Era só isso mesmo

29.3.15 Unknown 0 Comentarios


Dos proselitismos, o que mais incomoda é o religioso. Sem dúvida. Tem coisa pior que um sujeito se esgoelando numa praça (ainda que faça uso de um altofalante), num coletivo ou trem lotado? Talvez só a simbiose do religioso com o político. Mas vamos nos ater ao primeiro, que mais à frente apresentarei um personagem nessa linha. Acho proselitismo religioso tão ofensivo quanto propaganda política gratuita, ou aquele celular tocando sua playlist para todo mundo ouvir no ônibus junto com você, porque, claro, usar fone de ouvido para quê, quando o intuito é mostrar para todo mundo a potência do teu aparelho, inversamente proporcional à tua inteligência?! Pois, bem, para não perder o foco, o causo aqui é sobre aquela pregação inconveniente dos pastores itinerantes, avulsos de plantão. PQP! Não tem c* que aguente, caro(a) leitor(a).
Era uma tarde comum na filial do inferno, Hellcife, fazia o calor de costume e o ar condicionado do metrô tinha menos força que gado desnutrido em pasto seco. A peleja dos passageiros não devia a qualquer cenário de filme pós-apocalíptico, tipo Mad Max. Abanavam-se com seus leques improvisados sem parar, na tentativa frustrada de amenizar o calor.   Eis que surge aquela figura de terno, com brilhantina (ou coisa que o valha) no cabelo, exemplar da "bíblia sagrada" debaixo do braço, incensando o ambiente com um perfume fortíssimo e de qualidade questionável até para as narinas mais dormentes.


No Rio de Janeiro, desde 2009, cultos religiosos são proibidos nos trens urbanos.

- Boa tarde, passageiros!
Silêncio como resposta. Talvez um ou outro "boa tarde" tenha soado no vagão, mas nada que satisfizesse a criatura, que logo entoa novamente e agora com mais vigor:
- Boa tarde, né, abençoados?!
Mais alguns respondem ao cumprimento, como que se sentindo intimidados pela insistência do cidadão em obter uma resposta.
- Boa tarde!
Eis a resposta, ainda que tímida, um misto de calor com a expectativa negativa do sermão que viria pela frente. 



Se ao menos eloquência essas criaturas pregadoras tivessem. Não sei quem lhes disse que eram bons oradores. Esse sim - o "abençoado" que incentiva e encoraja essas figuras a pregarem - eu gostaria de cruzar à meia-noite num beco sem saída pra mostrar-lhe o que é uma pregação... E pragá-lo numa parede, numa homenagem profana ao seu messias. Enfim. Divagações de minhas perversões à parte, voltemos ao trem.
Sucedeu-se a leitura do velho testamento, uma leitura sofrível e robótica, diga-se de passagem. As pessoas no vagão de tão cansadas não tinham reação alguma, posto que, também já haviam se acostumado com aquela rotina. Não era de hoje que nosso pregador tomava aquela linha de trem. A fala do sujeito já havia se tornado uma espécie de mantra hipnótico, o qual alguns passageiros aproveitavam para cochilar ao ouví-lo. Mal comparando, era como se fosse um disco de "músicas para meditação". Minha nossa senhora! A gente se acostuma a cada coisa para tentar não sair do sério e cometer uma barbaridade. A coerção social repressiva nossa de cada dia, aparentemente, à primeira vista, reforça o grude social, nos adormecendo para vida mais e mais. Salvo algumas exceções, quando uma turba se levanta contra "entidades abstratas" e entoa seus gritos despolitizados, protofascistas e genéricos de "mais saúde", "mais educação", "aborto é crime", "drogas não", "ladrão bom é ladrão morto", etc. Mas esses levantes acéfalo-reprodutores não contam. Aqui eu penso em algo mais criativo e que pudesse surgir como uma ideia legítima de alguém no vagão, que incomodado de "ter que ouvir" aquele discurso, reagisse de uma maneira no mínimo inusitada, mas que fizesse frente ao pregador, de maneira a colocá-lo em xeque. Claro que não falo aqui de uma reação violenta. Essa eu deixo para o mundo das divagações perversas da minha mente.
Bem, voltando ao causo...
Arnóbio, ali no canto, espremido entre duas senhoras de ancas largas, de pé, porque cedeu seu assento a outra senhora, tenta a todo custo ignorar o sermão com o auxílio de seus fones de ouvido e sua playlist do celular. Ao mesmo tempo, lia seu texto "xerocado", à noite apresentaria um seminário na faculdade, o título do texto a propósito: "Vigiar e Punir". Acende uma luz na cabeça de Arnóbio, eureca! Lembrando de um vídeo de uma campanha publicitária que vira no you tube, pensou que pudesse reproduzir a cena ali no vagão. No vídeo, tal qual no nosso causo, um pregador entra num vagão de trem, com bíblia na mão e começa a lê-la em voz alta, intermitentemente. Só que lá as pessoas reagem levantando-se e lendo também em voz alta o trecho do livro que cada um portava naquele momento. O pregador se sente acuado, fecha sua bíblia, senta resignado e segue viagem em silêncio. Não preciso dizer que além de um vídeo de ficção, a história não se passava em terra basilis. Aqui, geralmente o buraco é mais embaixo. Quando Arnóbio toma coragem para fazer no vagão o que os personagens do vídeo fizeram, retira os fones, prepara a garganta e vai dar início à sua leitura pronunciando o título do livro xerocado que tinha em mãos, o trem para numa estação, abre as portas e dezenas de torcedores de uma uniformizada local entram. O pregador titubeia por um segundo, ao levar uns empurrões, mas continua pregando. Os passageiros, antes inertes à pregação, agora se põem em alerta, de prontidão para o inevitável e já conhecido nosso arrastão. O pregador teve a bíblia arrancada das mãos num tapa, na sequência um safanão na nuca, seguido de um "cala a boca, arrombado!". Arnóbio, que há pouco nutria seu sangue de adrenalina por ódio do pregador, agora tinha adrenalina de medo circulando em suas veias e logo de ódio passou a sentir pena do pregador que, além dos tabefes, foi arremessado para fora do trem, enquanto este ainda estava parado e de portas abertas na estação. O que se seguiu no vagão de Arnóbio e nos demais já podemos imaginar, o "bonde do terror" deu o tom do restante da viagem. Peço licença pra encerrar este relato despretencioso, caro(a) leitor(a), fazendo um jogo pueril de palavras, me remetendo a Chico (chato) Buarque em sua "A Banda". Mas aqui, quem passou foi o trem nos trilhos da rotina da "maior cidade pequena do mundo", não uma bandinha de fanfarra. Não havia marcha alegre, a não ser a do pessoal da organizada. Moças tristes, essas, havia muitas, que voltaram para casa sem seus smartphones e algumas sem bolsa também. O homem sério não contava dinheiro, mas, ainda assim, voltou para casa sem o dinheiro da feira do mês. Para meu alento e não para meu desencanto, eu não estava no vagão, na pele de Arnóbio, nem na de qualquer pessoa ali presente e também não havia doce para se acabar, a não ser o Choquito que aquela senhora, que sentou no assento cedido por Arnóbio, devorou logo após o susto e a consequente dispersão da uniformizada do vagão. E se você esperava uma moral da história, algum fato inusitado, ou um final feliz para Arnóbio e os outros, sinto cepcionar-lhe, mas a história era só isso mesmo.

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