Quietação

30.3.15 Unknown 0 Comentarios


Can we work it out?
We scream and shout 'till we work it out

Esta semana abri o guarda-roupa e nele encontrei, muito por acaso, uma peça de roupa antiga. Não era velha, nem nova - era apenas antiga. Não que não coubesse mais em mim - há muito meu corpo fatigado não muda - ela apenas soava antiquada. Era uma peça deslocada, nem cafona nem chique, nem demodé nem certeiramente na moda. Deslocado, através desse objeto quase mágico, na realidade, fui eu: distanciei-me para longe e imergi num daqueles momentos em que os pés pareciam estar firmes e sólidos no chão. Estranha sensação essa, a de estar deslocado, dissociado, desconexo. Olhar para os passos atuais em perspectiva e não exergar coerência e sentido. É como escorregar e cair em queda livre por um lugar onde há muita luz, mas, por isso mesmo, pouco se pode enxergar. Não há fundo, apenas queda, descenso. A angústia é o constante processo, a ausência de fim. Não teria eu direito a um termo nas minhas próprias divagações? As interrogações pululam no ar e a queda, incessante, sem oferecer apoio onde eu possa me agarrar, agrava a angústia. Que vira desespero e desemboca em grito. Um grito mudo, ou, por assim dizer, inaudível. Um frenezi silencioso que entra em combustão e, estranhamente, alcança algo que podemos chamar, talvez, de calmaria. Ou dormência.

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Era só isso mesmo

29.3.15 Unknown 0 Comentarios


Dos proselitismos, o que mais incomoda é o religioso. Sem dúvida. Tem coisa pior que um sujeito se esgoelando numa praça (ainda que faça uso de um altofalante), num coletivo ou trem lotado? Talvez só a simbiose do religioso com o político. Mas vamos nos ater ao primeiro, que mais à frente apresentarei um personagem nessa linha. Acho proselitismo religioso tão ofensivo quanto propaganda política gratuita, ou aquele celular tocando sua playlist para todo mundo ouvir no ônibus junto com você, porque, claro, usar fone de ouvido para quê, quando o intuito é mostrar para todo mundo a potência do teu aparelho, inversamente proporcional à tua inteligência?! Pois, bem, para não perder o foco, o causo aqui é sobre aquela pregação inconveniente dos pastores itinerantes, avulsos de plantão. PQP! Não tem c* que aguente, caro(a) leitor(a).
Era uma tarde comum na filial do inferno, Hellcife, fazia o calor de costume e o ar condicionado do metrô tinha menos força que gado desnutrido em pasto seco. A peleja dos passageiros não devia a qualquer cenário de filme pós-apocalíptico, tipo Mad Max. Abanavam-se com seus leques improvisados sem parar, na tentativa frustrada de amenizar o calor.   Eis que surge aquela figura de terno, com brilhantina (ou coisa que o valha) no cabelo, exemplar da "bíblia sagrada" debaixo do braço, incensando o ambiente com um perfume fortíssimo e de qualidade questionável até para as narinas mais dormentes.


No Rio de Janeiro, desde 2009, cultos religiosos são proibidos nos trens urbanos.

- Boa tarde, passageiros!
Silêncio como resposta. Talvez um ou outro "boa tarde" tenha soado no vagão, mas nada que satisfizesse a criatura, que logo entoa novamente e agora com mais vigor:
- Boa tarde, né, abençoados?!
Mais alguns respondem ao cumprimento, como que se sentindo intimidados pela insistência do cidadão em obter uma resposta.
- Boa tarde!
Eis a resposta, ainda que tímida, um misto de calor com a expectativa negativa do sermão que viria pela frente. 



Se ao menos eloquência essas criaturas pregadoras tivessem. Não sei quem lhes disse que eram bons oradores. Esse sim - o "abençoado" que incentiva e encoraja essas figuras a pregarem - eu gostaria de cruzar à meia-noite num beco sem saída pra mostrar-lhe o que é uma pregação... E pragá-lo numa parede, numa homenagem profana ao seu messias. Enfim. Divagações de minhas perversões à parte, voltemos ao trem.
Sucedeu-se a leitura do velho testamento, uma leitura sofrível e robótica, diga-se de passagem. As pessoas no vagão de tão cansadas não tinham reação alguma, posto que, também já haviam se acostumado com aquela rotina. Não era de hoje que nosso pregador tomava aquela linha de trem. A fala do sujeito já havia se tornado uma espécie de mantra hipnótico, o qual alguns passageiros aproveitavam para cochilar ao ouví-lo. Mal comparando, era como se fosse um disco de "músicas para meditação". Minha nossa senhora! A gente se acostuma a cada coisa para tentar não sair do sério e cometer uma barbaridade. A coerção social repressiva nossa de cada dia, aparentemente, à primeira vista, reforça o grude social, nos adormecendo para vida mais e mais. Salvo algumas exceções, quando uma turba se levanta contra "entidades abstratas" e entoa seus gritos despolitizados, protofascistas e genéricos de "mais saúde", "mais educação", "aborto é crime", "drogas não", "ladrão bom é ladrão morto", etc. Mas esses levantes acéfalo-reprodutores não contam. Aqui eu penso em algo mais criativo e que pudesse surgir como uma ideia legítima de alguém no vagão, que incomodado de "ter que ouvir" aquele discurso, reagisse de uma maneira no mínimo inusitada, mas que fizesse frente ao pregador, de maneira a colocá-lo em xeque. Claro que não falo aqui de uma reação violenta. Essa eu deixo para o mundo das divagações perversas da minha mente.
Bem, voltando ao causo...
Arnóbio, ali no canto, espremido entre duas senhoras de ancas largas, de pé, porque cedeu seu assento a outra senhora, tenta a todo custo ignorar o sermão com o auxílio de seus fones de ouvido e sua playlist do celular. Ao mesmo tempo, lia seu texto "xerocado", à noite apresentaria um seminário na faculdade, o título do texto a propósito: "Vigiar e Punir". Acende uma luz na cabeça de Arnóbio, eureca! Lembrando de um vídeo de uma campanha publicitária que vira no you tube, pensou que pudesse reproduzir a cena ali no vagão. No vídeo, tal qual no nosso causo, um pregador entra num vagão de trem, com bíblia na mão e começa a lê-la em voz alta, intermitentemente. Só que lá as pessoas reagem levantando-se e lendo também em voz alta o trecho do livro que cada um portava naquele momento. O pregador se sente acuado, fecha sua bíblia, senta resignado e segue viagem em silêncio. Não preciso dizer que além de um vídeo de ficção, a história não se passava em terra basilis. Aqui, geralmente o buraco é mais embaixo. Quando Arnóbio toma coragem para fazer no vagão o que os personagens do vídeo fizeram, retira os fones, prepara a garganta e vai dar início à sua leitura pronunciando o título do livro xerocado que tinha em mãos, o trem para numa estação, abre as portas e dezenas de torcedores de uma uniformizada local entram. O pregador titubeia por um segundo, ao levar uns empurrões, mas continua pregando. Os passageiros, antes inertes à pregação, agora se põem em alerta, de prontidão para o inevitável e já conhecido nosso arrastão. O pregador teve a bíblia arrancada das mãos num tapa, na sequência um safanão na nuca, seguido de um "cala a boca, arrombado!". Arnóbio, que há pouco nutria seu sangue de adrenalina por ódio do pregador, agora tinha adrenalina de medo circulando em suas veias e logo de ódio passou a sentir pena do pregador que, além dos tabefes, foi arremessado para fora do trem, enquanto este ainda estava parado e de portas abertas na estação. O que se seguiu no vagão de Arnóbio e nos demais já podemos imaginar, o "bonde do terror" deu o tom do restante da viagem. Peço licença pra encerrar este relato despretencioso, caro(a) leitor(a), fazendo um jogo pueril de palavras, me remetendo a Chico (chato) Buarque em sua "A Banda". Mas aqui, quem passou foi o trem nos trilhos da rotina da "maior cidade pequena do mundo", não uma bandinha de fanfarra. Não havia marcha alegre, a não ser a do pessoal da organizada. Moças tristes, essas, havia muitas, que voltaram para casa sem seus smartphones e algumas sem bolsa também. O homem sério não contava dinheiro, mas, ainda assim, voltou para casa sem o dinheiro da feira do mês. Para meu alento e não para meu desencanto, eu não estava no vagão, na pele de Arnóbio, nem na de qualquer pessoa ali presente e também não havia doce para se acabar, a não ser o Choquito que aquela senhora, que sentou no assento cedido por Arnóbio, devorou logo após o susto e a consequente dispersão da uniformizada do vagão. E se você esperava uma moral da história, algum fato inusitado, ou um final feliz para Arnóbio e os outros, sinto cepcionar-lhe, mas a história era só isso mesmo.

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Dureza

27.3.15 Cabotino 0 Comentarios


O cabelo ainda molhado. A pele ainda carregando o cheiro de sabão de coco. Óculos escuros na cara. Calça jeans  preta com cinza. Cueca nova e apertada. O pau à esquerda. Camisa polo azul. Tênis running nos pés. Meias soquete. Mochila nas costas. A papelada do escritório dentro. Smartphone no bolso direito da calça. Fone nos ouvidos. “... Samba direitinho / pra cima e pra baixo virando os olhinhos...”. Direto nos tímpanos.

Ônibus lotado.

Uma senhora educada pede para segurar minha mochila, que de pronto lhe entrego e sinto o alívio imediato por deixar o meu trabalho momentaneamente no seu colo.

Seguro nas hastes do coletivo que traçam uma reta perpendicular entre as duas poltronas do corredor onde se encontra a diligente senhora.

O conforto propiciado por ter tirado a mochila das costas é interrompido por um cabuloso filete de suor que começa a deslizar pela calha de minha coluna vertebral.

Uma chuvinha fora de hora começa a cair sobre o coletivo e ato contínuo as janelas são fechadas, pois os passageiros não admitem a ideia da chuva embotar seus perfumes.

De chofre.

Uma “felina” entra no coletivo com um vestidinho de tigresa e as pernas trigueiras, cheia de adjetivos.

Suas ancas eram tão anchas que ela rodou a catraca de lado e por um árdil seu vestido foi levemente suspenso, o que fez surgir da perna direita a tatoo de uma ascendente roseira.

Súbito.

Um volume começou a latejar do lado esquerdo de minha cueca.

A vida brota em ocasiões inimagináveis e o volume queria alcançar o ápice daquela roseira, só que ao invés do livre despertar encontrou uma resistente teia “espinhosa” de tecido.

O que fazer quando o seu pau é de esquerda?

Canhoto e sem jeito, como coração que lhe bombeia sangue para todas formas belas e para todas as flores ávidas por um toque para desabrocharem umidamente.

Que dureza.

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Do pó ao pó

16.3.15 Unknown 0 Comentarios



Assepsia pré-operatória num hospital de Massachusetts.
Já não havia contato corporal direto. Tudo era feito hermeticamente, sem troca de fluídos ou contato direto da pele. Todo ambiente no raio de 40.075 km era assepticamente monitorado. Tudo programado, data para nascer, idade para morrer... mas, se sua guaiaca fosse daquelas gordas poderia-se pensar até em imortalidade, por que não? Especulava-se até, mais ou menos, um século atrás que com o fim de recursos naturais vitais a extinção estaria a um passo de bebê. Mas, o mercado foi a salvação. Pasmem! Quem diria que Adam Smith seria o Buda tardio de toda uma geração fertilizada in vitro. 

Paga-se para respirar, o que não é de todo ruim -estratosféricase respirar o ar que as pessoas da superfície respiram. Câncer de pulmão na certa! Não mencionei antes, mas o mundo social se dividia agora em dois, os "estratosféricos" e os "da superfície", ou como os estratosféricos costumavam chamá-los "os superficiais". Era evidente a cisão entre os povos, dois grupos bem divididos e marcados, não havia mobilidade social. Mas não era algo que tensionasse as relações, não. Os estratosféricos viviam muito bem e os da superfície também. Separava-se o trabalho intelectual e braçal. E todos estavam plenamente satisfeitos. Havia uma beleza radiante na exaustão dos corpos dos da superfície, que trabalhavam sem intervalo, como máquinas intermitentes, motores perpétuos... eram responsáveis pelo trabalho mais nobre naquela sociedade. Eram reconhecidos por isso. Geravam energia, alimentavam, transportavam, cuidavam dos filhos dos estratosféricos, viviam toda a sua vida em função dos que estavam acima e até afagos, veja você, em forma de petiscos, recebiam deles. Não havia porque questionar. O senso de igualdade social, de isonomia perante a lei, havia sido revisto desdo os idos de 2030. Desde então, ficou claro que havia diferenças de status de cidadania, o que durante algum tempo foi posto em cheque, quando ainda dos falidos ideais democráticos. Veja você, houve até conflito de classes, luta armada mesmo. Naquela época, os que hoje são conhecidos como os da superfície tinham células rebeldes, revolucionárias, combativas. Mas, logo os estratosféricos, ainda surgindo enquanto estamento dominante, trataram de suprimir tais ideais, alterando via engenharia genética as "vontades insurgentes", como eram chamadas. A ideia de democracia e isonomia perante a lei, uma constituição cidadã, sociedade igualitária... tudo caiu por terra nos idos de 2015. Fala-se numa data, mas não há registros precisos.


"Criança morta", tela de Portinari representada na Sapucaí.
Diz-se à boca pequena que o golpe a revolução teria se dado embrionariamente a partir de manifestações legitimamente populares, num país conhecido na época como Brazil, ou Terra Brasilis. Não se sabe ao certo. Alguns da superfície falam em uma data, 15/03/2015, mas não é um dado preciso. Ali nasceu a Nova Aristocracia, hoje o modelo de governo adotado mundialmente. Há um Congresso Global, senadores e deputados eleitos por uma assembleia de notáveis que, como em outrora, na antiga Idade das Trevas, recém batizada pelos "reistoriadores" de Idade da Suprema Virtude Hermética, decidiam por todos habitantes. Claro que, levando sempre em consideração a vontade da maioria... da maioria dos estratosféricos. 
Enfim, pode-se dizer que já era fato, alcançara-se o ápice do desenvolvimentismo pós-moderno, pós-fluidez, pós-democrático, pós-humano, pós-pó. Todos os corpos haviam desaparecido. Esqueci também de mencionar isso. Não havia pele, carne, ossos, células nervosas, sangue, fluídos, olhos, tato, paladar, olfato, sensibilidade, nem mesmo um único dedo indicador. Tornamo-nos a evolução criacionista pré-determinada do livro sagrado: "do pó ao pó".

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Cheiro

12.3.15 Foi Hoje! 0 Comentarios



"Se você não gosta do cheiro do sexo, lembre-se disso da próxima
vez que cheirar uma flor, elas são órgãos reprodutores".

Autor desconhecido.


..."Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre
o destino dos amores contrariados"... 
Gabo.
Cheiro. Os odores solapavam suas narinas. Cheiro de sexo, cheiro de feromônio.
Quem diante de tantos odores no ar ainda é capaz de perceber um flerte sutil e ainda inconsciente, feromonal?
As narinas da maioria, em geral destreinadas, adormecidas pelos cheiros fortes, tão presentes no ar da cidade latrina, não eram mais capazes de detectar as variações sutis dos odores corpóreos.
Mas, havia algo de fornicador no olfato de Tibério. 



Calor. Adicione ao olfato aguçado, regulado para cheiros sutis, o calor corpóreo, a temperatura anormal que sempre o acompanhou desde suas fraldas. Febre, temperatura elevada do corpo, calor destoante do clima, deveras tropical-causticante. Não fossem os banhos gelados constantes, com intervalo mediano de 3 em 3 horas, como poderia acalmar sua alma em brasa? Na lua cheia a tarefa tornava-se hercúlea. 
Às vezes, chegava a dormir na caixa d'água, na laje, ao relento, esperando que a queda de temperatura com a chegada da madrugada - por volta das 03h00, variava, baixando de 2 a 3° Centígrados - fosse suficiente para acalmar seu espírito flamejante. Tudo que podia ser feito para amenizar, Tibério fazia. Mas, diante da temperatura corpórea média de 39°, medidas mais drásticas se faziam necessárias. Não houve especialista na área da medicina tradicional que pudesse dar conta de um diagnóstico mais preciso. Já se aproximava da avaliação de número mil, mas precisão de diagnóstico era algo ainda muito distante. Tibério, de família cristã tradicional, tomado por uma culpa alheia incutida em sua cachola, chegou a pensar que pudesse ser ele mesmo a personificação do filho do demônio - pensamento tosco que logo foi abandonado por ele, depois de tomar 2 litros de vinho com um padre amigo seu, quando aproveitou para confessar-se num tom de desabafo etílico, daqueles que só se faz com um chegado mais próximo... 

ESTRUTURA DA INERVAÇÃO DO OLFATO - Fonte: uma enciclopédia qualquer,
um livro de biologia, ou coisa que o valha.
- Tibério, és filho de Raimundo e Maria, e sabes bem disso. Não há nesse mundo pessoas mais corretas, altruístas e de bom coração, que eu pudesse comparar a teus progenitores. Portanto, meu caro, não te apoquentes! 
Pensamentos que nos perturbam, como esses seus, nos vêm aos montes. Sossega teu espírito. És filho de teus pais e de nosso Senhor como todos nós. 
- Sei que deveria me sentir confortado com tuas palavras, caro amigo, mas se de todo não me confortam, creio que amenizam minha angústia, ou pelo menos acredito que tenham esse poder. 
- Já é algo a ser considerado, então, Tibério. 
- Mas e os odores, meu caro, esses sim são capazes de me levar a loucura! Não sentes agora mesmo o cheiro daquela freira que acaba de passar no corredor?! 

Dali em diante, o padre amigo de Tibério logo percebeu que tratava-se de um caso perdido. Que cheiro era esse que ninguém sentia, só Tibério? Despediram-se e logo Tibério tomou seu rumo, guiado pelos odores que saltavam às suas narinas... aqui, acolá, nas esquinas que rodeavam a zona de baixo meretrício, na altura do porto da cidade.


Calango Albino

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