Intrauterino
Estava
tudo pronto: uísque; gelo; água tônica; a pescada frita na farinha de mandioca;
o ovo de codorna acompanhado com sal, o cinzeiro ao alcance da mão, as camisas
verde-amarela; o futebol em alta definição na tevê de 32 polegadas; o hino nacional;
os ânimos e toda a variedade de palpites para o resultado do jogo. Os convivas/torcedores
já haviam me atualizado das últimas novidades nas redes sociais a partir dos
seus ultramodernos aparelhos de celular – batendo fotografias panorâmicas e selfies compartilhadas ato contínuo na
internet.
O
céu estava aberto no início da partida, mas minutos antes o clima ficou
abafado, o vento parou de circular e as nuvens estacionaram e ganharam cores de
cobre velho lá para as bandas ao sul do céu, de onde a chuva oriunda por aqui
em Recife. Pensei, mês de julho é assim e o mau tempo não irá interferir no
resultado do jogo. Mas a ausência de Thiago Silva e Neymar, talvez. Sou um
otimista e talvez por isso eu tenha sofrido menos com o resultado final da
partida entre Brasil e Alemanha na semifinal da Copa do Mundo de 2014, pois
como diria Fernando Sabino: “o otimista só sofre uma vez”.
Entre
os convivas/torcedores que estavam comigo durante a partida encontravam-se
quatro casais. O anfitrião, dono da casa e meu amigo, um afilhado deste, e uma
menina grávida que nunca havia visto antes, mas ouvido falar nela brevemente em
uma conversa. Estava com oito meses de gravidez e dizia que sua filha iria
nascer no próximo mês, agosto, e temia a sua estrela [sina] pois ela viria ao mundo
sob o signo de leão que, segundo a mãe, é um signo muito irrequieto e dado à
desobediência. Pensei, o que os zodíacos podem fazer com a personalidade de uma
pessoa que os pais, o acaso, a sorte e toda a histeria deste século não seja
capaz? Além de vir a esse mundo com nome e sobrenome, religião, time de futebol
e mil outras imposições a criança ainda tem que ser submetida aos imperativos
do horóscopo? São muitas estrelas para uma única constelação. Malsinada antes
de levar a primeira lufada de vento deste largo mundo.
Após
o quarto gol dos alemães o narrador da tevê Globo, Galvão Bueno, narrou: “virou
passeeeeeio”.
O
uísque ficou intragável, o peixe era só espinha, o ovo de codorna gelado, as
camisas eram só amarelo. Uma idiota que acompanhava a partida, provavelmente
esposa de um dos caras que estavam vendo o jogo disse: “eu já sabia”. Ora, se
sabias porque não fostes à puta que pariu e me deixastes aqui curtindo minha
fossa sem ouvir estas besteiras, ou melhor, pega a tua premonição de última
hora e desaparece daqui, porra!
Sim,
o que vimos foi um “passeio” do futebol alemão naquela tarde macabra em Belo
Horizonte. Nossa prostração foi plena. Juca, o dono da casa tragava
sofridamente seu Carlton blend e
junto comigo, era o meu irmão na desgraça. Os demais convivas, que, a esta hora
já tinham deixado de ser torcedores para converterem-se nessa massa canalha,
tão brasileira, que adora sambar no salão benfazejo, ou como diz meu tio mais
novo: “o bom no bom é bom demais, quero ver o bom no ruim” já haviam se
refugiados em seus celulares atualizando e compartilhando toda a sorte de memes que proliferavam nas redes sociais
fazendo da seleção brasileira motivo de chacota.
Para
mim, nenhuma instituição está imune às críticas e brincadeiras, e a Seleção
brasileira não é diferente. O que me incomodou realmente foi o cinismo de
última hora e incoerente da maioria que estava ali. Ora, se o futebol lhe é
indiferente, manifeste isso desde o início e não fique fazendo você mesmo de
idiota com a camisa verde-amarelo cuja significação lhe é, agora, após o quarto
gol do adversário, irrelevante. Fica feio para você.
Enquanto
tentava fumar mais um cigarro, agora em pé na porta e vendo o final do primeiro
tempo pelo basculante, não queria soltar fumaça perto da gestante, sou educado
até na tragédia. Vi que os olhos da menina grávida começaram a marejar e ela
soltou o berreiro. Chorou copiosamente até soluçar. Marta, a dona da casa e
esposa de Juca, que havia acordado de sua infalível sesta, foi buscar uma
garapa para ela que, aos poucos, foi acalmando-se até que acabou o primeiro
tempo.
Perguntamos
por que havia chorado. Disse-nos que não sabia ao certo. Pensei, coisa de
mulher grávida com seus milhões de sentimentos revolvidos em meio ao turbilhão
desse mundo que competia em nervosismo com a sua gestação.
Acalmadas
as lágrimas da grávida, começamos a ouvir outro choro. Desta vez mais abafado,
quase gutural. Percebemos que o pranto vinha da criança dentro daquela barriga
que intrauterinamente chorava. Tomei um susto tão grande que me fez entornar em
uma só talagada o uísque com tônica, nunca havia visto e ouvido aquilo antes.
Recompus-me
do susto e pensei, como uma criatura ainda sem um pingo de consciência do que
lhe circunvizinha chora desse jeito? Será que as lágrimas dela foi em decorrência
das da mãe? Ou chora pelo estranho espírito
de época tão tacanho em que não havia mais espaço para o trauma cultural,
como ocorrera em 1950, onde em seu lugar incorporou-se um cinismo que não toma
partido e vive ao sabor das circunstâncias. Onde a tristeza deve ser
substituída por alguma tirada hilária e impertinente protagonizada em memes instantâneos nas redes sociais? Não
sei. Talvez as lágrimas intrauterinas fossem o prólogo de uma vida malsinada,
não pela ascendência social da família, futebolística, ou do horóscopo, mas por
uma época que insiste em tripudiar “monumentos” depois de serem erigidos com a
pecha cínica e arrogante do “eu já sabia”.
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