Belchior: o trapeiro das coisas pedestres

16.6.17 Foi Hoje! 0 Comentarios


Durante a década de 1970 a música popular brasileira, em ampla medida, polarizou-se em duas grandes narrativas: as relacionadas à Tropicália e as identificadas com a chamada “canção de protesto”. Essa polarização atualizou a agenda da Guerra Fria para a esfera da canção: os pró-Tropicália vistos como os neo-colonizados pelas ideias e ideais dos países do centro capitalista, e os do “protest song” galvanizando os afluxos do lado de lá da “Cortina de Ferro”.

Evidentemente, como acontece sempre com as polarizações: os matizes foram solapados e os artistas que não compactuaram com nenhuma dessas duas narrativas foram relegados a uma espécie de limbo da nossa MPB. Esse limbo, muitas vezes considerado segunda divisão ou pura indústria cultural, recebeu diversos rótulos que por definição são limitadores: “Udigrudi”, “Rock Rural”, “Malditos”, “Jovem Guarda”, “Pessoal do Ceará”... 

A partir da polarização política-ideológica formou-se o cânone da moderna MPB. No panteão: Tropicalistas e a “canção de protesto”. No limbo, todos os demais. 

Dentre os artistas que vieram a reboque sob a alcunha de “Pessoal do Ceará” encontra-se Belchior. Mas Belchior, por sua própria condição de periférico na periferia do capitalismo e, por conseguinte, catalisador dos resíduos das circunstâncias internas e externas ao Brasil, conseguiu ultrapassar todas as narrativas que desde então tentou capturá-lo. 

O Brasil encontra-se na periferia do capitalismo e no interior do país encontra-se outra periferia: a região Nordeste. Portanto, para o artista oriundo dessa região, com exceção da Bahia que naquela quadra histórica já estava no mapa simbólico nacional, era um atestado de mais uma subalternidade que, poderia desembocar numa segunda ou terceira, caso o artista fosse negro ou mulher. 

Neste quesito, Belchior foi um tipo de “passing” (cidadão norte-americano que no séc. XX embaralhou sua identidade étnica para escapar das leis racistas do país) simbólico. Para se tornar esse “passing” simbólico Belchior utilizou um expediente arriscado: a negação. 

Imagem I. Fonte: Google Imagens.

Belchior negou tudo desde sua região de origem: “Nordeste nunca houve, Nordeste é uma ficção”. Negou a família patriarcal burguesa: “A gente se olha, se toca e se cala/ E se desentende no instante em que fala”. Negou a eternidade: “Quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno/ Viver a divina comédia humana onde nada é eterno”. Em uma palavra: negou tudo o que é mistificação e ufanismo, duas dimensões caras aos artistas associados à agenda dos Tropicalistas ou à “canção de protesto”. E numa época de radicalização política negar essas duas categorias foi sinônimo de não tomar partido, isto é, viver e ser lançado às margens.

O poeta mais citado nas canções de Belchior é Fernando Pessoa, o bardo lisboeta que modulou como ninguém as implicações do anômalo verbo “ser”. Neste sentido, é interessante observarmos como o cantor cearense recolhe as “coisas do porão” e da rua para transformar-se no ser farejador da implacável sobrevivência cotidiana, sem heterônimos e sem ortonomia, assim mesmo, como os anônimos da metrópole indiferente.  

Atentem a completa ausência, nos trabalhos de Belchior, de vislumbre com a vida metropolitana, com a “brasilidade” ou a ênfase paternalista na “causa popular” tão marcadas nas obras dos artistas ligados à Tropicália e à “canção de protesto”. Sem mistificação, sem a pseudo ênfase na “alegria” de viver e sem ufanismo, Belchior conseguiu erigir uma obra montada nos detritos de um projeto nacional historicamente concentrador – o “bolo” que nunca foi dividido.

“Nos trata como gente é claro: aos pontapés”.

Nesta toada, Belchior conseguiu ser o cronista mais fidedigno da nossa canção pós-Milagre. Num país que hipoteca suas esperanças em “milagres” econômicos cíclicos (açúcar, ouro, café, desenvolvimentismo, pré-sal...) Belchior recolhe do chão, como um trapeiro das coisas pedestres, o que foi negado aos subalternos deste país: uma narrativa desprotagonizada de mistificação e paternalismo.

Imagem II. Fonte: Google Imagens.
“Que o pecado nativo/ é simplesmente estar vivo,/ é querer respirar”.

A canção de Belchior é o 3x4 de uma civilização de anônimos sem virtuosismo vocálico, sem cadência e sem ritmo. Não é a fotografia do lúmpen, nem do malandro tampouco da classe média, é o retrato dos batalhadores, da ralé, dos migrantes, do povo que enxerga a vida a palo seco e que não sabe rir à toa.

“Era feito aquela gente honesta, boa e comovida/ Que tem no fim da tarde a sensação/ Da missão cumprida”.

Contudo, a ausência de ufanismo e mistificação é compensada com generosas doses de um lirismo das coisas do dia a dia: “Não estou interessado em nenhuma teoria/ Nessas coisas do oriente romances astrais/ A minha alucinação é suportar o dia a dia/ E meu delírio é experiência por coisas reais”. As “coisas reais” são aquilo que o ufanismo e a mistificação não conseguem capturar, o lirismo impregnado de cotidianidade com todas as suas venturas e desventuras: os corações selvagens, as paralelas, a perseguição policial, os encontros e transas casuais, os rapazes delicados e alegres, os humilhados do parque, o gole de cerveja, o refrigerante, o cachorro quente... É o lirismo de mãos calejadas, de rostos vincados com os sulcos do batente das 8h às 18h, da alma escalavrada pela dura existência, do corpo alquebrado pela subalternidade.  

Cantar as coisas pedestres foi a vocação do trapeiro de Sobral que, enquanto existiu, negou as coisas celestes, a mistificação, o paternalismo, o ufanismo: “Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto”.

por Renato Ribalta – Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.

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Paterson: o lirismo da repetição

16.6.17 Cabotino 0 Comentarios



Paterson (Jim Jarmusch, 2016) narra a história de um jovem bonachão, poeta e motorista de ônibus cujo nome também é Paterson (Adam Driver), assim como também é chamada a cidade onde se desenvolve a trama. Com a progressão da história percebemos que o protagonista e sua cidade mantém mais pontos de convergência do que a simples relação homônima. 

Em Paterson temos uma confluência de elementos sob a palavra que nomeia o filme: a cidade, o nome do protagonista, o ônibus (nº23) que este dirige todos os dias, e o topônimo da antiga fábrica da região. Estes elementos homônimos, a princípio dispersos, entram em confluência sob o catalisador de rotina, que permeia o longa através da narrativa estruturada nos dias da semana, que é o cotidiano de Paterson. Isto é, em um dado instante Paterson se torna um único elemento impregnado de lirismo: a cidade e seus desdobramentos desembocam-se no poeta e este, por seu turno, converte-se naqueles. 

A rotina circular do espirituoso Paterson é contrastada com a da sua ebuliente esposa Laura (Golshifteh Farahani). 

Imagem I. Fonte: Google Imagens.

Paterson acorda todos os dias, sem o auxílio de despertadores, por volta das 6h. Confere o relógio que descansa sobre o criado-mudo. Põe-o no braço. Levanta-se. Prepara o mesmo café da manhã: cereal com leite. Em seguida, sai para trabalhar de farda e lancheira – com o almoço – na mão. 

Antes de ligar o ônibus e sair com ele da garagem da empresa, Paterson aproveita o entreatos para escrever alguns versos. Nas viagens, o jovem poeta-motorista capta histórias (ou fragmentos) dos passageiros-confidentes que ele conduz pelas ruas do seu lirismo urbano – o poeta conduz a cidade.

Imagem II. Fonte: Google Imagens.

No intervalo para o almoço, mais alguns versos saem da lavra do poeta. 

À noite, após o jantar, Paterson passeia com o ciumento Marvin, cachorro de Luara que é o nêmesis do poeta, e vai até o bar de Doc (Barry Shabaka Henley). Este bar é uma espécie de memória viva e sentimental da cidade. Nele há fotos de celebridades que nasceram ou passaram por Paterson. O motorista-poeta é o único branco a frequentar o estabelecimento. O Tempo no bar do Doc e seus habitues coexistem em outra dimensão espaço-tempo: mais elástica. Passado, presente e futuro se alargam à medida em que a efusão etílica ganha contornos de dramaticidade com as querelas dos frequentadores, ou pelas doses cavalares de tédio. Nunca vemos o motorista saindo do bar. O bar é um jogador de xadrez que joga um jogo contra si mesmo.

Todos os dias Paterson segue a rotina à risca.

O poeta não tem smartphone.

Num oximoro: Paterson é o nômade sedentário.

Já Laura é a intempestiva dona de casa que é irrequieta até nos sonhos – ela sempre narra seus sonhos, ainda com trevas nos olhos, para seu companheiro assim quando este acorda ao seu lado. 

Laura todos os dias inventa uma novidade para fazer: pintar cortinas, quadros, tapetes, uma nova receita de cozinha, aprender a tocar violão, fazer bolinhos para a uma feira agro-ecológica... O mundo de Laura lembra uma convulsionante tela de Van Gogh nas cores preto-branco, Yin-Yang de vertigem lírica-cromática.

Num oximoro: Laura é a sedentária nômade.  

A regular imagem da divisão social do trabalho no tocante ao gênero, na vida de um casal, é borrada no filme. A imagem tradicional da rua – suas aventuras e surpresas – é substituída pela imagem da casa. Laura é o lirismo doméstico da aventura; Paterson é o lirismo monótono das ruas. Ambos: a repetição do maior mantra cósmico, o amor – sentimento mútuo em meio a duas narrativas antagônicas. 

O amor é o irmão gêmeo de si mesmo. 

O duplo é um elemento constante no longa assim como a recorrência de irmãos gêmeos. Paterson não estranha a recorrência dos duplos (gêmeos) em seu caminho porque ele é, assim como todo poeta, historicamente, o demiurgo de toda cultura. Por exemplo: não há como imaginar Portugal sem Camões, a Alemanha sem Goethe, a Itália sem Dante ou a Inglaterra sem Shakespeare. A poesia erige civilizações. Vivemos em uma língua antes de vivermos em um território.

Paterson e sua cidade homônima sangram pela mesma ferida porque dividem o mesmo corpo.

A poesia é um estado irredutível, independe de suportes, instituições, reconhecimento, reprodutibilidade técnica... a poesia é um canto seja ele um berro ou um banco de praça.

Enfim, Paterson conduz a cidade, seu casamento, sua vida... com o lirismo circular que é, ao cabo, o movimento da natureza: as estações do ano, o dia, a noite, plantar, colher... Paterson nos mostra que, na vida, não há espaço apenas para a circulação de mercadorias. Há lirismo nas reentrâncias das coisas miúdas. A poesia pode sair de uma reles caixa de fósforo e a(s)cender o dia.

por Renato Ribalta - Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.

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