Bestificados

31.8.16 Cabotino 0 Comentarios


Apesar dos ventos frios do último dia de agosto de 2016, era uma tarde de quarta-feira como qualquer outra: dona Ritinha, com suas varizes nas pernas, levou e trouxe sofridamente os netos da escola. Gerson e seus primos jogavam barrinha na rua, dez minutos ou dois gols. Seu Valdomiro foi comprar alpiste. Dona Noca dormia defronte à tevê após o almoço, enquanto uma baba fria e elástica escorria de sua boca, indiferente ao Vale a pena ver de novo. Janaína preparava um currículo vitae no word para enviá-lo, no dia seguinte, a uma das sucursais do Walmart. Elaine, curtindo seu último dia de férias, assistia mais um episódio de Girls no Netflix. Maurício acordou às 16h e vendo que encontrava-se só em casa, a mulher tinha ido à manicure e levou o filho, aproveitou para se masturbar assistindo o RedTube. Seu Bosco foi fazer sua fezinha no jogo do bicho, jogou R$ 2 em sua milhar: 5641. Dona Jaidete pôs a massa do cuscuz para descansar, gosta dele bem fofinho, por isso deixa a massa descansando um par de horas. Dinho foi ver a movimentação da turma do dominó lá no terminal de ônibus enquanto dava tragadas profundas em seu Derby Vermelho. Dico contava as moedas amealhadas, junto com seus parceiros do “sindicato”, para comprar mais um super-latão de Pitú, era o segundo do dia. Gleisson abriu o salão após sua indefectível sesta, não havia ninguém esperando para cortar o cabelo, automaticamente, sintonizou uma FM qualquer e a voz de Wesley Safadão tomou conta do recinto. Pascoal, o vira-latas de Seu Tenório, lambia o rosto do dono que encontrava-se morto, ataque cardíaco, há aproximadamente três horas, enquanto dormia. Pascoal foi a única criatura naquela tarde que sentiu que alguma coisa mudou, a partir daquele momento, em sua vida. Pascoal grunhiu de tristeza e seu lamento ecoou no vácuo de uma nação totalmente bestificada. 

por Renato Ribalta

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Recife: capital da “egípcia”

31.8.16 Mademoiselle Fifi 0 Comentarios


“Essa é a mistura do Brasil com o Egito /Tem que ter charme pra dançar bonito”

Antes de mais nada “egípcia” é o nome daquele movimento de virar a cara, para não cumprimentar uma pessoa, que alguém dá, para não falar ou acenar para outrem.

Eu sei que é chato levar uma “egípcia”, você fica com aquela cara de humilhada e ofendida, seu assentimento com a cabeça balançando sozinha, no vácuo, sem a esperada retribuição. 

A “egípcia” dói na alma da cordialidade, aquilo que tanto investimos, o preço da urbanidade ensinada a duras penas na escola, na igreja, na família, os carões de mamãe e de papai para que não fôssemos bichos do mato... E tudo isso pra quê, meu Deus? Nos perguntamos enquanto a “egípcia” nos deixa saboreando a pipoca murcha da morgação.

Mas antes de você começar a esculhambar o autor da “egípcia”, chamando-o de fdp, alma sebosa, dando uma de doido... Cabe aqui uma pergunta: você nunca deu uma “egípcia”? Quem nunca deu uma “egípcia”, em Recife, atire a primeira pedra no Nilo ou no Capibaribe.




A “egípcia” faz parte da ânima do recifense. Quantas vezes você não atravessou a rua para não falar com alguém, evitou aquele caminho porque sabia ou intuía que aquele cara chato que você não está afim de falar estará por lá? Porque a pessoa em questão é um escroto, ou porque seu time perdeu e a pessoa irá arriar com sua cara, ou por pura preguiça mesmo por que no tal dia você não está sociável. 

Relativizem comigo: o cara tá entalado até a medula com compromissos, contas, aporrinhações em casa, o time no Z4, mil contingências que fariam um Kafka ser tabacudo na frente dele, daí ele lhe dá uma “egípcia”. Pronto! É o suficiente para você lançá-lo no quinto inferno do coração das trevas do seu ressentimento.

Mas vamos lá, e se fosse você na situação do cara? Às vezes uma “egípcia” pode evitar uma conversa meia-boca, repleta de nonsenses ou o pior: uma conversa tipicamente “Muro de Lamentações”, onde cada um vai debulhar seu rosário de mágoas – tá foda esse país, tá foda essa cidade, tá foda meu time, tá foda meu relacionamento, tá foda!

E por que Recife é a capital da “egípcia”? Respondo, talvez em nenhum outro lugar da federação, conheci alguns deles, o excesso de estímulos sensoriais crivados no corpo/consciência dos sujeitos sejam tão arraigados quanto na capital pernambucana. 

Pudera, a relação: muita gente produzindo bens materiais e simbólicos versus pouco espaço geográfico, como é sobretudo o centro do Recife, gera densidade dinâmica e moral[1]. Exemplos disso: Galo da Madrugada, megalomania, bairrismo etc., 

Isso tudo gera na cabeça e no corpo do pobre recifense imerso nessa Babel fedorenta um sentimento de reserva, que os eruditos chamam de postura blasé. Bom, isso ajuda a explicar um pouco a natureza da “egípcia” aqui na “Nova Roma talvez no porvir”.

Por fim, têm aquelas “egípcias” que é puro charme! Uma cena! A pessoa dá uma “egípcia” qual uma Cleópatra de filme hollywoodiano. Ah! A vontade é de jogar um coco na cabeça do desgraçado pra ele botar fé com a cara da gente, só assim, cairá por terra todo seu charme de Faraó do Alto e do Baixo Nilo do Pátio de Santa Cruz.




[1] Essa é uma das teses centrais da sociologia de Émile Durkheim.

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Chuva de containers de Coca-Colas I

12.8.16 Cabotino 0 Comentarios


Geração Coca-Cola é a sexta faixa do primeiro disco da Legião Urbana (Legião Urbana, 1985). A música é uma das canções oriundas do espólio da lendária banda de punk-rock brasiliense, Aborto Elétrico. E a música carrega a pegada e a estética do punk: simplicidade [três acordes], versos claros e direitos, linguagem chula [cuspir], referências ao cotidiano [tevê, escola, Coca-Cola], ausência de metáforas ou metonímias etc.

“Quando nascemos fomos programados /A receber o que vocês /Nos empurraram com os enlatados dos USA, de 9 às 6 /Desde pequenos nós comemos lixo/ Comercial e industrial”

De início, Geração Coca-Cola traz em seu seio uma ambivalência típica da produção simbólica de países da periferia do capitalismo, como o Brasil: critica-se o imperialismo cultural dos EUA, no conteúdo da letra; ao passo que o vetor formal da crítica é uma linguagem sonora símbolo do colonialismo norte-americano: rock.

“Mas agora chegou nossa vez/ Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”

Talvez o dado distintivo do rock produzido no Brasil durante a década de 1980 e meados de 1990 seja: pela primeira vez ele assume que é nacional e que faz um arremedo, abrasileirado, do que é produzido nos EUA e Reino Unido. O rock torna-se Made in Brazil. Não obstante, os letristas de destaque desta época conseguiram formatar uma forma de compor rock em português. Nomes como: Antônio Cícero, Humberto Gessinger, Marina, Cazuza firmaram suas carreiras compondo e cantando rock na língua de Fernando Pessoa. 


 
Capa do 1º disco da Legião. Na imagem, podemos detectar a ambivalência do modernismo brasileiro. Acima, imagem do Congresso Nacional. Abaixo, imagem de um índio.

Geração Coca-Cola talvez seja o estertor de uma das facetas do projeto iniciado com a Tropicália: o lixo da indústria cultural dos países centrais sendo ressignificado na periferia do capitalismo. 

Isto é, na música em destaque, a modernidade periférica vem à tona através de imagens publicitariamente violentas, que são plasmadas na canção e cuspidas diretamente para o ouvinte. Geração Coca-Cola não traz as imagens cinematográficas de um certo encantamento cotidiano com os símbolos da modernidade capitalista, como, por exemplo: na balada tropicalista Alegria, Alegria: 

“Eu tomo uma Coca-Cola/ Ela pensa em casamento/ E uma canção me consola/ Eu vou”
Ao que parece, a aliança tríplice entre a Tropicália, o Cinema Novo e o Marginal sai de cena, durante a década de 1980, e em seu lugar surge o Rock Nacional recalcado no decalque norte-americano, e sem antropofagia, somado a uma linguagem publicitária eminentemente direta. Em uma palavra: a tevê suplanta o cinema e dá régua e compasso ao rock realizado durante a [mal]dita década perdida. A década dos filhos da “Revolução 1964” que estava pedindo passagem:

“Somos os filhos da revolução/ Somos burgueses sem religião/ Somos o futuro da nação”

Neste sentido, podemos afirmar que a geração musical do decênio de 1980-90 carrega consigo um paradoxo: erigiram-se sobre uma negatividade afirmativa. Isto é, nega-se os influxos da cultura americana despejados na economia brasileira no período da reabertura democrática, na fatura das letras; ao passo que afirma-se musicalmente nas influências anglo-saxãs – até pouco tempo símbolo do imperialismo cultural[1] – através da sonoridade rock. 

Este paradoxo pode ser resumido também no descompasso de uma economia cambiante entre o arcaico e o moderno, o Brasil, em sintonia com a modernidade dos países centrais, representada no rock. É um dado típico da modernidade periférica: ser contemporâneo do não-contemporâneo. 

Assim, neste diapasão, as vanguardas artísticas nacionais durante o século XX, da Semana de 1922 à Tropicália, viveram da dialética entre o local e o universal, ora alimentando-se dos elementos nacionais – desde 1922 desrecalcados – em forte diálogo-influência-reinvenção com as produções simbólicas sobretudo da Europa e EUA. E no centro desta lógica, sobreveio a estética antropofágica, especialmente nas duas vanguardas supracitadas. 

 
Da esquerda pra direita: Renato Russo, Dado Villa-Lobos [segundo plano], Marcelo Bonfá e Renato Rocha.

Portanto, seja na Semana de 1922 quanto na Tropicália, as bases simbólicas foram fincadas no conflito e convivência entre um Brasil arcaico – patriarcal, rural, não capitalista, pré-replicano – com os elementos modernizantes – urbano, industrial, capitalista, burguês.
Porém, a partir da década de 1980, com a geração do Rock Nacional, um dado novo se instala nesta relação entre os brasis arcaico e moderno: não há mais espaço para o Brasil profundo, ou arcaico. O urbano suplanta o rural e transforma-o em epifenômeno.


[1] Lembrar o fatídico episódio da Passeata contra a guitarra elétrica, no Rio, em 1967.

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Chuva de containers de Coca-Colas II

12.8.16 Cabotino 0 Comentarios


Chuva de containers é a quinta faixa do disco Gessinger, Licks & Maltz (GLM, 1992) da banda gaúcha, Engenheiros do Hawaii. A canção retoma alguns pontos discutidos anteriormente no diálogo entre Geração Coca-Cola [Legião Urbana, 1985] e a canção Alegria, Alegria [Caetano Veloso, 1967]. 


Capa do último disco [1992] de estúdio dos Engenheiros com a sua formação 
considerada clássica: Humberto Gessinger, Augusto Licks e Carlos Maltz.

Desta vez, iremos traçar brevemente um paralelo entre Chuva de containers e Panis et Circense [Caetano Veloso, 1967] por acreditar que há pontos de ruptura entre as duas canções e entre as duas interfaces geracionais: Tropicália e Rock Nacional dos anos 1980-90. Essas rupturas são sobretudo no tocante à discussão entre a modernidade na periferia do capitalismo, o Brasil, e como esta modernidade dialoga com os ícones da indústria cultural oriundos do centro do capitalismo, Europa e EUA.

Chuva de containers já começa aludindo a uma prática sócio-política muito presente e originária [entranhada no imaginário] do mundo latino: “pão e circo” [Panis et circense]. Só que ao invés do pragmatismo político do pão [comida] e circo [espetáculo] às massas, a canção traz um viés mais metalinguístico e policlassista, lembrando um pouco do conteúdo de Geração Coca-Cola, só que ao invés da estética punk, a canção dos gaúchos é mais polissêmica e progressiva.

“Falta pão/ (o pão nosso de cada dia)/ Sobra pão/ (o pão que o diabo amassou)  Falta circo (no mundo que nos cerca)/ Sobra circo (é só pular a cerca)/ Sobra circo... falta pão/ Falta circo... sobra pão”

Ao que tudo indica, no decênio de 1990, nossa recepção e transmissão sonora de maior espectro, o Rock Nacional, são impregnadas da linguagem publicitária e da tevê. E o modelo importado é proveniente da indústria cultural estadunidense, sobretudo.  

Tudo isso nos é apresentado, na canção, por meio de um grande paroxismo policlassista de pão e circo, que vão: do biscoito fino[1] consumido por nossas elites ao sonho terceiro-mundista/latino-americano de ir lavar pratos em Miami como um American Latin way of life.  Isto é, há mais de três décadas que Miami é o Latin American Dream tanto de uma elite que gritava e grita “ame-o, ou deixe-o” quanto dos sonhadores do green card a qualquer custo e sacrifício. 

A conjuntura da canção é atual. Parece que o Brasil e a América Latina sofrem de um particular oximoro no tocante às condições estruturantes de suas respectivas sociedades, movimento imóvel:

“Triste vocação/ A nossa elite burra se empanturra de biscoito fino/ Triste sina, América Latina/ Não escaparemos do vexame, não/ Nós não caberemos todos em Miami-ami/ Ame-o ou deixe-o/ Ame-o ou deixe-o”

Desta vez a crítica ao colonialismo das mentes, via o mercado de bens simbólicos agora eminentemente ianque, despejado indistintamente no mercado brasileiro, é notoriamente anti-antropofágica na fatura da letra. Não há mais o brado proto-punk do: vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês. Ao invés disso, há uma recepção cultural sem ruminação:
“Somos todos passageiros clandestinos dos destinos da nação/ Triste destino, engolir sem mastigar/ Chuva de containers/ Entertainers no ar... Noir”

A canção dos Engenheiros denuncia a prática da absolvição, indiscriminada, dos elementos culturais provenientes do centro do capitalismo. Não há mais a regurgitação oswaldiana/tropicalista. O consumo [não mais usufruto ou fruição cultural], agora, é sem peias, sem paladar e sem mastigar. O bolo alimentar [lixo/entertainers] cai na proporção que a gravidade atrai, para o país das margens plácidas, os containers de Coca-Colas. 

Tão anos 1990 quanto o rombo da Camada de Ozônio e as chuvas ácidas, assim era a pilha de lixo/entertainers acumuladas no colosso verde amarelo, abruptamente permissível ao mercado externo do período da reabertura política e, no limite da hiperinflação, nos anos Collor:

“Ouviram do Ipiranga às margens plácidas/ Os trovões da chuva ácida/ A acidez oceânica de uma laranja mecânica”

O lixo/entretenimento do USA de 9 às 6 chega agora pelo ar – chuva de containers – e também pelo “ar” dos raios catódicos da publicidade e da tevê numa estética opaca, noir, anti-solar e anti-tropicalista. Diferente do Brasil da segunda metade dos anos 1960 onde a canção Panis et circense veio à superfície, o Brasil de Chuva de containers traz uma sociedade também bestificada diante da tevê e da publicidade, como em Panis et circense:

  Mandei plantar /Folhas de sonho no jardim do solar/ As folhas sabem procurar pelo sol/ E as raízes procurar, procurar/ Mas as pessoas na sala de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”

O que difere é que Chuva de containers traz uma sociedade [brasileira] encalacrada num jogo que transcende o “pão e circo”, esse jogo está presente na canção de Caetano, e no lugar deste encurralamento, a música dos gaúchos traz uma aporia: o que fazer quando falta o pão e o circo

Na canção de Caetano há ainda as folhas a procurar pelo sol e as raízes. Ou seja, na canção dos Engenheiros não há mais a esperança ambivalente entre o alto [Centro-sol-novo-moderno] e as profundezas [Periferia-raízes-arcaico-tradição], como na canção de Caetano. Neste sentido, o Rock Nacional de 1980 e meados de 1990 perdeu do seu horizonte aquele diálogo tão presente nas vanguardas anteriores: o Brasil arcaico com o moderno. 

Humberto Gessinger, Augusto Licks e Carlos Maltz

Por fim, o Rock Nacional do período 1980-90, representado nas duas músicas trazidas até aqui, anunciava, a partir da ruptura do diálogo entre o arcaico e o moderno em nossas vanguardas e em nossa música, o “fim” da canção. Ou seja, quando o elemento “arcaico”, plasmado pela tradição [local], sai de cena, restando apenas o elemento modernizador [de fora], abra-se espaço na terra-arrasada pela publicidade, aos influxos da negatividade afirmativa, como são os casos de Geração Coca-Cola e Chuva de containers.



[1] A referência à frase de Oswald de Andrade é quase inevitável: “A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico”

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Pokémon Go: a excitação encapsulada

12.8.16 Cabotino 0 Comentarios


por Renato K. Silva, doutorando em ciências sociais pela UFRN.

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De antemão, não será objetivo deste texto apontar eventuais relações entre o jogo eletrônico Pokémon Go com instituições supranacionais de vigilância para fins de controle social; tampouco associá-lo a mais um dos inúmeros braços da indústria cultura que visa a alienação dos usuários. Não temos subsídios para direcionarmos nossa análise em tais direções. Ao invés disso, iremos nos ater a outros elementos.

É consenso afirmar que as civilizações são formadas a partir de um crescente, contínuo e cambiante controle das tensões sociais entre os seres humanos. Essa é uma tese contratualista que nos remete especialmente a três autores: Thomas Hobbes, Freud e Norbert Elias. 

Não é de hoje que controle das tensões extrapolou o convívio social – do cotidiano – e ganhou forma em outras configurações sociais, como, por exemplo: nos esportes. A título de demonstração do argumento basta pensarmos no caso do pugilismo que, desde sua origem, passou por inúmeras modificações no tocante a um equilíbrio de forças cada vez mais justo entre as partes: a divisão por categorias de peso, uso de luvas, proibição de golpe baixo etc. 

E o processo de racionalização das atividades humanas em direção a um justo equilíbrio entre as partes é uma constante na cultura humana, sobretudo, nas atividades lúdicas. Esse movimento faz parte do processo civilizador, para utilizarmos a expressão do sociólogo judeu-alemão, Norbert Elias. 

Contudo, o processo civilizador tende a promover a especialização, racionalização e profissionalização das atividades humanas, como foi o caso dos esportes que, no final do século XIX, sofreram profundas modificações em suas estruturas; tais modificações foram empreendidas pelos ingleses.

Isto é, os ingleses – inspirados em sua cultura do gentleman e do fair play – inseriram inúmeras regras nos esportes modernos. Com isso, os esportes ganharam em equilíbrio e perderam em ludicidade. Por exemplo: a 11ª regra do futebol – o impedimento – beneficiou a defesa que era vazada constantemente; por outro lado, os gols ficaram cada vez mais escassos à medida em que a regra do impedimento foi sendo alterada no decorrer do tempo: sempre visando um maior equilíbrio entre ataque e defesa. Não custa frisarmos que este equilíbrio é sempre precário, pois o processo civilizador não é uma dimensão positivista e evolucionista, como bem sabemos, por exemplo, nas tensões em relação à aplicação da lei do impedimento.

POKÉMON E O PROCESSO CIVILIZADOR 

No início dos anos 2000, constatei um certo movimento em direção ao processo civilizador sendo inserido nos desenhos/quadrinhos mangás japoneses. Até então, os desenhos japoneses eram pautados no conflito – luta corporal e espiritual – entre os personagens. Por exemplo: Cavaleiros do Zodíaco, Yu Yu Hakusho, Dragon Ball e outros. 

Com o advento de Pokémon, no final das década de 1990, há uma nova inflexão: os combates deixaram de ser corporal e tornam-se intermediados por um terceiro elemento, no caso, os pokémons. Em seguida, uma plêiade de desenhos passaram a utilizar deste expediente: um terceiro elemento vem à tona para protagonizar a ação junto com os personagens “humanos”. Vide o caso de Sakura Cardcaptor, Beyblader, Yu-Gi-Oh! O controle das tensões estava agora distribuído, amplamente, com o terceiro elemento.

Neste sentido, as práticas imitativas que emulavam os conflitos entre os personagens, por exemplo, em Cavaleiros do Zodíaco, onde as crianças/fãs se identificavam com o cavaleiro que nutria mais intimidade, sai de cena, e entra a abstrata pokebola e os também abstratos pokémons. Ou seja, com Pokémon surge uma nova configuração nas brincadeiras dos fãs: há uma queda do elemento lúdico/corporal e um aumento da prática racionalizada/quantitativa; o que importa agora é acumular o maior número possível de pokémons

Os anos se passaram e o desenho ficou, digamos assim, em stand by para a geração dos anos 2000 que, a essa altura, está chegando ou ultrapassou à casa dos 30 anos. Em junho do corrente, três empresas [Niantic, a Nintendo e a The Pokémon Company] lançaram para as plataformas iOS e Android, o jogo eletrônico coqueluche do momento: Pokémon Go


O jogo é pautado numa nova tecnologia chamada: VR virtual reality, ou seja, de realidade aumentada, onde há uma interação e amálgama entre a realidade objetiva e a realidade virtual por meio dos GPSs e câmeras dos smartphones dos usuários que, por conseguinte, podem ir a campo em busca dos bichinhos virtuais distribuídos aleatoriamente pelo perímetro das cidades.
 
 
Logo marca do Pokémon Go

Essa dimensão que imbrica a realidade virtual com a objetiva está causando inúmeros imbróglios e pode, eventualmente, levar os usuários a situações constrangedoras ou de ameaça à própria vida. Por exemplo: imaginemos um jovem negro que esteja jogando Pokémon Go, ele está à caça de pokémons em um bairro de elite, passando inúmeras vezes no mesmo local, certamente a vida dele estará em risco. Ou, alguém que esteja caçando pokémons num cemitério, numa igreja, fórum, tribunal... Ou como um jovem estadunidense que caçou um pokémon com características tóxicas chamado: Koffing, nas intersecções do Memorial do Holocausto.  

Em cima do argumento aventado até aqui, Pokémon Go traz uma novidade em relação à sua versão televisiva: o corpo do fã [agora também usuário] entra em cena. Desta vez, ele agora pode correr sua cidade à procura dos pokémons. Porém, algo ainda permanece da versão do desenho animado: a lógica da acumulação em detrimento da atividade lúdica gratuita.  

Portanto, Pokémon Go reproduz uma lógica inerente ao processo civilizador: aumenta-se a racionalização do jogo pautado no acúmulo dos pontos [são 150 pokémons] e, com isso, perde-se de vista a atividade fim da própria brincadeira que é, ao cabo, a não finalidade. Não nos surpreenderemos se daqui a pouco surgirem versões pagas do aplicativo, campeonatos nacionais e internacionais, profissionalização e especialização dos usuários que passarão a se chamar algo do tipo: PokePro, Master Go, ou coisa que o valha. 

Apesar de toda a agitação sonambúlica dos usuários correndo atrás de pokémons nas grandes e médias cidades do mundo, um dado contínua renitente: a excitação proveniente do jogo não é senão uma capsula de isolamento, em ambas realidades.

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Conjugando verbos e vidas

12.8.16 Foi Hoje! 0 Comentarios


Em acorde aumentado, assim como as relações que em nada se reduzem.

Se tenho certeza de alguma coisa, essa coisa são os constantes acréscimos.

Em conversa informal com uma amiga demos atenção aos verbos que estruturavam nossas relações. 

Em meio a risadas, confissões, suor, vinho seco, chocolate meio amargo... músicas. Eu nem preciso dizer no que acabou essa história.

Jogo de contradições. Conceptismos. Barroco. Cientificismos. Água dura e pedra mole, tanto fura até que bate.

“Eu que não fumo queria um cigarro eu que amo você / envelheci 10 anos ou mais nesse último mês” ... apenas acréscimos. Pouco importa o quanto envelheceu, importa que envelheceu.

Mas nossa relação – a minha com a Flor – não é estruturada por contradições, até que elas existem. O mais importante são os acréscimos, que às vezes aparecem nos decréscimos. Na fleuma que aparece nos verbos. Nos verbos contraditórios de nossa relação estão os acréscimos ... tais como:

Sair, verbo intransitivo. 

Não precisa de complemento. Expressa vontade e movimento. Quem sai, quem fica. E tu, tens vontade de mudar? Quem te convida a sair é complemento de teu verbo intransitivo.

Quem te convida – por hora indeterminado – é que tem vontade de ser completado pelos teus movimentos. 

Quem é o sujeito indeterminado, que, vez por outra te acompanha ocultamente?

Implicitamente e indeterminadamente. No infinitivo pessoal ... vamos sair?

O convite foi aceito. “Foi bonita a festa pa, fiquei contente”... O riso frouxo escorregava entre os lábios. 

O 01 foi o ponto alto do dia 01/07. 

Trinta e poucos dias se passaram e outro verbo passou a estruturar nossas vidas:

Ater-se.

Aquela festa era tua... Aquele jeito era seu... A risada era da tua piada... Aquele beijo era seu... Hoje consigo transformar o desdito em sorriso, em saudade, em querer bem... Só o que consome é a vontade de te ter do lado, ao lado do teu bem... O que corrói é ver teu querer guardado...

No teu olhar, naufrágio. No teu sorrir, aguado. E no corpo ferrugem. Estancar, despontar, não querer, esquecer, mudar de endereço! Mas como a natureza tem horror a vácuo e tudo preenche com alguma coisa, eis que mais um verbo passou a equalizar a relação... verbo no gerúndio... que o leitor conjuga como bem apraz...

Verbo é sinônimo de Vida. Só entendemos quando se acaba.

E a música de fundo tem verbo no passado e vem no tom menor...
I put a spell on you, because you’re mine” [eu enfeiticei você, porque você é minha].


Eugène Atget: Avenue des Gobelins, Paris, 1925.

por João Berimbau 

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