Cri-an-ção

31.8.14 Pássaro Bege 1 Comentarios


Sonso é quem dá o bote e esconde a unha.
Azougado é quem tem um cotoco no rabo.



Em todos os tempos houve sonsos e azougados.
Por vezes um indivíduo pode ser os dois,
mas sempre é um deles que prevalece no ato.


Azougado ou sonso?
Sonso ou azougado?


Só sei de uma coisa:
“Criança que fica muito tempo calada, só pode tá fazendo é Arte!”









Dedicado aos escrevinhadores do Foi Hoje. 



Imagem: (http://www.mundodastribos.com/)

1 comentários:

Intrauterino

31.8.14 Cabotino 0 Comentarios



Estava tudo pronto: uísque; gelo; água tônica; a pescada frita na farinha de mandioca; o ovo de codorna acompanhado com sal, o cinzeiro ao alcance da mão, as camisas verde-amarela; o futebol em alta definição na tevê de 32 polegadas; o hino nacional; os ânimos e toda a variedade de palpites para o resultado do jogo. Os convivas/torcedores já haviam me atualizado das últimas novidades nas redes sociais a partir dos seus ultramodernos aparelhos de celular – batendo fotografias panorâmicas e selfies compartilhadas ato contínuo na internet.

O céu estava aberto no início da partida, mas minutos antes o clima ficou abafado, o vento parou de circular e as nuvens estacionaram e ganharam cores de cobre velho lá para as bandas ao sul do céu, de onde a chuva oriunda por aqui em Recife. Pensei, mês de julho é assim e o mau tempo não irá interferir no resultado do jogo. Mas a ausência de Thiago Silva e Neymar, talvez. Sou um otimista e talvez por isso eu tenha sofrido menos com o resultado final da partida entre Brasil e Alemanha na semifinal da Copa do Mundo de 2014, pois como diria Fernando Sabino: “o otimista só sofre uma vez”.

Entre os convivas/torcedores que estavam comigo durante a partida encontravam-se quatro casais. O anfitrião, dono da casa e meu amigo, um afilhado deste, e uma menina grávida que nunca havia visto antes, mas ouvido falar nela brevemente em uma conversa. Estava com oito meses de gravidez e dizia que sua filha iria nascer no próximo mês, agosto, e temia a sua estrela [sina] pois ela viria ao mundo sob o signo de leão que, segundo a mãe, é um signo muito irrequieto e dado à desobediência. Pensei, o que os zodíacos podem fazer com a personalidade de uma pessoa que os pais, o acaso, a sorte e toda a histeria deste século não seja capaz? Além de vir a esse mundo com nome e sobrenome, religião, time de futebol e mil outras imposições a criança ainda tem que ser submetida aos imperativos do horóscopo? São muitas estrelas para uma única constelação. Malsinada antes de levar a primeira lufada de vento deste largo mundo.

Após o quarto gol dos alemães o narrador da tevê Globo, Galvão Bueno, narrou: “virou passeeeeeio”.

O uísque ficou intragável, o peixe era só espinha, o ovo de codorna gelado, as camisas eram só amarelo. Uma idiota que acompanhava a partida, provavelmente esposa de um dos caras que estavam vendo o jogo disse: “eu já sabia”. Ora, se sabias porque não fostes à puta que pariu e me deixastes aqui curtindo minha fossa sem ouvir estas besteiras, ou melhor, pega a tua premonição de última hora e desaparece daqui, porra!

Sim, o que vimos foi um “passeio” do futebol alemão naquela tarde macabra em Belo Horizonte. Nossa prostração foi plena. Juca, o dono da casa tragava sofridamente seu Carlton blend e junto comigo, era o meu irmão na desgraça. Os demais convivas, que, a esta hora já tinham deixado de ser torcedores para converterem-se nessa massa canalha, tão brasileira, que adora sambar no salão benfazejo, ou como diz meu tio mais novo: “o bom no bom é bom demais, quero ver o bom no ruim” já haviam se refugiados em seus celulares atualizando e compartilhando toda a sorte de memes que proliferavam nas redes sociais fazendo da seleção brasileira motivo de chacota.

Para mim, nenhuma instituição está imune às críticas e brincadeiras, e a Seleção brasileira não é diferente. O que me incomodou realmente foi o cinismo de última hora e incoerente da maioria que estava ali. Ora, se o futebol lhe é indiferente, manifeste isso desde o início e não fique fazendo você mesmo de idiota com a camisa verde-amarelo cuja significação lhe é, agora, após o quarto gol do adversário, irrelevante. Fica feio para você.

Enquanto tentava fumar mais um cigarro, agora em pé na porta e vendo o final do primeiro tempo pelo basculante, não queria soltar fumaça perto da gestante, sou educado até na tragédia. Vi que os olhos da menina grávida começaram a marejar e ela soltou o berreiro. Chorou copiosamente até soluçar. Marta, a dona da casa e esposa de Juca, que havia acordado de sua infalível sesta, foi buscar uma garapa para ela que, aos poucos, foi acalmando-se até que acabou o primeiro tempo.

Perguntamos por que havia chorado. Disse-nos que não sabia ao certo. Pensei, coisa de mulher grávida com seus milhões de sentimentos revolvidos em meio ao turbilhão desse mundo que competia em nervosismo com a sua gestação.

Acalmadas as lágrimas da grávida, começamos a ouvir outro choro. Desta vez mais abafado, quase gutural. Percebemos que o pranto vinha da criança dentro daquela barriga que intrauterinamente chorava. Tomei um susto tão grande que me fez entornar em uma só talagada o uísque com tônica, nunca havia visto e ouvido aquilo antes.


Recompus-me do susto e pensei, como uma criatura ainda sem um pingo de consciência do que lhe circunvizinha chora desse jeito? Será que as lágrimas dela foi em decorrência das da mãe? Ou chora pelo estranho espírito de época tão tacanho em que não havia mais espaço para o trauma cultural, como ocorrera em 1950, onde em seu lugar incorporou-se um cinismo que não toma partido e vive ao sabor das circunstâncias. Onde a tristeza deve ser substituída por alguma tirada hilária e impertinente protagonizada em memes instantâneos nas redes sociais? Não sei. Talvez as lágrimas intrauterinas fossem o prólogo de uma vida malsinada, não pela ascendência social da família, futebolística, ou do horóscopo, mas por uma época que insiste em tripudiar “monumentos” depois de serem erigidos com a pecha cínica e arrogante do “eu já sabia”.

0 comentários:

Desabafo

28.8.14 Calil Madrazzo 0 Comentarios


 Desde que perderam a minha crônica não tive mais vontade de escrever. Bem, não sei ao certo quando que isso me acometeu. Sei apenas que aconteceu e ainda está ocorrendo. Perdi. Todo o tesão de publicar neste querido blog se esvaiu. Tudo culpa de um meliante, de um indivíduo aí, ao qual depositei minhas melhores intenções. Minhas maiores esperanças.
 Estava aceso dentro de mim, antes do ocorrido, o furor de publicar muitas crônicas, que sucederiam, quase que automaticamente, as antigas, dando-as a vida curta merecida de uma crônica. Mas, infelizmente, nada disso tem ocorrido, minhas crônicas são as mesmas crônicas velhas de sempre, sem mudança, sem serem esquecidas. Hoje sonhei com minhas crônicas me perseguindo e rasgando partes da minha carne pouca. Estavam revoltadas porque não foram esquecidas por mim, por não terem se tornado mais uma crônica. E tudo isso - preciso dizer e não pouparei palavras - "Graças a você, meu grande amigo que perdeu aquilo que eu tinha de melhor".
Não é brincadeira alguma. Não é dramaturgia. Isso não é uma crônica. São meus sentimentos verdadeiros e íntimos. Naquela bendita crônica, escrevi num limiar indistinguível entre um texto jornalístico de pompa e uma discussão literária extremamente fina, traçando em paralelo a vida de um mendigo (João era seu nome). Nunca havia sentido-me tão bem com qualquer texto como me senti com aquele. Senti-me o próprio poeta do dia-a-dia. E João era minha melhor criação. Era e não é mais por estar perdido sabe Deus onde. Pobre de mim. Pobre de João que foi tratado como seu estigma, um verdadeiro mendigo.
 Como de praxe, narrei minha prosa-poética em primeira pessoa e depositei minha visão totalmente pessoal acerca do assunto decorrido (ao qual não irei decorrer mais por aqui, seria dor demais para mim). João, o mendigo da minha crônica, transmitia minha visão de mundo, meu conhecimento literário e minha alma. Perder João foi o mesmo que perder a mim, perder minha capacidade de dialogar cronicamente com os leitores. Por vezes até acho que não sei mais compreender os acontecimentos que me cercam. Foi um trauma enorme e a vida tem passado por mim despercebida. 

 Já são oito meses indo ao psicólogo e esta é a primeira vez que consigo discorrer sobre o assunto. 

Talvez seja a última.

Madrazzo

0 comentários:

Um não fac-símile político-eleitoreiro

28.8.14 Unknown 0 Comentarios


Nem mais nem menos real que qualquer outro discurso de político que se pode ouvir por aí.

Qualquer semelhança estreita com algum personagem factual, é, no entanto, um triste acidente, do qual, desde já, nós não nos desculpamos.



— Olha, já falei com os meninos do rap, lá da comunidade. Esse ano tem jingle novo, veja que maravilha! Eles vão rimar "melhora" com "sem demora" no refrão, ficou uma belezura, só você vendo. Semana que vem o carro já começa a rodar tocando a música - só essa, claro, pra massa gravar bem o número da campanha. Fechei com esse pessoal de novo sabe o porquê? Poxa, é até uma questão de humanidade da minha parte! Campanha só tem a cada quatro anos, é uma oportunidade rara que eles tem de ganhar um dinheiro decente, sem ser aquela miséria do edital de cultura da prefeitura.

— Outra coisa, da próxima vez que marcar um debate avisa que esse assunto da troca de partidos não entra. Dá a desculpa de que eu quero discutir proposta, programa de governo. Só vou com essa condição, não vou ficar recebendo patada daquele pessoal babaca. Desde que eu troquei o PD (Partido Degenerado) pelo PN (Partido do Novo) que eles ficam dizendo que eu sou apaixonado pelo poder. Esses infelizes, energúmenos, só aplaudem quem se estropia, quem fica pelo caminho. Só se pode fazer alguma coisa lá, entende?!, lá! Aqui é perca de tempo, fidelidade ideológica e blá blá blá...

— Também já fechei o com sindicato, a questão do financiamento. Tudo certo, sim, tudo ok. Também, pudera,né? Depois de tudo que eu fiz por eles o mínimo que eu podia receber em troca era esse apoizinho, um banner, um santinho, essas coisas, camiseta... e voto, claro. Até porque, questão de dinheiro, tubarão grande é aquele pessoal da empreiteira. Ali, sim, a parceira é forte. Depois é só dar apoio a umas construções, ceder dois ou três terrenos ociosos, tem mistério não. A gente tem que jogar fácil.

— Agora o que não dá é aquele jornalistazinho de merda ficar o tempo todo batendo na tecla do jatinho. Tá demais! Se futebol é parte da cultura do povo, e eu sou parte do povo, nenhum absurdo em eu pegar um aviãozinho do estado pra ver um jogo. Primeiro que o que foi gasto foi uma merreca, e depois que não fui só eu, minhas filhas e uns amigos também foram beneficiados. Pode até faltar ética nesse raciocínio aí, é verdade, mas não falta lógica, portanto ele é perfeitamente plausível. Mas eu não esquento não, no final das contas o slogan vai pegar, e eu vou continuar firme na luta... na minha primeiro, né? Pelo resto a gente vê o que é faz, devagarinho, com calma.



0 comentários:

Bernadette

22.8.14 Pássaro Bege 0 Comentarios


Porque só agora fui me lembrar de Bernadette...

Bernadette tinha um quê em seus olhos que me lembrava brasa. “Toda vermelha”, me vem logo a imagem dela bem fresquinha na cuca. Mas, cada vez que eu tento pensar o todo de Bernadette, algo se confunde em minha cognição. Bernadette pra mim é mais um fragmento que alguma coisa homogênea ou quadrada. A memória de Bernadette é minha, por força de minha busca. Bernadette me ressurgiu hoje como um vento que sopra numa quinta à noite. 

Era carmim, tenho certeza! Seus lábios tinham cor de carmim!


Não era sempre que ela ia lá em casa. Pelo menos, a presença dela que guardo em mim era sempre de sextas-feiras. Algo deixava no ar a impressão de que minha mãe gostava bastante de Bernadette, e que também gostava bastante dela meu pai. Seria uma suruba o que rolava quando Bernadette ia lá em casa? Será que o cheiro de que me lembro agora, era cheiro de sarro? Eita! E tinha toda aquela energia fogosa no ar também, eu lembro... Será que de fato Bernadete era sexo? O que é essa imagem que ressurge em mim como um arquétipo da beleza? 


Só soube recentemente que Bernadette estava na cidade. Hoje ela já passa dos 50 anos, aparenta menos. Fui na casa dela e perguntei quando ela me recebeu:

- Dona Bernadette, a senhora se lembra de mim?

- Dona! porque me tomas!? Só sou dona daquilo que quero. Quem é você e o que quer aqui?

- Posso chamá-la de Bernadette, então?

- Agora consegui ouvir tua voz, conheço você de algum lugar! Voz menina de criança doce que conheci ainda quando bem novinho, acertei, moço?!

- Acertou! Mas me diga quem é você?

- Eu vestia vermelho, lábios cor de carmim?

- Isso! Do mesmo jeito que está agora!

- Tenho vários nomes, moço! Entre eles, Bernadette. Você quer brindar comigo? 

0 comentários:

Boris, la cucaracha del Cais de Santa Rita I

20.8.14 Cabotino 0 Comentarios



0 comentários:

Versos brancos

19.8.14 Cabotino 0 Comentarios



Rimas não trazem solução
tampouco os versos brancos.
E estes que vos escrevo,
são tão brancos, diria até, anêmicos,
mas mesmo assim doam-se gratuitamente
neste mundo vampiro em um hemocentro.

Aos convalescidos prostrados e desamparados em seus leitos:
perdoem-me se meus versos não chegaram a contento
para tentar aliviar vossas desgraças.
Peço desculpas às mulheres que suspiram por amor,
nesse mundo tão misógino,
solitárias na hora de dormir e
meus versos não fizeram as vezes da companhia ausente.
Perdoem-me os suicidas que na hora de redigirem
suas cartas meus versos não vieram à luz.

Desculpem-me os órfãos de pais; de países; de deuses; de amor e de ódio.
A todos aqueles destituídos de sorte e proteína animal,
vocês sabem de quem estou falando – esse poema não têm a pretensão de ser panfletário, nem força para isso ele tem.
A todos os condenados da Terra
peço-vos perdão por meus versos.
Eles tentaram, mas os desgraçados
são tantos e este mundo tão sedento de sangue,
que eles empalideceram de medo e covardia.








0 comentários:

O inconsciente do olhar VI [ou Ave Maria da Guararapes]

12.8.14 Cabotino 0 Comentarios



18h em Recife e toda a cidade voando para rezar a sua “Ave Maria”. Seja ela uma cerveja após o expediente, rever um amigo ou amiga, uma aula, uma sopa com pão, um cinema, o shopping, uma conta para pagar, o coletivo, o metrô, uma transa casual, um dinheiro para receber, um problema a solucionar que gerará mais um milhão de problemas, uma Coca-Cola morna, um “baseado” na Aurora ou no Parque Treze de Maio etecetera e tal.

Em meio ao etecetera e tal lá estava eu tomando um cafezinho de cinquenta centavos acompanhado do indefectível cigarro Hollywood que aquela altura se encontrava em Las Vegas, ou seja, no meio do king size de nicotina em bastão. Ali sobre o vão livre esquerdo da Avenida Guararapes, no coração das trevas da “Venérea brasileira”, quando fui surpreendido por uma beleza singular. Logo ali, embaixo de toneladas de concreto, ferro e vidro em prédios que misturavam, cafonamente, a arquitetura funcional de Le Corbusier com seu vão livre, com os balangandãs da Belle Époque arquitetônica em um amálgama kitsch, tão recifense, a porra da sensibilidade não me largava? Logo ali, com um café vagabundo na mão esquerda e um cigarro de filtro amarelo na direita?

Lá vinha ela lá depois da Agência do Banco do Brasil. Parece até que os transeuntes não satisfeitos de lhe darem passagem jogaram holofotes no vão livre, e estes iluminaram mais do que cegaram o desfile dela, geralmente é o contrário, mas ali o lume foi providencial e todas as minhas sinapses foram acesas pelos efeitos da nicotina e da cafeína que, ajudaram a clarear aquela “Ave Maria do caos urbano”. E eu como um bom católico apostólico da “Venérea brasileira” fixei toda a minha malícia de canalha amador da zona sul e cerrei os olhos e os mirei nela pois, como reza a cartilha: olhar não arranca pedaço nem engravida.

Nossa, o que eu não daria para segurar aquele “andor” guarnecido com um manto/vestido azul estampado de flores, as alças, duas tirinhas de tecido delicadamente amarrados rente à nuca, ali onde os cabelos esconde sovinamente o calor e o olor dos furtivos acólitos apressados em adorar aquele corpo branco. Tão branco que o sol não bronzeia com inveja das formas, mas sim o queima. E lá vinha ela toda queimada de – sol, sal, olhares e cantadas –, balançando o corpanzil de mulher ancha – quartuda – boa parideira como diria minha avó. Um corpo infenso ao Espírito Santo e ao carpinteiro José, mas não ao meu olhar. No vão livre da Guararapes a “Ave Maria do sexy-appeal” vinha requebrando em minha direção. Os seios pequenos apontando para o relógio dos Correios; as ancas jogavam meu olhar para à esquerda e para à direita como se fossem um cuco e o passarinho afim de sair para dar a hora – Cuco! Cuco! Cuco! –, suas pernas levemente arqueadas para dentro eram o compasso que dava régua ao meu olhar e esquadrinhava aquele vão tão vão sem ela por ali.


Passou por mim como quem passa por um espectro, mas observei o seu olhar de soslaio em minha direção, um olhar complacente como todas as “santas” volvem para seus miseráveis fieis como quem diz: “Me adore sempre, que um dia, quem sabe, posso te fazer um milagre, tenha fé homem de pouca fé”. E foi embora deixando este incréu à procura de uma lixeira para jogar o copo e a guimba do cigarro, mas eu queria mesmo era jogar a lembrança daquela imagem no lixo, como não posso, jogo para vocês. Ave Maria!

0 comentários:

Morte em vida severina ou O morto figurado no imortal literal

12.8.14 Foi Hoje! 0 Comentarios


Não podendo mais haver, morreu na 
3ª pessoa do singular, deixando de existir em vida e tornando-se o primeiro imortal, posto que ao morrer em vida - como só se morre uma vez - já não poderia mais morrer.
Morreu em vida quando foi deixando aos poucos seus sonhos se esvaírem, tal qual areia da praia escorrendo por entre os dedos, no mar raso dos seus pensamentos profundos.

Morreu em vida quando se deu conta que a única abstração que ainda povoava sua mente estava nos versos da poesia concreta de suas sinapses erráticas.
Morreu em vida quando seu eu se fundiu à função que ocupava na repartição, quando da publicação de sua imortalidade no diário oficial de 23 de abril de 1979.

0 comentários:

Presente do tempo

11.8.14 Unknown 0 Comentarios


Na pintura de Francisco de Goya, Saturno,
deus do tempo, aparece devorando
seu filho
Rapaz, eu estou sentido a morte à espreita. Ela dorme ao lado do meu quarto, e trabalha de maneira incansável, constante e silenciosa. A morte anda me observando, me acena de longe e volta a se esconder, talvez com a intenção de que eu me sinta um privilegiado, um escolhido – ufa, dessa eu escapei. A morte estava aqui perto, ninava uma pessoa, dava seu fim em migalhas, a conta-gotas, com a paciência de um ourives. Seu tempo demora a chegar, mas quando chega, ah, ela não se apressa. Sabe com uma precisão cirúrgica que esse é o momento certo, o momento ideal, o seu momento - aquele que lhe foi reservado e prometido desde o início, desde o pecado original. Então ela se apossa de uma vida vagarosamente, como um crepúsculo ou alvorecer, ou simplesmente como quem lança mão de um lençol para proteger o corpo do frio durante o sono da noite. A morte, talvez nossa única e inabalável certeza, é a nossa maior angústia. E angustia porque é calma; amedronta porque é familiar. A morte, esse imenso problema dos vivos, olha com certo pesar para algumas vaidades e idiossincrasias, pois ela sabe que as corroerá com algum grau de cinismo um dia. Um dia, quando ela vier sob a forma de alívio ou de dor e apertar o botão de desligar da consciência. Aí, sim, teremos recebido do tempo, ao mesmo tempo pai e algoz, o seu mais pujante e sincero presente.

0 comentários:

O inconsciente do olhar V

9.8.14 Cabotino 0 Comentarios



O Tempo é implacável e não há nada que consiga parar a sua engrenagem inexorável. Afora as frases feitas e a metáfora mecânica para essa coisa inatingível que nos ataca em cheio com a sucessão do sol, o Tempo. Sabemos que ele escorre para todos nós, mas com as mulheres ele tem um grau de perversidade que chega à requintes de crueldade, como um serial killer que não cansa de mutilar suas vítimas antes de despachá-las para a morte, o Tempo subtrai do corpo feminino a rigidez dos membros, à delicadeza das curvas, à maciez da pele, às linhas hermeticamente desenhadas do rosto, os matizes dos cabelos etc., e, licenciosamente, não cessa a produção do desejo – diminui, mas o dínamo que aciona a catapulta do desejo de desejar e, acima de tudo, de ser desejada, não para nunca.

Sem mais divagações sobre esta instância tão complexa e hedionda que é o Tempo. Narrarei uma história tão prosaica quanto à translação do sol sobre nossos corpos bípedes e burgueses. Vem comigo.
***
No coletivo que me levava à Estação de Metrô de Cavaleiro, no ponto em que apanhei o ônibus, subiu comigo mais algumas pessoas, entre elas: uma mulher de meia idade, uma balzaquiana na Idade da Loba, ou seja, àquela idade que se impõe à mulher de maneira que ainda percebemos a primavera dos áureos anos de juventude aproximando-se do ocaso outonal. Era negra cabocla, pois tinha cabelos lisos, nariz aquilino, lábios finos, cintura em forma de pilão e andava no corredor do ônibus com a desenvoltura de quem anda em uma calçada livre, balançando as ancas tão graciosamente mesmo levando uma criança nos braços. Vestia uma camisa cinza colada ao abdômen magro, uma bermuda jeans, sandálias de dedo e óculos escuros grandes e arredondados, formato olhos de abelha. Em resumo, como se diz vulgarmente: uma coroa gostosa. Sentou-se na janela com a criança do lado do sol. Percebia-se que não estava acostumada a pegar aquela linha de ônibus, haja vista, estar ainda vazio e ela ter sentado justamente do lado do sol. Da criança que ia aos seus braços não guardo muitos pormenores, tendo em vista que minha atenção ficou amplamente fixada em sua guardiã.

Com os que narrei acima, subiu também um jovem, aparentando uns vinte e poucos anos. Moreno, cabelos à moda militar, rosto escanhoado, maxilar proeminente, semblante fechado – provavelmente condizente com sua profissão de segurança ou de militar, ou quem sabe funcionário em alguma loja de atacado ou varejista. Óculos escuros, calça jeans, camisa de botão com estampa xadrez, tênis e uma mochila nas costas. Quando passou pela mulher com a criança no colo fez uma mesura e resolveu sentar ao seu lado, ao lado do sol.

Da cadeira em que estava o ângulo fazia uma hipotenusa e, dava para espreitar a ação dos três de uma maneira não tão invasiva e bisbilhoteira. E foi o que fiz, para disfarçar, saquei um livro de minha mochila e observei o desenrolar lá do outro lado.


Ela fez uma interjeição de espanto: “Menino, como tu cresceu! Me lembro de tu e da tua irmã bem pequenos. Nossa, como o tempo passa, viu” e indagou a ele “Como vai a família, tua mãe, teu pai e tua irmã?”, paralelo a resposta do rapaz, ela botou a criança do lado esquerdo de sua perna, para abrir melhor o ângulo da conversa e pôs a mecha renitente do cabelo por trás da orelha direita: “Vão bem, obrigado. Eu vou agora para o trabalho, minha irmã está fazendo curso técnico de enfermagem e já está estagiando. Painho continua com o táxi e Mainha tá em casa fazendo as coisas, um pouco triste pela morte de tia Vilma, mas a vida continua, não é?” respondeu ele. “Pois é, continua mesmo. Eu não conheci essa tua tia Vilma. Ela morava por lá também?” perguntou a ele. “Não, não. Ela morava em Vitória de Santo Antão. E esse menino aí, qual é o nome dele?” e fez uma gracinha para a criança que não gostou do mimo. “Ah, esse daqui é Gabriel, meu neto. Tem três anos e é inteligente que só, puxou a avó (risos, e uma ruga que não havia percebido saltou do canto de sua boca, provavelmente da idade, mas acredito que foi pela revelação da identidade da criança, algo que invariavelmente, denuncia o tempo de uma forma mais gritante). “Ele é filho do meu menino mais velho, Jean. Tu se lembra dele?” perguntou ela. “Um pouco, não muito. Acho que quando vocês saíram do bairro nós éramos bem pequenos, por isso, se eu o ver eu não o reconheço”. Neste instante o ônibus já pegava a curva à esquerda do Colégio da Assembleia de Deus para entrar no Terminal Integrado da Estação quando ele já se levantou para ser um dos primeiros a descer do coletivo, talvez crente de que o metrô o estivesse esperando na plataforma. A juventude é cruel em sua impaciência, parece até uma gaiola em busca do pássaro azul. Ela vendo a sua pressa se despediu dizendo: “Manda um abraço para tua mãe, teu pai e tua irmã. E diz a tua mãe que em breve vou lá fazer uma visita a ela”. E ele retrucou “Tá certo, mando sim. Tchau e até mais. Tchau, Gabriel”. O menino ficou indiferente a saudação. As portas do ônibus abriram e ele saiu em disparada. Percebi o desgaste na compleição dela, um certo abatimento, talvez cansaço pelo sol que lhe fustigou naquele breve trajeto. Talvez a excitação da conversa e das reminiscências, não sei. Vi apenas que uma vez na Estação, ela pôs o menino no chão e foi caminhando lentamente, sem a graça e a desenvoltura que presenciei no corredor do coletivo. Ela subia à rampa para a plataforma puxando Gabriel com a mão direita. O fardo do Tempo não era o seu neto, tampouco o atabalhoamento juvenil do rapaz em sua pressa rude para lugar nenhum, talvez o pejo do Tempo fosse a eterna inadequação do organismo que subtrai-se com o correr dos dias e, do desejo que é adicionado neste corpo cada vez mais facilmente ofegante a subir às plataformas de metrô vida afora.

0 comentários:

O inconsciente do olhar IV

7.8.14 Cabotino 0 Comentarios


Leia este texto ouvindo,
 Can’t help falling in love, na voz de Elvis.

Antropologicamente acredito que o brasileiro é povo mais dissolvente do mundo no que se refere à manifestação de seus afetos em público. Para conferir essa tese basta você ir a algum terminal rodoviário, aeroporto ou cais onde algum brasileiro irá embarcar ou desembarcar. O nível de entrega e de demonstração de afeto para quem vai ou está chegando é obscenamente descarado. Há mais de quinhentos anos o Senhor P. V. de Caminha sentenciara, em trecho, ao Rei de Portugal: “eles não tem pudor em mostrar suas vergonhas”. Hoje Senhor Caminha lhe completo: nem pudor de mostrar e demostrar vergonhas e sentimentos publicamente.

A título de exemplo, vou narrar uma história que presenciei em um dos locais mais corriqueiros de minha cidade, a Estação Central de metrô do Recife, local de alto fluxo de pessoas diariamente. Uma cena que passou despercebida por muita gente, não por mim que gosta do banal e do prosaico pois, as coisas “rasteiras” me celestam.
***
Era um fim de tarde de julho no Recife e a brisa marítima misturada ao cheiro de chuva recém caída mais as emanações ocre do mangue, tão típicas na cidade, vinham tepidamente ao meu encontro quando fui impelido fora do vagão com seu ar-condicionado compartilhado pela multidão apressada a ganhar à plataforma de desembarque.

Vinha descendo à leve inclinação da plataforma prestando atenção na multidão que ora vinha ao meu encontro ávida para pegar um lugar nos assentos do vagão que acabara de sair, ora passando por mim voando baixo para pegar lugares nos ônibus do terminal integrado contíguo à Estação Central – todos nós corremos para pegar os melhores lugares, seja na janela do coletivo, na folha de pagamento da empresa, no coração da pessoa amada, mas no final, nossa última viagem será deitada e lenta.

Deambulava nestes pensamentos quando vi um casal debaixo de um feixe de luz que vinha da claraboia da Estação, cujo telhado de matéria plástica coadunava-se com a leitosa luz do lusco-fusco deitando àquela hora sob o saguão.

Ele mais alto do que ela, de camiseta regata, bermuda e sandálias de dedo.

Ela de calça jeans, camisa escura, salto alto e segurando uma mala de viagem, daquelas que puxamos às alças e deslizamos suas rodinhas pelos quatro cantos do mundo.

Ele moreno como toda a gente desse país que se não leva a melanina na pele, leva-a na alma.

Ela baixinha e gordinha com o pescoço inclinado para cima beijava o seu amado de uma forma lenta e cerimoniosa. Agradecendo da forma mais terna possível em público.

Ele acompanhava a despedida dela e seu beijo, se traduzido, diria: “Pode ir que estarei aqui lhe esperando, meu amor. Encontraras-me do jeito que deixastes. O tanque de combustível da saudade secará no teu regresso enquanto o do amor queimará ainda por um bom tempo enquanto estivermos por essa estrada que construímos e palmilhamos juntos”.

Ela, seu pudéssemos traduzir os seus beijos road movie, diria: “Eu voltarei para nossa casa às margens da estrada, meu amor. Sei que voltarei porque seu afeto ‘são as rodinhas dessa mala’ e com ele todo o fardo sem alça da vida e, seu peso serão aliviados pelo seu engenhoso expediente tão avesso aos ‘atritos’ da estrada e da saudade”.

Ambos contrastavam com o torvelinho que lhes circundavam em uma indiferença mútua – a Cidade escorraça o Amor e vice-versa. Mas, naquele instante, a Cidade deu uma trégua ao Amor que frevou na cara da multidão mostrando e demonstrando publicamente suas vergonhas.




0 comentários:

Sobre as palavras

6.8.14 Unknown 0 Comentarios


Não faço da minha profissão uma ciência de explicar as palavras.
As palavras que por acaso vejas aqui no poema nada mais são que as cascas da última laranja cravo que eu chupei.
Não faça de sua profissão uma ciência das palavras.
Não vomite falsas exegeses sobre os sentidos que elas carregam, não há ali sentidos estanques.
Use a palavra como bem entender. Só não as amarre em uma camisa de força feita de outras palavras que já nascem mortas.
Nascem mortas porque explicam muito e dizem pouco.
Nascem mortas porque você as fechou em dilemas, em teses e em negociatas.



0 comentários: