Em busca do verdadeiro Chile

27.12.16 Unknown 1 Comentarios


Tenho descoberto paulatinamente, e com isso cresce gradativamente o desconsolo que assola o meu peito, que o verdadeiro Chile não é uma coisa assim tão fácil de localizar: não é um elemento corriqueiro no qual se esbarra em qualquer esquina. Notícia desanimadora para turistas, ainda mais para aqueles que vêm em busca de aventuras, mas que precisa ser dada: comprar passagens e reservar hospedagem, junto com uma mala devidamente munida de um par de casacos, não é garantia de que se vai encontrar o Chile. Pela capital Santiago, no máximo um arremede de Chile, um Chile obtuso, estranhamente paródia de si mesmo. Dias atrás, na rua de bares de Santiago, conversava com um chileno e depositei uma confissão sincera de visitante brasileiro: no Brasil se come melhor do que no Chile, em termos de variedade e abundância gastronômica. Meu ouvinte não se agradou com o que ouviu, recuou um pouco, apontou para o meio da rua e disse: — mais isso, isso aqui, não é o Chile! O Chile é outra coisa, muito maior do que você pode alcançar. E continuou:  se eu for a São Paulo, sentar num bar, comer e falar, estarei conhecendo o Brasil? Não. O Brasil é maior que isso. Considerei a linha de argumentação um tanto quanto frágil, por isso trepliquei:  Mas você, por exemplo, que é chileno e mora há quatro anos em Montevidéu (sim, meu ouvinte estava nessas condições: chileno, mas residente no Uruguai), veio passar as festas de fim de ano em Santiago para matar a saudade dos familiares e das pessoas próximas, e marcou para beber com um amigo de longa data aonde? Pois é, bem aqui onde estou. Então, como isso nao é o Chile? Eis, então, que ele enunciou o que se tornaria o tormento deste cronista:  sim, é o Chile, mas não o verdadeiro Chile. O verdadeiro Chile é o Chile das pessoas normais, que estão longe da movimentação turística. Aceitei a afirmação categórica e me recolhi. No dia seguinte  não sem antes me certificar de que estaria distante de parques, museus, bares, restaurantes ou qualquer outra coisa que pudesse atrair essa praga chamada turista — fui a um pequeno mercado longe do centro de Santiago. Tinha a expectativa de, ali sim, longe da cidade lustrada para visitantes, encontrar nem que fosse uma nesga de originalidade chilena. Sento, peço um terremoto (bebida genuinamente local) e começo a observar. Como a cara de extranjero brasileño é inconfundível, logo uma pessoa se aproxima. Iniciamos uma conversa, e lá pelas tantas, quando senti abertura, perguntei se onde estávamos era o verdadeiro Chile, o Chile original. Quê? Não, ali não. O chile autêntico não está em Santiago e nem nos seus arredores. Só com, no mínimo, 150 km de distância de Santiago é que se pode começar a enxerga um pouco desse Chile primevo, pulsante. Com essa informação recebi, na verdade, um alento. Como vou passar o fim de ano numa praia que fica a aproxidamente 110 km de Santiago, pensei ser possível encontrar um pedacinho do verdadeiro Chile ali por uma zona fronteiriça, de contacto entre os dois universos. Ao chegar em casa, relato ao amigo do bar, que a essa altura já havia me encontrado em duas ou três redes sociais, a conversa do mercado. E finalizei:  quem sabe eu não possa lá encontrar o verdadeiro Chile, com comida muy rica e pessoas autênticas? Para o meu desapontamento, ele foi taxativo: amigo, sinto lhe informar, mas o verdadeiro Chile, o Chile de que te falei, está muito mais distante: só pode ser encontrado com uma distância mínima de 500km de Santiago: a partir de Concepción, ao sul, por exemplo. Lamentável. Para um turista de fim de ano, 500km não cabe nem no tempo e nem orçamento. O objetivo ia ficando acada vez mais distante. Até agora não tinha encontrado o verdadeiro Chile, mas a busca me rendeu algumas informações: o verdadeiro Chile não está, jamais, em Santiago; não está numa rua de bares; não está onde os turistas podem chegar; e se, ao sul e ao norte, deve-se ter uma distânca mínima de 500 km de Santiago para ser surpreendido com a magia do Chile original, metade do Chile não é realmente Chile. Diante das circunstâncias, me resignei e desisti. Vou ficar com o Chile bastardo mesmo, é o que me cabe  pensei. No entanto, a vida sempre se encarrega de dar umas voltas e, assim, permite algumas oportunidades que, se buscadas voluntariamente, dificilmente aconteceriam. Dois dias depois, estou num feirinha de artesanato, comprando bugigangas para presentear a família, quando recebo uma informação interessantíssima do vendedor: ele só iria a aceitar a minha pechincha porque, sendo de fora, deveria partir de Santiago no dia posterior. Queria vender o máximo que pudesse. E se não for incomodo perguntar, de onde você é? De Concepción. Nossa! Uma chance rara, não poderia desperdiçá-la. Depois das tratativas e dos pagamentos pela mercadoria, não resisti e perguntei: amigo, por acaso em Concepción poderia eu encontrar um Chile mais autêntico e verdadeiro, esse que não é acessível aos olhos enviesados dos turistas? Um Chile original, quase puro, diria eu. Poderia ou não? Para minha decepção, o meu interleocutor apenas disse: — amigo, não sei ni mierda de Chile autêntico. Não sei do que você está falando. Fui tomado por um misto de tristeza e alívio. Mas, pelo que se depreende das palavras do comerciante, parece que projetaram um Chile verdadeiro para muito distante e esqueceram de avisar os seus habitantes. Vou continuar minha caçada por essa figurinha rara e, encontrando algo, lhes trago aqui. Abraços!

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Eu escolhi reificar

22.12.16 Cabotino 0 Comentarios


Imagina uma compositora-cineasta chegando à casa dos trinta, em pleno processo criativo. Ela é branca, inteligente, hétero, esbelta, rica, mora na zona sul... enfim, possui todos os capitais - econômico e simbólico - à sua disposição. Essa artista decide produzir uma música-clipe que pretende radicalizar a linguagem de sua matéria-prima, e advinha o que ela escolhe: intercambiar imagens de nu frontal com uma música insossa repleta de oxítonas tarimbadas.

Eis o padrão artístico da tal compositora-cineasta: compor uma canção-clipe nos moldes de sua biografia – linear, modorrenta, tonal, segura, enquadrada e com algumas miçangas ideológicas, evidentemente, pré-fabricadas.

O furor causado pelo clipe-música “Eu escolhi você” só poderia ganhar volume numa sociedade como a brasileira em que, imagens de nu frontal tornaram-se sinônimos de crítica à ordem de coisas instituídas. O debate cultural brasileiro tornou-se, nestes dias, uma nota-de-rodapé de genitálias desentumecidas. Lamentável. 


Não tem como não bocejar ao ver e ouvir “Eu escolhi você”. A quantidade de nus burocráticos saltam aos olhos: genitálias sem nenhuma excitação e sem nenhuma heterogeneidade no tocante às cores. E o curioso é que o aparelho vibrador, parábola derradeiramente clichê que nos remete ao título da canção, é a única coisa que pulsa, que tem vida em todo clipe-canção.

Mas ao cabo, o clipe-canção consegue atingir seu objetivo: reificar as genitálias e animar “consolos”. Critica-se a reificação que o outro nos empreende, nos relacionamentos, apelando para a própria reificação do outro como saída final. E assim fecha-se o circuito binário da objetificação do outro. 

E esse circuito é caro à cena "indie" brasileira pois a alteridade - um dos pilares centrais da canção produzida no Brasil - abre espaço para um hedonismo acachapante. E o hedonismo é a mais pura tradução da reificação de tudo. 
 

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A República das Vidraças

15.12.16 Cabotino 0 Comentarios



Um espectro ronda o Brasil: a luta de classes. 

A República filha de Olinda estilhaçou-se na do Galeão e deu um tiro nas têmporas de Vargas. A República de Curitiba e seus dândis de vade-mécum moral em riste rezam sob a cartilha: Deus, pátria, família e concurso público.

“Quando a gente não pode fazer mais nada a gente avacalha”.

A República da Cobra foi inventada sob as arcádias do Largo de São Francisco ao som de Paris Belfort.  9 de Julho de 1932 tornou-se 31 de agosto de 2016. As cadelas que pariram os “camisas verdes” ainda estão no cio e dão aula de Direito Constitucional. A jararaca que já foi pau de arara insinua-se entre os meandros gráficos do Datafolha – pau de arara não serve pra poleiro de tucano.

“Itaú, feito pra você... o único banco 36h”. 

Para a FIESP o horário do almoço deve ser flexibilizado. Trabalhador que é trabalhador usa fraldão para não sair da linha de montagem. Quem vai pagar o pato? É a República do Itaim-Bibi – 36h!

Berro de uma geração: hipotecaram meu futuro em troca de um spread bancário.

“O que é roubar um banco comparado a fundar um banco?”.



Os coturnos saíram das casernas para apoiar o salvo-conduto adquirido por uma draconiana Reforma Previdenciária. Farinha pouca? meu pirão primeiro! Pirão em verde oliva.

Meio século trabalhando. Nunca um gerúndio foi tão longo. Nunca um verbo substantivado – trabalhando – foi tão longo...

Recife, 13 de dezembro de 2016. Av. Conde da Boa Vista. 18h. Miasmas. Mesmo sobre uma lua cheia brilhando como calda de pavão, o céu era de chumbo no início da noite, nuvens carregadas – uma noite verde olivada. 

Estranha matemática: Artigo 5 virou AI-5. 

Geração AI-5... geração PEC-55.

O pior verão dos últimos 60 anos vem em nossa direção dizem os metereologistas, os babarolixás e os analistas políticos. 

“E a cidade vai tremer e a galera vai zoar”.

Calor do carai! 


“O terceiro mundo vai explodir, quem tiver de sapatos não sobra, não pode sobrar!”.

Um calor de rachar catedrais. Diria mais: estranhas catedrais erigidas por nosso maior pilar republicano, composto por ferro e concreto armado: as empreiteiras. Agora que enxergamos um pouco de suas fundações percebemos o material: papel moeda para financiar palácios e carros de placa de bronze.

Juca é corruptela de Caju e há uma nódoa em todo o país do tamanho do PMDB – 0 partido do homem cordial

PM=DB.



A “peda” de crack da intelligentsia brasileira: homem cordial + patrimonialismo = Estado corrupto. 

"Braço forte, mão amiga".

Não há silêncio quando se rompe a legitimidade. Não há pacificação quando há vácuo institucional. Não há pacto quando trapaceiam a regra do jogo. Não há esperança quando um coturno esmaga o rosto de um estudante secundarista. Não alento quando a política de um país torna-se nota-de-rodapé de meia dúzia de bancários da Av. Paulista.


Quem nasceu para ser pedra nunca será vidraça. 


Em maio, sobre o tapete vermelho de Cannes, a esquerda glamourizada, com singelas folhas de papel em A4, alertava: La Vue é Aquarius

O Plano Diretor das cidades brasileiras tem um nome: gentrificação. 

República Federativa dos Estados Unidos do Brasil.

Tráfego de influência, crime de responsabilidade, anistia, caixa dois, Farol da Barra, micareta institucional, pedaladas fiscais, grampo, Itamaraty, sufistas do lulismo, constituição cidadã, Ministério da Cultura, neoliberalismo, cleptocracia, quarenta e oito anos do AI-5, “Ame ou deixe-o”, PEC-55, jornadas de junho, MBL, MPL, Vargas, FHC, FMI, Roosevelt, MPF, walfare-state, FIESP/STF, o poder emana do povo quando há legitimidade; quando não há ele exala, Bolsonaro, plutocracia, 54 milhões de votos, Pré-Sal, delações, condução coercitiva, eleição indireta, Trump-Temer, golpe, democracia, partido político, Proja, ABIN, pós-verdade, neopentecostais, a História parece que parou...

Segredo: fascismo de esquerda e de direta são iguais e vice-versa. 

“Nós faremos que você nunca esqueça” que é sim pelos 20 centavos, que é sim pelos 20 anos, que é sim por uma geração.

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Bestificados

31.8.16 Cabotino 0 Comentarios


Apesar dos ventos frios do último dia de agosto de 2016, era uma tarde de quarta-feira como qualquer outra: dona Ritinha, com suas varizes nas pernas, levou e trouxe sofridamente os netos da escola. Gerson e seus primos jogavam barrinha na rua, dez minutos ou dois gols. Seu Valdomiro foi comprar alpiste. Dona Noca dormia defronte à tevê após o almoço, enquanto uma baba fria e elástica escorria de sua boca, indiferente ao Vale a pena ver de novo. Janaína preparava um currículo vitae no word para enviá-lo, no dia seguinte, a uma das sucursais do Walmart. Elaine, curtindo seu último dia de férias, assistia mais um episódio de Girls no Netflix. Maurício acordou às 16h e vendo que encontrava-se só em casa, a mulher tinha ido à manicure e levou o filho, aproveitou para se masturbar assistindo o RedTube. Seu Bosco foi fazer sua fezinha no jogo do bicho, jogou R$ 2 em sua milhar: 5641. Dona Jaidete pôs a massa do cuscuz para descansar, gosta dele bem fofinho, por isso deixa a massa descansando um par de horas. Dinho foi ver a movimentação da turma do dominó lá no terminal de ônibus enquanto dava tragadas profundas em seu Derby Vermelho. Dico contava as moedas amealhadas, junto com seus parceiros do “sindicato”, para comprar mais um super-latão de Pitú, era o segundo do dia. Gleisson abriu o salão após sua indefectível sesta, não havia ninguém esperando para cortar o cabelo, automaticamente, sintonizou uma FM qualquer e a voz de Wesley Safadão tomou conta do recinto. Pascoal, o vira-latas de Seu Tenório, lambia o rosto do dono que encontrava-se morto, ataque cardíaco, há aproximadamente três horas, enquanto dormia. Pascoal foi a única criatura naquela tarde que sentiu que alguma coisa mudou, a partir daquele momento, em sua vida. Pascoal grunhiu de tristeza e seu lamento ecoou no vácuo de uma nação totalmente bestificada. 

por Renato Ribalta

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Recife: capital da “egípcia”

31.8.16 Mademoiselle Fifi 0 Comentarios


“Essa é a mistura do Brasil com o Egito /Tem que ter charme pra dançar bonito”

Antes de mais nada “egípcia” é o nome daquele movimento de virar a cara, para não cumprimentar uma pessoa, que alguém dá, para não falar ou acenar para outrem.

Eu sei que é chato levar uma “egípcia”, você fica com aquela cara de humilhada e ofendida, seu assentimento com a cabeça balançando sozinha, no vácuo, sem a esperada retribuição. 

A “egípcia” dói na alma da cordialidade, aquilo que tanto investimos, o preço da urbanidade ensinada a duras penas na escola, na igreja, na família, os carões de mamãe e de papai para que não fôssemos bichos do mato... E tudo isso pra quê, meu Deus? Nos perguntamos enquanto a “egípcia” nos deixa saboreando a pipoca murcha da morgação.

Mas antes de você começar a esculhambar o autor da “egípcia”, chamando-o de fdp, alma sebosa, dando uma de doido... Cabe aqui uma pergunta: você nunca deu uma “egípcia”? Quem nunca deu uma “egípcia”, em Recife, atire a primeira pedra no Nilo ou no Capibaribe.




A “egípcia” faz parte da ânima do recifense. Quantas vezes você não atravessou a rua para não falar com alguém, evitou aquele caminho porque sabia ou intuía que aquele cara chato que você não está afim de falar estará por lá? Porque a pessoa em questão é um escroto, ou porque seu time perdeu e a pessoa irá arriar com sua cara, ou por pura preguiça mesmo por que no tal dia você não está sociável. 

Relativizem comigo: o cara tá entalado até a medula com compromissos, contas, aporrinhações em casa, o time no Z4, mil contingências que fariam um Kafka ser tabacudo na frente dele, daí ele lhe dá uma “egípcia”. Pronto! É o suficiente para você lançá-lo no quinto inferno do coração das trevas do seu ressentimento.

Mas vamos lá, e se fosse você na situação do cara? Às vezes uma “egípcia” pode evitar uma conversa meia-boca, repleta de nonsenses ou o pior: uma conversa tipicamente “Muro de Lamentações”, onde cada um vai debulhar seu rosário de mágoas – tá foda esse país, tá foda essa cidade, tá foda meu time, tá foda meu relacionamento, tá foda!

E por que Recife é a capital da “egípcia”? Respondo, talvez em nenhum outro lugar da federação, conheci alguns deles, o excesso de estímulos sensoriais crivados no corpo/consciência dos sujeitos sejam tão arraigados quanto na capital pernambucana. 

Pudera, a relação: muita gente produzindo bens materiais e simbólicos versus pouco espaço geográfico, como é sobretudo o centro do Recife, gera densidade dinâmica e moral[1]. Exemplos disso: Galo da Madrugada, megalomania, bairrismo etc., 

Isso tudo gera na cabeça e no corpo do pobre recifense imerso nessa Babel fedorenta um sentimento de reserva, que os eruditos chamam de postura blasé. Bom, isso ajuda a explicar um pouco a natureza da “egípcia” aqui na “Nova Roma talvez no porvir”.

Por fim, têm aquelas “egípcias” que é puro charme! Uma cena! A pessoa dá uma “egípcia” qual uma Cleópatra de filme hollywoodiano. Ah! A vontade é de jogar um coco na cabeça do desgraçado pra ele botar fé com a cara da gente, só assim, cairá por terra todo seu charme de Faraó do Alto e do Baixo Nilo do Pátio de Santa Cruz.




[1] Essa é uma das teses centrais da sociologia de Émile Durkheim.

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Chuva de containers de Coca-Colas I

12.8.16 Cabotino 0 Comentarios


Geração Coca-Cola é a sexta faixa do primeiro disco da Legião Urbana (Legião Urbana, 1985). A música é uma das canções oriundas do espólio da lendária banda de punk-rock brasiliense, Aborto Elétrico. E a música carrega a pegada e a estética do punk: simplicidade [três acordes], versos claros e direitos, linguagem chula [cuspir], referências ao cotidiano [tevê, escola, Coca-Cola], ausência de metáforas ou metonímias etc.

“Quando nascemos fomos programados /A receber o que vocês /Nos empurraram com os enlatados dos USA, de 9 às 6 /Desde pequenos nós comemos lixo/ Comercial e industrial”

De início, Geração Coca-Cola traz em seu seio uma ambivalência típica da produção simbólica de países da periferia do capitalismo, como o Brasil: critica-se o imperialismo cultural dos EUA, no conteúdo da letra; ao passo que o vetor formal da crítica é uma linguagem sonora símbolo do colonialismo norte-americano: rock.

“Mas agora chegou nossa vez/ Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”

Talvez o dado distintivo do rock produzido no Brasil durante a década de 1980 e meados de 1990 seja: pela primeira vez ele assume que é nacional e que faz um arremedo, abrasileirado, do que é produzido nos EUA e Reino Unido. O rock torna-se Made in Brazil. Não obstante, os letristas de destaque desta época conseguiram formatar uma forma de compor rock em português. Nomes como: Antônio Cícero, Humberto Gessinger, Marina, Cazuza firmaram suas carreiras compondo e cantando rock na língua de Fernando Pessoa. 


 
Capa do 1º disco da Legião. Na imagem, podemos detectar a ambivalência do modernismo brasileiro. Acima, imagem do Congresso Nacional. Abaixo, imagem de um índio.

Geração Coca-Cola talvez seja o estertor de uma das facetas do projeto iniciado com a Tropicália: o lixo da indústria cultural dos países centrais sendo ressignificado na periferia do capitalismo. 

Isto é, na música em destaque, a modernidade periférica vem à tona através de imagens publicitariamente violentas, que são plasmadas na canção e cuspidas diretamente para o ouvinte. Geração Coca-Cola não traz as imagens cinematográficas de um certo encantamento cotidiano com os símbolos da modernidade capitalista, como, por exemplo: na balada tropicalista Alegria, Alegria: 

“Eu tomo uma Coca-Cola/ Ela pensa em casamento/ E uma canção me consola/ Eu vou”
Ao que parece, a aliança tríplice entre a Tropicália, o Cinema Novo e o Marginal sai de cena, durante a década de 1980, e em seu lugar surge o Rock Nacional recalcado no decalque norte-americano, e sem antropofagia, somado a uma linguagem publicitária eminentemente direta. Em uma palavra: a tevê suplanta o cinema e dá régua e compasso ao rock realizado durante a [mal]dita década perdida. A década dos filhos da “Revolução 1964” que estava pedindo passagem:

“Somos os filhos da revolução/ Somos burgueses sem religião/ Somos o futuro da nação”

Neste sentido, podemos afirmar que a geração musical do decênio de 1980-90 carrega consigo um paradoxo: erigiram-se sobre uma negatividade afirmativa. Isto é, nega-se os influxos da cultura americana despejados na economia brasileira no período da reabertura democrática, na fatura das letras; ao passo que afirma-se musicalmente nas influências anglo-saxãs – até pouco tempo símbolo do imperialismo cultural[1] – através da sonoridade rock. 

Este paradoxo pode ser resumido também no descompasso de uma economia cambiante entre o arcaico e o moderno, o Brasil, em sintonia com a modernidade dos países centrais, representada no rock. É um dado típico da modernidade periférica: ser contemporâneo do não-contemporâneo. 

Assim, neste diapasão, as vanguardas artísticas nacionais durante o século XX, da Semana de 1922 à Tropicália, viveram da dialética entre o local e o universal, ora alimentando-se dos elementos nacionais – desde 1922 desrecalcados – em forte diálogo-influência-reinvenção com as produções simbólicas sobretudo da Europa e EUA. E no centro desta lógica, sobreveio a estética antropofágica, especialmente nas duas vanguardas supracitadas. 

 
Da esquerda pra direita: Renato Russo, Dado Villa-Lobos [segundo plano], Marcelo Bonfá e Renato Rocha.

Portanto, seja na Semana de 1922 quanto na Tropicália, as bases simbólicas foram fincadas no conflito e convivência entre um Brasil arcaico – patriarcal, rural, não capitalista, pré-replicano – com os elementos modernizantes – urbano, industrial, capitalista, burguês.
Porém, a partir da década de 1980, com a geração do Rock Nacional, um dado novo se instala nesta relação entre os brasis arcaico e moderno: não há mais espaço para o Brasil profundo, ou arcaico. O urbano suplanta o rural e transforma-o em epifenômeno.


[1] Lembrar o fatídico episódio da Passeata contra a guitarra elétrica, no Rio, em 1967.

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Chuva de containers de Coca-Colas II

12.8.16 Cabotino 0 Comentarios


Chuva de containers é a quinta faixa do disco Gessinger, Licks & Maltz (GLM, 1992) da banda gaúcha, Engenheiros do Hawaii. A canção retoma alguns pontos discutidos anteriormente no diálogo entre Geração Coca-Cola [Legião Urbana, 1985] e a canção Alegria, Alegria [Caetano Veloso, 1967]. 


Capa do último disco [1992] de estúdio dos Engenheiros com a sua formação 
considerada clássica: Humberto Gessinger, Augusto Licks e Carlos Maltz.

Desta vez, iremos traçar brevemente um paralelo entre Chuva de containers e Panis et Circense [Caetano Veloso, 1967] por acreditar que há pontos de ruptura entre as duas canções e entre as duas interfaces geracionais: Tropicália e Rock Nacional dos anos 1980-90. Essas rupturas são sobretudo no tocante à discussão entre a modernidade na periferia do capitalismo, o Brasil, e como esta modernidade dialoga com os ícones da indústria cultural oriundos do centro do capitalismo, Europa e EUA.

Chuva de containers já começa aludindo a uma prática sócio-política muito presente e originária [entranhada no imaginário] do mundo latino: “pão e circo” [Panis et circense]. Só que ao invés do pragmatismo político do pão [comida] e circo [espetáculo] às massas, a canção traz um viés mais metalinguístico e policlassista, lembrando um pouco do conteúdo de Geração Coca-Cola, só que ao invés da estética punk, a canção dos gaúchos é mais polissêmica e progressiva.

“Falta pão/ (o pão nosso de cada dia)/ Sobra pão/ (o pão que o diabo amassou)  Falta circo (no mundo que nos cerca)/ Sobra circo (é só pular a cerca)/ Sobra circo... falta pão/ Falta circo... sobra pão”

Ao que tudo indica, no decênio de 1990, nossa recepção e transmissão sonora de maior espectro, o Rock Nacional, são impregnadas da linguagem publicitária e da tevê. E o modelo importado é proveniente da indústria cultural estadunidense, sobretudo.  

Tudo isso nos é apresentado, na canção, por meio de um grande paroxismo policlassista de pão e circo, que vão: do biscoito fino[1] consumido por nossas elites ao sonho terceiro-mundista/latino-americano de ir lavar pratos em Miami como um American Latin way of life.  Isto é, há mais de três décadas que Miami é o Latin American Dream tanto de uma elite que gritava e grita “ame-o, ou deixe-o” quanto dos sonhadores do green card a qualquer custo e sacrifício. 

A conjuntura da canção é atual. Parece que o Brasil e a América Latina sofrem de um particular oximoro no tocante às condições estruturantes de suas respectivas sociedades, movimento imóvel:

“Triste vocação/ A nossa elite burra se empanturra de biscoito fino/ Triste sina, América Latina/ Não escaparemos do vexame, não/ Nós não caberemos todos em Miami-ami/ Ame-o ou deixe-o/ Ame-o ou deixe-o”

Desta vez a crítica ao colonialismo das mentes, via o mercado de bens simbólicos agora eminentemente ianque, despejado indistintamente no mercado brasileiro, é notoriamente anti-antropofágica na fatura da letra. Não há mais o brado proto-punk do: vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês. Ao invés disso, há uma recepção cultural sem ruminação:
“Somos todos passageiros clandestinos dos destinos da nação/ Triste destino, engolir sem mastigar/ Chuva de containers/ Entertainers no ar... Noir”

A canção dos Engenheiros denuncia a prática da absolvição, indiscriminada, dos elementos culturais provenientes do centro do capitalismo. Não há mais a regurgitação oswaldiana/tropicalista. O consumo [não mais usufruto ou fruição cultural], agora, é sem peias, sem paladar e sem mastigar. O bolo alimentar [lixo/entertainers] cai na proporção que a gravidade atrai, para o país das margens plácidas, os containers de Coca-Colas. 

Tão anos 1990 quanto o rombo da Camada de Ozônio e as chuvas ácidas, assim era a pilha de lixo/entertainers acumuladas no colosso verde amarelo, abruptamente permissível ao mercado externo do período da reabertura política e, no limite da hiperinflação, nos anos Collor:

“Ouviram do Ipiranga às margens plácidas/ Os trovões da chuva ácida/ A acidez oceânica de uma laranja mecânica”

O lixo/entretenimento do USA de 9 às 6 chega agora pelo ar – chuva de containers – e também pelo “ar” dos raios catódicos da publicidade e da tevê numa estética opaca, noir, anti-solar e anti-tropicalista. Diferente do Brasil da segunda metade dos anos 1960 onde a canção Panis et circense veio à superfície, o Brasil de Chuva de containers traz uma sociedade também bestificada diante da tevê e da publicidade, como em Panis et circense:

  Mandei plantar /Folhas de sonho no jardim do solar/ As folhas sabem procurar pelo sol/ E as raízes procurar, procurar/ Mas as pessoas na sala de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”

O que difere é que Chuva de containers traz uma sociedade [brasileira] encalacrada num jogo que transcende o “pão e circo”, esse jogo está presente na canção de Caetano, e no lugar deste encurralamento, a música dos gaúchos traz uma aporia: o que fazer quando falta o pão e o circo

Na canção de Caetano há ainda as folhas a procurar pelo sol e as raízes. Ou seja, na canção dos Engenheiros não há mais a esperança ambivalente entre o alto [Centro-sol-novo-moderno] e as profundezas [Periferia-raízes-arcaico-tradição], como na canção de Caetano. Neste sentido, o Rock Nacional de 1980 e meados de 1990 perdeu do seu horizonte aquele diálogo tão presente nas vanguardas anteriores: o Brasil arcaico com o moderno. 

Humberto Gessinger, Augusto Licks e Carlos Maltz

Por fim, o Rock Nacional do período 1980-90, representado nas duas músicas trazidas até aqui, anunciava, a partir da ruptura do diálogo entre o arcaico e o moderno em nossas vanguardas e em nossa música, o “fim” da canção. Ou seja, quando o elemento “arcaico”, plasmado pela tradição [local], sai de cena, restando apenas o elemento modernizador [de fora], abra-se espaço na terra-arrasada pela publicidade, aos influxos da negatividade afirmativa, como são os casos de Geração Coca-Cola e Chuva de containers.



[1] A referência à frase de Oswald de Andrade é quase inevitável: “A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico”

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