça Santa Luzia que aquela
altura da noite encontrava-se vazia, era por volta das 20h e as casas que circunscrevem
o logradouro irradiavam através de suas janelas os raios catódicos¹ dos
aparelhos de tiravisão... Ou melhor... Televisão. As pessoas em seus sofás e
poltronas, como naquela canção: “mas as pessoas nas salas de jantar estão
interessadas em nasceeeer e morreeer” tinham nessa caixa a sua padroeira,
enquanto o nosso solitário personagem que dividia com um vira-latas o espaço da
Praça preferia os olhares enternecedores da Santa Luzia, a padroeira dos cegos.
Esperando
uma amiga que pelas circunstâncias da vida só a vê nos fins de semana, uma
amizade boemia, sem sal de frutas tampouco tira-gostos, estava atrasada – o atraso
fazia parte da compleição física dela que, paradoxalmente, delineava-se como
uma presença ausência em suas aparições, como se fora um vaga-lume de desejo
que poderia ser agarrada se não fosse os momentos de escuridão.
Encontrava-se
impaciente devido ao atraso, porém, com ela ele sempre teve uma paciência
bovina. A existência dela falava por si só e representava um elo perdido que
outrora deveria ter-lhe pertencido, mas as contingências de uma vida afetada por
uma timidez hedionda lhe escapava pelos vãos das mãos como alguém que tenta
segurar uma porção de água. Ela era como aquela ferida no céu da boca que
certamente sararia se não insistissemos em passar a língua o tempo inteiro.
O
atraso dela era tema batido nas conversas. Costuma dizer que o seu relógio (ela
ainda usa isso) é atrasado em relação ao do celular dele, e ambos não fazem
nada para emparelhar a hora da cerveja ou do vinho, ele diz que Godot² é mais
pontual do que ela, e é.
O
cigarro que acendeu para esperá-la como quem acende uma vela para um santo
padroeiro estava no fim, a bunda lhe doía em virtude da espera e da posição
incômoda no banco de granizo, mas, antes as nádegas do que os cotovelos que
levam a marca cinza da dor de esperar os que vão comprar cigarro.
Quando
o expresso Hollywood já ia desembocar no Pacífico, uma mulher aparentando uns
trinta e poucos anos (uma década após a da canção: “Nem por você / Nem
por ninguém / Eu me desfaço / Dos meus planos / Quero saber bem mais / Que os
meus 20 e poucos anos”) morena e de cabelo encaracolado curto, fez que iria
passar direto em uma das esquinas da Praça,e vendo-o, decidiu dar meia volta do
seu percurso e foi ao encontro do nosso solitário tabagista.
Chegando
próximo ao nosso herdeiro de Jó (paciente) que, a esta altura, encontrava-se ouvindo
um som, tirou o fone quando a misteriosa mulher chegou, ela lhe perguntou de
chofre:
-
Tudo bem?
E
ele respondeu lacônico:
-
Tudo. Como quem não quer mais conversa. A desconhecida aparentemente embriagada
insistiu:
-
O que estás ouvindo?
Ele
dessa vez mais polido, talvez justamente por perceber o estado da sua
interlocutora porque sabe que o amor assim como a gasolina, é volátil,
consome-se rápido e para mantermos o carro funcionando trocamos pelo álcool,
lhe respondeu:
-
Kafka, uma banda dos anos 80 e a música se chama Plenitude.
Ao
ouvir a resposta ela resolve arrumar as duas mechas de cabelo que lhe caiam
sobre os olhos e as colocou por trás das orelhas, como alças de óculos, e lhe
faz um convite:
-
Vamos tomar uma cerveja no bar de Domingos?
Ele
responde que não iria dar, pois, está esperando uma “estória”, e lhe passou
pela cabeça paralelamente à sua resposta a paráfrase de um adágio popular: mais
vale uma boemia na mão do que um bar sobrevoando.
Ela
levemente contrariada lhe pediu um cigarro ao qual o “boêmio” solitário acendeu
e lhe deu falando:
-
Olha aí, ainda vai com o gosto da minha boca.
Ela
saiu e deixou essas palavras:
-
Plenitude é tudo que é bom, nunca pense em coisas ruins.
E
saiu soltando fumaças como uma locomotiva de passos dissonantes tal qual uma
promessa de felicidade de um futuro que descortina-se indeterminado, mas
comunica aquela sensação palpitante de que algo auspicioso nos espera. Como um
destino presente de reticências...
Ao
repor o fone aos ouvidos como quem também põe as alças de um óculos, o trecho
de Plenitude que ainda estava tocando era: “mesmo sendo assim / tão fácil
perceber / a plenitude acena e se desfaz só de dizer / vai ser bom de saber /
que não me domina o medo de te perder”.
Cansado
de esperar, ele põe um drops na boca como um tira-gosto, acende mais um intervalo
pelo filtro e vai embora à procura de um bar.
***
1
- Os raios catódicos são radiações onde os elétrons emergem do polo negativo de
um eletrodo, chamado cátodo, e se propagam na forma de um feixe de partículas
negativas ou feixe de elétrons acelerados.
2
- Esperando Godot (En attendant Godot / Waiting for Godot) é uma peça de teatro
de Samuel Beckett (1906/1989), escrita originalmente em francês e publicada em
1952. Pela sua temática e redação é classificada como teatro do absurdo por
alguns críticos teatrais. A expressão "Esperando Godot" era bastante
utilizada em tempos passados para indicar algo impossível, ou uma espera
infrutífera.
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