Paterson: o lirismo da repetição
Paterson
(Jim Jarmusch, 2016) narra a
história de um jovem bonachão, poeta e motorista de ônibus cujo nome também é
Paterson (Adam Driver), assim como também é chamada a cidade onde se desenvolve
a trama. Com a progressão da história percebemos que o protagonista e sua cidade
mantém mais pontos de convergência do que a simples relação homônima.
Em Paterson
temos uma confluência de elementos sob a palavra que nomeia o filme: a
cidade, o nome do protagonista, o ônibus (nº23) que este dirige todos os dias,
e o topônimo da antiga fábrica da região. Estes elementos homônimos, a
princípio dispersos, entram em confluência sob o catalisador de rotina, que permeia
o longa através da narrativa estruturada nos dias da semana, que é o cotidiano
de Paterson. Isto é, em um dado instante Paterson se torna um único elemento
impregnado de lirismo: a cidade e seus desdobramentos desembocam-se no poeta e
este, por seu turno, converte-se naqueles.
A rotina circular do espirituoso Paterson é contrastada
com a da sua ebuliente esposa Laura (Golshifteh Farahani).
Imagem I. Fonte: Google Imagens. |
Paterson acorda todos os dias, sem o auxílio
de despertadores, por volta das 6h. Confere o relógio que descansa sobre o
criado-mudo. Põe-o no braço. Levanta-se. Prepara o mesmo café da manhã: cereal
com leite. Em seguida, sai para trabalhar de farda e lancheira – com o almoço –
na mão.
Antes de ligar o ônibus e sair com ele da
garagem da empresa, Paterson aproveita o entreatos para escrever alguns versos.
Nas viagens, o jovem poeta-motorista capta histórias (ou fragmentos) dos
passageiros-confidentes que ele conduz pelas ruas do seu lirismo urbano – o poeta
conduz a cidade.
Imagem II. Fonte: Google Imagens. |
No intervalo para o almoço, mais alguns versos saem da lavra do poeta.
À noite, após o jantar, Paterson passeia com o
ciumento Marvin, cachorro de Luara que é o nêmesis do poeta, e vai até o bar de
Doc (Barry Shabaka Henley). Este bar é uma espécie de memória viva e sentimental
da cidade. Nele há fotos de celebridades que nasceram ou passaram por Paterson.
O motorista-poeta é o único branco a frequentar o estabelecimento. O Tempo no bar do Doc e seus habitues coexistem em outra dimensão espaço-tempo: mais elástica. Passado, presente e futuro se alargam à medida
em que a efusão etílica ganha contornos de dramaticidade com as querelas dos frequentadores, ou pelas doses cavalares de tédio. Nunca vemos o motorista saindo
do bar. O bar é um jogador de xadrez que joga um jogo contra si mesmo.
Todos os dias Paterson segue a rotina à risca.
O poeta não tem smartphone.
Num oximoro: Paterson é o nômade sedentário.
Já Laura é a intempestiva dona de casa que é irrequieta até nos sonhos – ela sempre narra seus sonhos, ainda com trevas nos
olhos, para seu companheiro assim quando este acorda ao seu lado.
Laura todos os dias inventa uma novidade para
fazer: pintar cortinas, quadros, tapetes, uma nova receita de cozinha, aprender
a tocar violão, fazer bolinhos para a uma feira agro-ecológica... O mundo de
Laura lembra uma convulsionante tela de Van Gogh nas cores preto-branco, Yin-Yang
de vertigem lírica-cromática.
Num oximoro: Laura é a sedentária
nômade.
A regular imagem da divisão social do
trabalho no tocante ao gênero, na vida de um casal, é borrada no filme. A
imagem tradicional da rua – suas aventuras e surpresas – é substituída pela
imagem da casa. Laura é o lirismo doméstico da aventura; Paterson é o lirismo
monótono das ruas. Ambos: a repetição do maior mantra cósmico, o amor – sentimento
mútuo em meio a duas narrativas antagônicas.
O amor é o irmão gêmeo de si mesmo.
O duplo é um elemento constante no longa
assim como a recorrência de irmãos gêmeos. Paterson não estranha a recorrência
dos duplos (gêmeos) em seu caminho porque ele é, assim como todo poeta, historicamente,
o demiurgo de toda cultura. Por exemplo: não há como imaginar Portugal sem
Camões, a Alemanha sem Goethe, a Itália sem Dante ou a Inglaterra sem
Shakespeare. A poesia erige civilizações. Vivemos em uma língua antes de
vivermos em um território.
Paterson e sua cidade homônima sangram pela
mesma ferida porque dividem o mesmo corpo.
A poesia é um estado irredutível, independe
de suportes, instituições, reconhecimento, reprodutibilidade técnica... a
poesia é um canto seja ele um berro
ou um banco de praça.
Enfim, Paterson conduz a cidade, seu
casamento, sua vida... com o lirismo circular que é, ao cabo, o movimento da
natureza: as estações do ano, o dia, a noite, plantar, colher... Paterson nos
mostra que, na vida, não há espaço apenas para a circulação de mercadorias. Há
lirismo nas reentrâncias das coisas miúdas. A poesia pode sair de uma reles
caixa de fósforo e a(s)cender o dia.
por Renato Ribalta - Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.
por Renato Ribalta - Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.
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