Belchior: o trapeiro das coisas pedestres
Durante
a década de 1970 a música popular brasileira, em ampla medida, polarizou-se em duas
grandes narrativas: as relacionadas à Tropicália e as identificadas com a chamada
“canção de protesto”. Essa polarização atualizou a agenda da Guerra Fria para a
esfera da canção: os pró-Tropicália vistos como os neo-colonizados pelas ideias
e ideais dos países do centro capitalista, e os do “protest song” galvanizando
os afluxos do lado de lá da “Cortina de Ferro”.
Evidentemente,
como acontece sempre com as polarizações: os matizes foram solapados e os artistas
que não compactuaram com nenhuma dessas duas narrativas foram relegados a uma
espécie de limbo da nossa MPB. Esse limbo, muitas vezes considerado segunda
divisão ou pura indústria cultural, recebeu diversos rótulos que por definição são
limitadores: “Udigrudi”, “Rock Rural”, “Malditos”, “Jovem Guarda”, “Pessoal do
Ceará”...
A
partir da polarização política-ideológica formou-se o cânone da moderna MPB. No
panteão: Tropicalistas e a “canção de protesto”. No limbo, todos os demais.
Dentre
os artistas que vieram a reboque sob a alcunha de “Pessoal do Ceará” encontra-se
Belchior. Mas Belchior, por sua própria condição de periférico na periferia do
capitalismo e, por conseguinte, catalisador dos resíduos das circunstâncias
internas e externas ao Brasil, conseguiu ultrapassar todas as narrativas que
desde então tentou capturá-lo.
O
Brasil encontra-se na periferia do capitalismo e no interior do país
encontra-se outra periferia: a região Nordeste. Portanto, para o artista
oriundo dessa região, com exceção da Bahia que naquela quadra histórica já
estava no mapa simbólico nacional, era um atestado de mais uma subalternidade
que, poderia desembocar numa segunda ou terceira, caso o artista fosse negro ou
mulher.
Neste
quesito, Belchior foi um tipo de “passing” (cidadão norte-americano que no séc.
XX embaralhou sua identidade étnica para escapar das leis racistas do país)
simbólico. Para se tornar esse “passing” simbólico Belchior utilizou um
expediente arriscado: a negação.
Imagem I. Fonte: Google Imagens. |
Belchior
negou tudo desde sua região de origem: “Nordeste nunca houve, Nordeste é uma
ficção”. Negou a família patriarcal burguesa: “A gente se olha, se toca e se
cala/ E se desentende no instante em que fala”. Negou a eternidade: “Quero
gozar no seu céu, pode ser no seu inferno/ Viver a divina comédia humana onde
nada é eterno”. Em uma palavra: negou tudo o que é mistificação e ufanismo,
duas dimensões caras aos artistas associados à agenda dos Tropicalistas ou à
“canção de protesto”. E numa época de radicalização política negar essas duas
categorias foi sinônimo de não tomar partido, isto é, viver e ser lançado às
margens.
O
poeta mais citado nas canções de Belchior é Fernando Pessoa, o bardo lisboeta
que modulou como ninguém as implicações do anômalo verbo “ser”. Neste sentido,
é interessante observarmos como o cantor cearense recolhe as “coisas do porão”
e da rua para transformar-se no ser farejador da implacável sobrevivência
cotidiana, sem heterônimos e sem ortonomia, assim mesmo, como os anônimos da
metrópole indiferente.
Atentem
a completa ausência, nos trabalhos de Belchior, de vislumbre com a vida
metropolitana, com a “brasilidade” ou a ênfase paternalista na “causa popular”
tão marcadas nas obras dos artistas ligados à Tropicália e à “canção de
protesto”. Sem mistificação, sem a pseudo ênfase na “alegria” de viver e sem
ufanismo, Belchior conseguiu erigir uma obra montada nos detritos de um projeto
nacional historicamente concentrador – o “bolo” que nunca foi dividido.
“Nos
trata como gente é claro: aos pontapés”.
Nesta
toada, Belchior conseguiu ser o cronista mais fidedigno da nossa canção
pós-Milagre. Num país que hipoteca suas esperanças em “milagres” econômicos cíclicos
(açúcar, ouro, café, desenvolvimentismo, pré-sal...) Belchior recolhe do chão,
como um trapeiro das coisas pedestres, o que foi negado aos subalternos deste
país: uma narrativa desprotagonizada de mistificação e paternalismo.
Imagem II. Fonte: Google Imagens. |
“Que
o pecado nativo/ é simplesmente estar vivo,/ é querer respirar”.
A
canção de Belchior é o 3x4 de uma civilização de anônimos sem virtuosismo
vocálico, sem cadência e sem ritmo. Não é a fotografia do lúmpen, nem do malandro tampouco da classe média, é o retrato dos
batalhadores, da ralé, dos migrantes, do povo que enxerga a vida a palo seco e
que não sabe rir à toa.
“Era
feito aquela gente honesta, boa e comovida/ Que tem no fim da tarde a sensação/
Da missão cumprida”.
Contudo,
a ausência de ufanismo e mistificação é compensada com generosas doses de um
lirismo das coisas do dia a dia: “Não estou interessado em nenhuma teoria/
Nessas coisas do oriente romances astrais/ A minha alucinação é suportar o dia
a dia/ E meu delírio é experiência por coisas reais”. As “coisas reais” são
aquilo que o ufanismo e a mistificação não conseguem capturar, o lirismo
impregnado de cotidianidade com todas as suas venturas e desventuras: os
corações selvagens, as paralelas, a perseguição policial, os encontros e
transas casuais, os rapazes delicados e alegres, os humilhados do parque, o
gole de cerveja, o refrigerante, o cachorro quente... É o lirismo de mãos
calejadas, de rostos vincados com os sulcos do batente das 8h às 18h, da alma
escalavrada pela dura existência, do corpo alquebrado pela subalternidade.
Cantar
as coisas pedestres foi a vocação do trapeiro de Sobral que, enquanto existiu,
negou as coisas celestes, a mistificação, o paternalismo, o ufanismo: “Enquanto
houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto”.
por
Renato Ribalta – Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.
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