O Velho

27.8.11 Joarez 4 Comentarios


Pelo que se percebia de longe, não era um velho, não era gente ainda, era apenas um monte de trapo sujo acenando para o horizonte. Suspiros profundos, mão apertada contra o peito. Sim, era uma pessoa. Naquele momento, lamentava a dor de uma despedida no mar. É sempre mais doloroso, pensava. Um carro dobra esquina, e ninguém mais o vê; um avião sobe para o céu, vai ficando cada vez menor, até que se perde na imensidão do espaço. De navio, não. A nau vai andando lentamente em direção ao horizonte, demora para ser perdida de vista. É uma dor que vai doendo paulatinamente, até se tornar insuportável. E quando ela se torna insuportável, sim, é a hora de partir, voltar para casa. E o nosso velho foi, ainda suspirando profundamente, deitou na cama e chorou - a dor de um amor que nunca teve.

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O vira-lata é um cão cordial

17.8.11 Foi Hoje! 2 Comentarios


Um horrível dia, perguntei a uma amiga que tem longas madeixas e ideias idem: que raça de cachorro eu parecia. Respondeu-me na lata que eu bem me assemelhava a um vira-lata, assim da lata para o lata. E ainda complementou a resposta, disse que eu seria um desses que vivem a revirar o lixo e que também correm atrás de motos e carros e que uma vez alcançados não sabe o que fazer.

O interessante sobre as perguntas idiotas é que recebemos respostas sinceras e verdadeiras. Eu da minha parte não quis saber o porquê de tal filo canidare, pois, se a emenda é pior do que o soneto, a prosa pode feder e ser mais desanimadora do que a poesia da pergunta.

Enfim, a sua resposta me deixou com uma pulga atrás da orelha (desculpem-me a metáfora redundante e canina). E voltei pra casa com o rabinho entre as pernas (está bem, chega!). Fiquei revirando em meus alfarrábios da memória alguma coisa sobre essa ralé estóica do filo canidare. De repente surgiu entre minhas sinapses embotadas de século XXI uma frase que faria Nelson Rodrigues acender um cigarro, não por ser óbvia e ululante, ela não chega a tanto, mas pelo seu teor histórico, ela bem que poderia ter sido criada no período do Milagre: o vira-lata é o Gurgel do Pedigree. Essa daí eu plagie de mim mesmo, pois, nunca se escreve o que se quer...

Por falar no triste do Nelson (adjetivo dele mesmo), foi ele que cunhou uma frase que ficou emblemática após a derrota da seleção brasileira na final copa do mundo de 1950 diante dos uruguaios, um trauma filho da puta em nosso narcisismo de chuteiras: “o brasileiro é um vira-lata internacional”. Essa frase foi à síntese de sua teoria sobre o nosso Complexo de Vira-Lata, ou seja, uma espécie de diagnóstico de nossa posição cultural no mundo dos Pedigrees.

Esse Complexo só declinou segundo ele a partir da conquista da Copa do mundo de 1958 na Suécia diante dos próprios donos da casa, soma-se a essa conquista a de Maria Esther Bueno em Roland Garrot e a ascensão da Bossa Nova. Com tudo isso acontecendo era inevitável não ganharmos o Pedigree da ONU (Organização dos Narcisistas Unidos). No país estávamos também em meio aos anos JK com os seus 50 anos em 5, cuja apoteose foi uma Capital que saiu do Nada para o Vazio em uma verdadeira orgia de impessoalidade.

Mas, o que é que eu tenho de tudo isso nos dias que se seguem, não tenho os “lençóis” de Pelé diante dos suecos, nem as raquetadas requintadas de nossa musa do saibro, nem tampouco os acordes sincopados e dissonantes de João Gilberto, ou seja, continuo a roer o osso, sem tutano, de minha figuração canina sozinho e procurando alguma verossimilhança ou alguma coisa pra dizer sobre os vira-latas.

Pois bem, se tem uma coisa que faz o pelo do vira-lata se eriçar de vaidade, é justamente a sua capacidade de se suster. O único argumento que o animal bípede ou quadrúpede tem a seu favor é o de se virar, ganhar seu “pão” seja escrevendo sobre a quintessência dos clichês ou revirando entulhos de lixo, pois sabem que a mamãe Natureza não enche a mesa nem dá ração na boca, exceto para os que têm raça, estirpe...

O vira-lata é tímido como uma dúvida, porém às vezes tem a coragem daquela pergunta que ninguém faz, seja porque o horário não permite, ou por medo dos Rotwaillers do decoro e bom senso. Outra característica do nosso Gurgel do Pedigree é que ele se entrega a qualquer carícia, um alisado em seu dorso, em suas orelhas ou no pescoço, entretanto, só balança o rabo pra quem o cheiro lhe é conhecido. Sabe que o tato é traiçoeiro enquanto que o olfato é verdadeiro como algo que não cheira bem. Ele também corre de qualquer banho de criolina que tentam dá-lo para eliminar seus carrapatos, prefere esses a chuparem seu sangue a esses compostos assépticos que são mais nocivos do que seus pequenos demônios.

Em suma, cheguei à conclusão que a resposta de minha amiga não vai ter uma réplica, vou ficar na minha. Irei por o coração no lugar da razão, serei cordial com ela. Vou lhe dar um cheiro no cangote e ponto final.


Por: Ascensorista Godofredo.

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Seja cardispliscente

9.8.11 Joarez 3 Comentarios


Não é muito difícil esbarrar, aqui e ali, com figuras 'geração saúde', alimentação balanceada, exercícios físicos regulares, garrafinha d'água embaixo do braço e 2,5 km de vaidade. Difícil? Não, nem um pouco. Tem às pencas. Facilmente topamos, na esquina ou no boteco, com este tipo de gente.

Topar é simples, difícil é levar uma prosa. Esse pessoal costuma malhar o corpo, não o cérebro. Costumam fortalecer o ego, não a simpatia.

E é em nome de uma prosa digna no botequim, não por apelação ao uso do álcool, coisa que eu faço deliberadamente, que lhes apresento a figura de Antônio Maria.

Este coroa, baixinho e gorducho, embora muito esquecido hoje, já foi marcante no cenário cultural brasileiro. É de Maria a letra da música, que ganhou o primeiro disco de ouro da música brasileira, Ninguém me Ama. Outros sambas-canções, como Manhã de carnaval, interpretado por João Gilberto fizeram muito sucesso há algumas décadas no Brasil, além de sedimentarem o espaço que mais para frente seria ocupado pela bossa-nova. São deles também alguns dos frevos mais lindos que o Recife viu surgir, como Frevo nº 2 do Recife. Suas crônicas, que só iam ao ponto-vital, mulheres e boêmia, são simplesmente apaixonantes.

Em que pese o caráter 'cabeçudo' destas últimas glórias, pode-se objetar uma belezura de carta, intitulada Bilhete fraternal, talvez útil, em que Maria tenta, enternecidamente, desconvencer Maysa Monjardim, sua amiga, do suicídio.

E Maria, apesar dos pesares, apesar de ter morrido aos 44 anos de enfarte, se dizia um cardisplicente - aquele/aquela que desdenha do próprio coração.

E é em nome disso, do prazer de costurar uma conversa agradável com alguém na fila de espera ou no ônibus, que eu peço comovidamente: Seja um(a) cardisplicente!

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Causos 34: Desabafo

8.8.11 Castanha 2 Comentarios


A coisa não estava muito boa. Fazia já algum tempo, mas a família não tinha conseguido se organizar por completo, a coisa tinha virado uma bola de neve. Um dos membros da família, o irmão do prisioneiro, tinha arrumado um emprego e levava do jeito que dava, mas tudo tem um limite. Num certo dia sentou na calçada em frente ao trabalho e desatou a chorar; um amigo de trabalho de farra e de vida estava do lado tentando consolá-lo com palavras e sentimentos de apoio. Uma senhora, vizinha do trabalho dos dois, veio em socorro. Deu um chá para o sujeito que chorava e perguntou o que tinha acontecido. O sujeito começou: “Tenho um irmão que há algum tempo assaltou e matou um casal aqui na cidade, desde então a vida de minha família está desorganizada. Ficamos com um forte sentimento de culpa, já não aguento”. Após concluir, o sujeito teve uma forte surpresa quando a senhora revelou uma coisa que ele nem imaginava: “Não se abale meu filho, a culpa não é sua, eu mesma sou tia do rapaz assassinado, culpo seu irmão, mas não culpo você e o resto da família”.

Castanha 08/08/2011

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