Viagem ao fim do norte
Era
o ano da graça de 2007 e estávamos indo, em dois ônibus fretados com diversos
representantes dos movimentos sociais pernambucano, rumo à capital do estado do
Pará, Belém, para o congraçamento da 9ª edição do Fórum Social Mundial cujo
slogan “Um novo mundo é possível” impregnava algus de otimismo e outros de
ceticismo – eis os dois humores prevalentes na esquerda política.
No extenuante périplo de Recife a Belém de ônibus, um dia e meio de viagem, escolhia-se
diversas formas de evitar-se o tédio proveniente das infinitas paisagens de
cana de açúcar, caatinga e coco babaçu, como, por exemplo: drogas, ler, flertar,
tirar um som, dormir... Como não consigo dormir se não for deitado, tampouco
paquerar por minha hedionda timidez, e não tenho habilidades percussivas restava-me,
portanto, entorpecer-me de maconha, álcool e de leituras.
Ainda
não havia entrado na faculdade de Sociologia o que iria acontecer apenas no
ano seguinte, mas naquela quadra de minha vida eu vinha lendo vorazmente uma
mistura estranhamente perigosa: poesia e política. Era um animal onivoramente
político e lírico.
Tinha
vinte e um anos na ocasião e desde os 17 havia iniciado, de maneira não
deliberada, meus anos de formação que iriam culminar dez anos depois justamente
quando tornei-me graduado em Sociologia.
A
partir dos 17 iniciei um período de peregrinações embrenhado-me nas madrugadas
de luz mortiça, desejos sexuais e cheiro de livros ensebados. Época de viagens ao
mundo ao redor do meu quarto e do meu corpo. Viagens físicas e metafísicas com
o único intuito de conhecer mais minha geografia. E eis o advérbio que ungia
meu corpo como um emplastro por vezes balsâmico: “mais”. Sempre foi “mais” música,
“mais” literatura, “mais” poesia, “mais” cinema, “mais” fetiche, “mais” erotismo,
“mais” drogas... mais tudo.
A
máquina de ferro, vidro e látex rasgava o escaldante concreto rumo ao norte,
sempre ao norte: onde a bússola da sensatez enlouquece e a civilidade claudica. Em seu interior, homens e mulheres desnorteados em busca da resposta
de uma narrativa de esquerda: “Um novo mundo é possível?” Enquanto a resposta
não vinha, quedávamo-nos com olhos vermelhos, o coração palpitando erotismo,
uma picardia na ponta de cada língua e o desejo de transformar esse mundo numa
grande e vermelha bacante, seja econômica, cultural ou política.
Estávamos na esquerda e no Eros.
Estávamos na esquerda e no Eros.
Meus
olhos liquefaziam-se pelos efeitos da maconha, dos versos de Pessoa e das
paisagens melancolicamente fodidas. Súbito, escuto um cara que papeava atrás de
mim soltar, de maneira meio pedante, essa para uma mulher: “Sons, palavras são navalhas”. O verso de
Belchior atravessou-me como a miserável paisagem de coco babaçu do Paupérrimo
Reino do Maranhão que parpassava naquele instante as minhas retinas
nordestinadas.
Algumas
obras entram em nossas vidas de maneira abrupta como se nosso corpo abalroa-se
naqueles outros objetos estranhos e, ato contínuo, criasse um calo arroxeado
que cresce e enrijece à medida que vamos alisando-o. Contudo, o coágulo serena ao passo que aqueles objetos vão se distanciando do tempo e do espaço
onde os encontramos na primeira vez. Como foi o caso da obra de Fernando Pessoa
em minha vida. No entanto, há outras obras que nos passam ilesas, no primeiro
momento em que travamos contato com elas, mas que de maneira misteriosa já nos
penetrou subcutaneamente e inoculou-nos com suas células cancerígenas que,
através de sua metástase, aumenta os cancros e toma conta de toda nossa
compleição. Esse é o caso da obra de Belchior em minha vida.
O
trovador de Sobral carregava em sua obra uma vontade de potência irmanada com
um sentimento trágico que é típico da condição nordestina. Uma dicção estranhamente erótica marca seu cancioneirismo tal um acorde dissonante de João Gilberto, ou
o resfolego da batida de um Jackson do Pandeiro, o timbre gutural e seco como a
paisagem sertaneja-vocálica de Luiz Gonzaga, ou o desenho onírico-mítico local e
cosmopolita de um Elomar.
Belchior
é como o Ceará: sertão-litoral sem a mediação da modorrenta, confortável e úmida
zona da mata.
O
sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. O ser tal vai se trans-for-mar o
tal ser vai se trans-for-mar...
Segundo
o dicionário, a palavra “Belchior” significa o mesmo que antiquarista, alfarrabista,
pessoa responsável por negociar objetos usados como velhas roupas coloridas.
Belchior
também foi o nome de um dos três Reis Magos que seguindo a Estrela de Belém (“Um
novo mundo é possível?”) vieram ao mundo para presentear o nascimento do Cordeiro
de Deus... “Perdo-ai os pecados do mundo. Dai-vos a paz”.
Naquela
viagem rumo ao norte da minha condição na falsa pista de “Um novo mundo é
possível” estava, inconscientemente, inoculado pelo cancioneirismo de Belchior. Por
sua esperança cética. Por seu singelo niilismo. Por sua suave acedia. Por seus
galos, noites, paralelas, canaviais, armas quentes, marcas de batom, corações
selvagens, liras de vinte e poucos anos, conflitos geracionais, urbes fodidas
do terceiro mundo... enfim, por sua nordestina latino-americanidade.
O
bardo de Sobral mostrou-me que toda tragédia lembra um rosto setentrião.
Belchior
me deu o Nordeste mesmo sabendo que este não passa de uma ficção. E não há nada
mais real do que uma ficção, como bem sabem os líricos deste mundo.
Hoje,
dez anos após aquela viagem à procura de “Um novo mundo é possível” e da recente morte
de Belchior, chegamos a uma quadra histórica que, pela primeira vez na
humanidade, não podemos mais vislumbrar um mundo melhor nem sequer mais um
slogan como aquele de 2007.
Diziam que Benjamin "desejava" escrever a partir de citações... faria mais ou menos assim:
ResponderExcluirQual ser-de-desejo pode transformar esse mundo numa grande e vermelha bacante, seja econômica, cultural ou política? Será que esse tal ser pode se trans-for-mar? Como não há nada mais real do que uma ficção, como bem sabem os Cabotinos deste mundo, restava-me, entorpecer de seres desejantes, pois, isso bem sei, caso não mudem o mundo sabem fazer outras leituras/ficções de seus próprios desejos.
Belíssima homenagem a esse poeta regional-universal, que se aboleta na vida e na poesia do nordestino que o conhece, com sua poesia cotidiana
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