Pokémon Go: a excitação encapsulada
por Renato K. Silva, doutorando em ciências sociais pela
UFRN.
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De
antemão, não será objetivo deste texto apontar eventuais relações entre o jogo
eletrônico Pokémon Go com
instituições supranacionais de vigilância para fins de controle social;
tampouco associá-lo a mais um dos inúmeros braços da indústria cultura que visa a alienação dos usuários. Não temos
subsídios para direcionarmos nossa análise em tais direções. Ao invés disso,
iremos nos ater a outros elementos.
É
consenso afirmar que as civilizações são formadas a partir de um crescente, contínuo
e cambiante controle das tensões sociais entre os seres humanos. Essa é uma
tese contratualista que nos remete especialmente a três autores: Thomas Hobbes,
Freud e Norbert Elias.
Não é
de hoje que controle das tensões extrapolou o convívio social – do cotidiano –
e ganhou forma em outras configurações sociais, como, por exemplo: nos
esportes. A título de demonstração do argumento basta pensarmos no caso do
pugilismo que, desde sua origem, passou por inúmeras modificações no tocante a
um equilíbrio de forças cada vez mais justo entre as partes: a divisão por
categorias de peso, uso de luvas, proibição de golpe baixo etc.
E o
processo de racionalização das atividades humanas em direção a um justo
equilíbrio entre as partes é uma constante na cultura humana, sobretudo, nas
atividades lúdicas. Esse movimento faz parte do processo civilizador, para utilizarmos a expressão do sociólogo
judeu-alemão, Norbert Elias.
Contudo,
o processo civilizador tende a
promover a especialização, racionalização e profissionalização das atividades
humanas, como foi o caso dos esportes que, no final do século XIX, sofreram
profundas modificações em suas estruturas; tais modificações foram empreendidas
pelos ingleses.
Isto é,
os ingleses – inspirados em sua cultura do gentleman
e do fair play – inseriram
inúmeras regras nos esportes modernos. Com isso, os esportes ganharam em
equilíbrio e perderam em ludicidade. Por exemplo: a 11ª regra do futebol – o
impedimento – beneficiou a defesa que era vazada constantemente; por outro lado,
os gols ficaram cada vez mais escassos à medida em que a regra do impedimento
foi sendo alterada no decorrer do tempo: sempre visando um maior equilíbrio
entre ataque e defesa. Não custa frisarmos que este equilíbrio é sempre precário,
pois o processo civilizador não é uma
dimensão positivista e evolucionista, como bem sabemos, por exemplo, nas
tensões em relação à aplicação da lei do impedimento.
POKÉMON E O PROCESSO CIVILIZADOR
No
início dos anos 2000, constatei um certo movimento em direção ao processo civilizador sendo inserido nos desenhos/quadrinhos
mangás japoneses. Até então, os desenhos
japoneses eram pautados no conflito – luta corporal e espiritual – entre os
personagens. Por exemplo: Cavaleiros do
Zodíaco, Yu Yu Hakusho, Dragon Ball e outros.
Com o
advento de Pokémon, no final das
década de 1990, há uma nova inflexão: os combates deixaram de ser corporal e
tornam-se intermediados por um terceiro
elemento, no caso, os pokémons.
Em seguida, uma plêiade de desenhos passaram a utilizar deste expediente: um terceiro elemento vem à tona para
protagonizar a ação junto com os personagens “humanos”. Vide o caso de Sakura Cardcaptor, Beyblader, Yu-Gi-Oh! O
controle das tensões estava agora distribuído, amplamente, com o terceiro elemento.
Neste
sentido, as práticas imitativas que emulavam os conflitos entre os personagens,
por exemplo, em Cavaleiros do Zodíaco,
onde as crianças/fãs se identificavam com o cavaleiro
que nutria mais intimidade, sai de cena, e entra a abstrata pokebola e os também abstratos pokémons. Ou seja, com Pokémon surge uma nova configuração nas
brincadeiras dos fãs: há uma queda do elemento lúdico/corporal e um aumento da
prática racionalizada/quantitativa; o que importa agora é acumular o maior
número possível de pokémons.
Os anos
se passaram e o desenho ficou, digamos assim, em stand by para a geração dos anos 2000 que, a essa altura, está
chegando ou ultrapassou à casa dos 30 anos. Em junho do corrente, três empresas
[Niantic, a Nintendo e a The Pokémon Company] lançaram para as
plataformas iOS e Android, o jogo eletrônico coqueluche do momento: Pokémon Go.
O jogo
é pautado numa nova tecnologia chamada: VR
– virtual reality, ou seja, de realidade aumentada, onde há uma
interação e amálgama entre a realidade objetiva e a realidade virtual por meio
dos GPSs e câmeras dos smartphones dos usuários que, por conseguinte, podem ir
a campo em busca dos bichinhos virtuais distribuídos aleatoriamente pelo
perímetro das cidades.
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Logo marca do Pokémon Go |
Essa
dimensão que imbrica a realidade virtual com a objetiva está causando inúmeros
imbróglios e pode, eventualmente, levar os usuários a situações constrangedoras
ou de ameaça à própria vida. Por exemplo: imaginemos um jovem negro que esteja jogando Pokémon Go, ele está à caça
de pokémons em um bairro de elite,
passando inúmeras vezes no mesmo local, certamente a vida dele estará em risco.
Ou, alguém que esteja caçando pokémons num
cemitério, numa igreja, fórum, tribunal... Ou como um
jovem estadunidense que caçou um pokémon com características tóxicas chamado: Koffing, nas intersecções do Memorial do Holocausto.
Em cima
do argumento aventado até aqui, Pokémon
Go traz uma novidade em relação à sua versão televisiva: o corpo do fã
[agora também usuário] entra em cena. Desta vez, ele agora pode correr sua
cidade à procura dos pokémons. Porém,
algo ainda permanece da versão do desenho animado: a lógica da acumulação em detrimento
da atividade lúdica gratuita.
Portanto,
Pokémon Go reproduz uma lógica
inerente ao processo civilizador: aumenta-se
a racionalização do jogo pautado no acúmulo dos pontos [são 150 pokémons] e, com isso, perde-se de vista
a atividade fim da própria brincadeira que é, ao cabo, a não finalidade. Não
nos surpreenderemos se daqui a pouco surgirem versões pagas do aplicativo,
campeonatos nacionais e internacionais, profissionalização e especialização dos
usuários que passarão a se chamar algo do tipo: PokePro, Master Go, ou
coisa que o valha.
Apesar
de toda a agitação sonambúlica dos usuários correndo atrás de pokémons nas grandes e médias cidades do
mundo, um dado contínua renitente: a excitação proveniente do jogo não é senão
uma capsula de isolamento, em ambas realidades.
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