DOMINGO É O FINO DA BOSSA

28.3.11 Foi Hoje! 2 Comentarios


Estava sentado no respaldo de um dos bancos de granizo da Praça Santa Luzia que aquela altura da noite encontrava-se vazia, era por volta das 20h e as casas que circunscrevem o logradouro irradiavam através de suas janelas os raios catódicos¹ dos aparelhos de tiravisão... Ou melhor... Televisão. As pessoas em seus sofás e poltronas, como naquela canção: “mas as pessoas nas salas de jantar estão interessadas em nasceeeer e morreeer” tinham nessa caixa a sua padroeira, enquanto o nosso solitário personagem que dividia com um vira-latas o espaço da Praça preferia os olhares enternecedores da Santa Luzia, a padroeira dos cegos.

Esperando uma amiga que pelas circunstâncias da vida só a vê nos fins de semana, uma amizade boemia, sem sal de frutas tampouco tira-gostos, estava atrasada – o atraso fazia parte da compleição física dela que, paradoxalmente, delineava-se como uma presença ausência em suas aparições, como se fora um vaga-lume de desejo que poderia ser agarrada se não fosse os momentos de escuridão.

Encontrava-se impaciente devido ao atraso, porém, com ela ele sempre teve uma paciência bovina. A existência dela falava por si só e representava um elo perdido que outrora deveria ter-lhe pertencido, mas as contingências de uma vida afetada por uma timidez hedionda lhe escapava pelos vãos das mãos como alguém que tenta segurar uma porção de água. Ela era como aquela ferida no céu da boca que certamente sararia se não insistissemos em passar a língua o tempo inteiro.

O atraso dela era tema batido nas conversas. Costuma dizer que o seu relógio (ela ainda usa isso) é atrasado em relação ao do celular dele, e ambos não fazem nada para emparelhar a hora da cerveja ou do vinho, ele diz que Godot² é mais pontual do que ela, e é.

O cigarro que acendeu para esperá-la como quem acende uma vela para um santo padroeiro estava no fim, a bunda lhe doía em virtude da espera e da posição incômoda no banco de granizo, mas, antes as nádegas do que os cotovelos que levam a marca cinza da dor de esperar os que vão comprar cigarro.

Quando o expresso Hollywood já ia desembocar no Pacífico, uma mulher aparentando uns trinta e poucos anos (uma década após a da canção: “Nem por você / Nem por ninguém / Eu me desfaço / Dos meus planos / Quero saber bem mais / Que os meus 20 e poucos anos”) morena e de cabelo encaracolado curto, fez que iria passar direto em uma das esquinas da Praça,e vendo-o, decidiu dar meia volta do seu percurso e foi ao encontro do nosso solitário tabagista.

Chegando próximo ao nosso herdeiro de Jó (paciente) que, a esta altura, encontrava-se ouvindo um som, tirou o fone quando a misteriosa mulher chegou, ela lhe perguntou de chofre:

- Tudo bem?

E ele respondeu lacônico:

- Tudo. Como quem não quer mais conversa. A desconhecida aparentemente embriagada insistiu:

- O que estás ouvindo?

Ele dessa vez mais polido, talvez justamente por perceber o estado da sua interlocutora porque sabe que o amor assim como a gasolina, é volátil, consome-se rápido e para mantermos o carro funcionando trocamos pelo álcool, lhe respondeu:

- Kafka, uma banda dos anos 80 e a música se chama Plenitude.

Ao ouvir a resposta ela resolve arrumar as duas mechas de cabelo que lhe caiam sobre os olhos e as colocou por trás das orelhas, como alças de óculos, e lhe faz um convite:

- Vamos tomar uma cerveja no bar de Domingos?

Ele responde que não iria dar, pois, está esperando uma “estória”, e lhe passou pela cabeça paralelamente à sua resposta a paráfrase de um adágio popular: mais vale uma boemia na mão do que um bar sobrevoando.

Ela levemente contrariada lhe pediu um cigarro ao qual o “boêmio” solitário acendeu e lhe deu falando:

- Olha aí, ainda vai com o gosto da minha boca.

Ela saiu e deixou essas palavras:

- Plenitude é tudo que é bom, nunca pense em coisas ruins.

E saiu soltando fumaças como uma locomotiva de passos dissonantes tal qual uma promessa de felicidade de um futuro que descortina-se indeterminado, mas comunica aquela sensação palpitante de que algo auspicioso nos espera. Como um destino presente de reticências...

Ao repor o fone aos ouvidos como quem também põe as alças de um óculos, o trecho de Plenitude que ainda estava tocando era: “mesmo sendo assim / tão fácil perceber / a plenitude acena e se desfaz só de dizer / vai ser bom de saber / que não me domina o medo de te perder”.

Cansado de esperar, ele põe um drops na boca como um tira-gosto, acende mais um intervalo pelo filtro e vai embora à procura de um bar.

***
1 - Os raios catódicos são radiações onde os elétrons emergem do polo negativo de um eletrodo, chamado cátodo, e se propagam na forma de um feixe de partículas negativas ou feixe de elétrons acelerados.
Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Raio_cat%C3%B3dico > Acesso em: 28 de março de 2011.

2 - Esperando Godot (En attendant Godot / Waiting for Godot) é uma peça de teatro de Samuel Beckett (1906/1989), escrita originalmente em francês e publicada em 1952. Pela sua temática e redação é classificada como teatro do absurdo por alguns críticos teatrais. A expressão "Esperando Godot" era bastante utilizada em tempos passados para indicar algo impossível, ou uma espera infrutífera.
Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Esperando_Godot > Acesso em: 28 de março de 2011.




2 comentários:

  1. Salve ribalta! com seu ritmo frenético de escriba!
    Salve Santa Luzia com seus olhos por sobre um prato. Olhai por nós!Cegos incomodados por tantas luzes dissonantes nessa cidade! Cheia de cotovelos cinzas de esperar ... esperar... os que vão comprar cigarros!

    Rico Santana

    Rico Santana

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  2. Renato, camarada, me atrevi a acrescentar esses adjuntos ao texto e mexer, de leve, na ortografia. Nada que comprometa sua crônica, meu caro. Já tinha lido esse texto, acho que aqui em publicação anterior. Bem descritivo... sentei no banco de granizo.
    Sholansgambers!!!

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