Do pó ao pó

16.3.15 Unknown 0 Comentarios



Assepsia pré-operatória num hospital de Massachusetts.
Já não havia contato corporal direto. Tudo era feito hermeticamente, sem troca de fluídos ou contato direto da pele. Todo ambiente no raio de 40.075 km era assepticamente monitorado. Tudo programado, data para nascer, idade para morrer... mas, se sua guaiaca fosse daquelas gordas poderia-se pensar até em imortalidade, por que não? Especulava-se até, mais ou menos, um século atrás que com o fim de recursos naturais vitais a extinção estaria a um passo de bebê. Mas, o mercado foi a salvação. Pasmem! Quem diria que Adam Smith seria o Buda tardio de toda uma geração fertilizada in vitro. 

Paga-se para respirar, o que não é de todo ruim -estratosféricase respirar o ar que as pessoas da superfície respiram. Câncer de pulmão na certa! Não mencionei antes, mas o mundo social se dividia agora em dois, os "estratosféricos" e os "da superfície", ou como os estratosféricos costumavam chamá-los "os superficiais". Era evidente a cisão entre os povos, dois grupos bem divididos e marcados, não havia mobilidade social. Mas não era algo que tensionasse as relações, não. Os estratosféricos viviam muito bem e os da superfície também. Separava-se o trabalho intelectual e braçal. E todos estavam plenamente satisfeitos. Havia uma beleza radiante na exaustão dos corpos dos da superfície, que trabalhavam sem intervalo, como máquinas intermitentes, motores perpétuos... eram responsáveis pelo trabalho mais nobre naquela sociedade. Eram reconhecidos por isso. Geravam energia, alimentavam, transportavam, cuidavam dos filhos dos estratosféricos, viviam toda a sua vida em função dos que estavam acima e até afagos, veja você, em forma de petiscos, recebiam deles. Não havia porque questionar. O senso de igualdade social, de isonomia perante a lei, havia sido revisto desdo os idos de 2030. Desde então, ficou claro que havia diferenças de status de cidadania, o que durante algum tempo foi posto em cheque, quando ainda dos falidos ideais democráticos. Veja você, houve até conflito de classes, luta armada mesmo. Naquela época, os que hoje são conhecidos como os da superfície tinham células rebeldes, revolucionárias, combativas. Mas, logo os estratosféricos, ainda surgindo enquanto estamento dominante, trataram de suprimir tais ideais, alterando via engenharia genética as "vontades insurgentes", como eram chamadas. A ideia de democracia e isonomia perante a lei, uma constituição cidadã, sociedade igualitária... tudo caiu por terra nos idos de 2015. Fala-se numa data, mas não há registros precisos.


"Criança morta", tela de Portinari representada na Sapucaí.
Diz-se à boca pequena que o golpe a revolução teria se dado embrionariamente a partir de manifestações legitimamente populares, num país conhecido na época como Brazil, ou Terra Brasilis. Não se sabe ao certo. Alguns da superfície falam em uma data, 15/03/2015, mas não é um dado preciso. Ali nasceu a Nova Aristocracia, hoje o modelo de governo adotado mundialmente. Há um Congresso Global, senadores e deputados eleitos por uma assembleia de notáveis que, como em outrora, na antiga Idade das Trevas, recém batizada pelos "reistoriadores" de Idade da Suprema Virtude Hermética, decidiam por todos habitantes. Claro que, levando sempre em consideração a vontade da maioria... da maioria dos estratosféricos. 
Enfim, pode-se dizer que já era fato, alcançara-se o ápice do desenvolvimentismo pós-moderno, pós-fluidez, pós-democrático, pós-humano, pós-pó. Todos os corpos haviam desaparecido. Esqueci também de mencionar isso. Não havia pele, carne, ossos, células nervosas, sangue, fluídos, olhos, tato, paladar, olfato, sensibilidade, nem mesmo um único dedo indicador. Tornamo-nos a evolução criacionista pré-determinada do livro sagrado: "do pó ao pó".

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