Sobre pronomes e poderes
por
Renato K. Silva, doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.
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Um
ano e dez dias depois, o ex-presidente Lula volta a ficar defronte à Força Tarefa
da Operação Lava Jato, desta vez, para depor como réu em uma das cinco acusações
que sofre no âmbito da referida investigação.
Na
manhã do dia 4 de março de 2016, o ex-presidente Lula é conduzido coercitivamente
para esclarecer alguns pontos sobre seu suposto envolvimento no esquema de corrupção
investigado pela Lava Jato, no escritório da Polícia Federal, localizado no Aeroporto
de Congonhas, em São Paulo.
Testemunhas
que estiveram presente no aeroporto na conturbada manhã do dia 4 de março
informaram que houve tumulto e luta jurisdicional entre as forças policiais que
lá estavam: a Polícia Federal (junto com procuradores do MP) e a Polícia da
Aeronáutica (PA). O motivo da cizânia: a força tarefa encapada pela PF queria
conduzir Lula para Curitiba e, diante desta ação discricionária, a PA reagiu.
Dizem que o coronel da Aeronáutica em serviço disse, após ordenar que a PA
tomasse conta da situação: “O que vocês pensam que estão fazendo com um
ex-presidente?”.
O
pronome de tratamento utilizado pelo coronel da Aeronáutica foi o mote para
escrevemos esse ensaio. O oficial se refere a Lula como “ex-presidente” o que,
de fato e de direito, é o pronome que devemos utilizar a Luiz Inácio Lula da
Silva.
Os
pronomes de tratamento carregam não apenas o decoro e a urbanidade que devemos
estender às pessoas mais longevas, como nos ensinam em casa e na escola, eles levam
também a marca do poder atribuído às autoridades, sejam elas científica,
política, monárquica ou religiosa. Aprendemos
que para nos reportarmos a uma autoridade religiosa, do baixo clero, devemos
utilizar o pronome de Vossa Reverendíssima (V.Rev.mª); para autoridades
acadêmicas o pronome é Doutor, Meritíssimo ou Magnificência (V.Mag.ª); para
políticos o pronome apropriado é Vossa Excelência (V. Exa.)...
A
sociologia weberiana nos ensina que nas sociedades modernas há três tipos de
autoridades: científica (ou racional legal), religiosa e carismática. Para
exemplificar esses conceitos vamos tomar o caso dos ex-presidentes Fernando
Henrique Cardoso (FHC) e Lula, os únicos dois presidentes eleitos que
conseguiram terminar seus respectivos mandatos no Brasil pós redemocratização.
Em
ambos os casos, para além da função como ex-chefe do Poder Executivo, FHC seria
a autoridade científica pois ele
detém o título de Doutor em Sociologia pela USP e depois da Ditadura de 1964
enveredou-se pela vida política, mas sem nunca negligenciar sua formação
acadêmica e seu ar professoral. No caso de Lula, ele seria a autoridade carismática pois seu poder foi ungido,
primeiramente, pelas hostes do sindicalismo da região do ABC paulista, o maior
da América Latina, durante as décadas de 1970-80, que culminou na fundação do
Partido dos Trabalhadores.
No
mês passado, FHC prestou depoimento à Lava Jato como testemunha de defesa do
ex-presidente Lula na ação sobre o espólio presidencial. No vídeo da audiência podemos ver e ouvir o magistrado Sérgio Moro se
referindo a FHC como o “Sr. Ex-presidente Fernando Henrique Cardoso”, em
seguida, passa a vez aos advogados de Lula que também se referem a FHC como
“ex-presidente”. E para não passar em branco, o ex-professor da USP fez seu
depoimento por videoconferência.
No
último dia 14 de março, o ex-presidente Lula foi depor em Brasília para se
defender das acusações de tentar impedir a delação premiada do ex-diretor da
Petrobrás, Nestor Cerveró. Na ocasião, o membro do judiciário responsável por
ler a acusação contra Lula, se refere ao ex-presidente como: “Sr. Luiz Inácio”. E só para constar, o ex-metalúrgico teve negado seu pedido de depor por meio de videoconferência, justamente num
período de luto familiar.
Essa
falta de isonomia no tocante ao uso dos pronomes de tratamento no caso de FHC e
Lula prova não apenas que o nosso Judiciário não é equânime em seu foro como
também nutre um forte preconceito de classe.
Chamar
um ex-presidente, numa sessão pública e filmada, de “Sr. Luiz Inácio” não é
apenas uma falta de respeito como também uma tentativa vil de desqualificá-lo e
menosprezar sua biografia.
A
classe dominante brasileira sempre enxergará em Lula o ex-operário que chegou
ao Alvorada. E só tolerou seus oito anos no Palácio porque ele e sua cúpula
fizeram inúmeras concessões. Além disso, com a economia indo bem permite-se
certas indulgências, como, por exemplo: se permitir o convívio ao lado da ralé
porque está vem tomando banho, aprendendo a falar, pondo aparelho ortodôntico
na boca, fazendo faculdade etc.
O
ex-presidente Lula sempre será visto, pela classe dirigente, como o presidente
pau-de-arara que em um dia de férias, na Bahia, carregou caixa térmica de cerveja na cabeça, e calçando sandálias de dedo. Era
o presidente monoglota. Que cometia inúmeras silabadas em seus discursos. Que
estudou no Senai. Que no falacioso episódio do tríplex do Guarujá foi acusado
de consumidor conspícuo de péssimo gosto, quase um parvenu.
Portanto,
um sujeito como esse não pode ser chamado de “ex-presidente”, e assim o fez o
membro do Judiciário na sessão do último dia 14. Esse representante do
Judiciário praticou, numa vergonhosa sinédoque, o desejo que sempre nutriu a
nossa elite: a desqualificação de quem ascende na pirâmide, tanto em capital
quanto em status, nada mais é do que a necessidade de afirmar uma posição
privilegiada para enfim naturalizá-la diante de quem aponta sua contingência e
arbitrariedade histórica, como os ascendentes.
Essa
desfaçatez da classe dirigente no que tange às camadas populares ascendentes,
aqui, no caso, o ex-presidente Lula, pode ser constatada na total ausência de escrúpulos
de Boni ao afirmar que
manipulou o debate a favor de Collor em detrimento de Lula, por exemplo.
Fonte: Google Imagens |
Já
FHC sempre foi encarado como o “presidente príncipe dos sociólogos”. O sujeito
refinado que mora em Higienópolis. Usa paletó tweed com cotoveleiras de couro. Janta com vinho de R$ 300 a garrafa. É Amigo de Bill Clinton. Poliglota. Homem dos
salões. Contumaz palestrante do Itamaraty. Detentor de um conhecimento arcano.
“Pai do Real”, paternidade usurpada do discreto Itamar. Ex-professor em
diversas universidades do mundo. Parlamentar cassado etc. Na cabeça da PF e dos
procuradores do MP, esse sujeito merece ser chamado de “Sr. Ex-presidente”.
Merece até a prerrogativa de depor direto do conforto de sua casa por meio de videoconferência.
O
que os yuppies magistrados da PF e do MP não sabem é que eles nunca irão entrar
no seleto clube dos dândis da elite econômica e intelectual que FHC faz parte.
Esse grupo não aceita a classe média concursada. Tem até horror a este segmento
da classe média, aliás, tem horror a classe média em si. Portanto, ao usar o axiônimo
a FHC o juiz Sérgio Moro, de maneira metonímica, no que diz respeito sobretudo à
sua categoria de yuppie concursado, buscou equiparar-se ao mesmo estamento de
FHC, o que é de uma ingenuidade comovente.
Quando
a Justiça não atua de maneira isonômica recebe escárnio, descrença e iniquidade
como resposta.
Fonte: Google Imagens |
A curiosidade e certa ironia nisso tudo é que
a geração de yuppies concurseiros, da qual o juiz Sérgio Moro é um
representante singular, ganhou força e se ampliou sobretudo no segundo mandato
de Lula (2006-2010) quando este nomeou o bambambã dos advogados criminalistas
do país até então, Márcio Thomaz Bastos, para Ministro da Justiça. Bastos
expediu inúmeras ordens para abrir novos concursos para agentes, delegados,
juízes. Expediu ordem de aquisição de novas armas, equipamentos, veículos,
novas instalações para delegacias... Nem com isso, então, Lula teve a dignidade
de ser chamado de “ex-presidente” por um membro do Judiciário que, certamente,
chegou ao posto por meio de um concurso aberto na gestão do ex-operário.
Ser
republicano não é jactar-se de fazer aquilo que é sua obrigação, um bom governo;
no caso de Lula, mas sim reconhecer certas hierarquias, ditames sociais e
respeitá-los, como deveria fazer o membro do Judiciário que sonegou o devido
pronome de tratamento a Lula. Pois tanto o regime republicano como qualquer
modelo de vida social sobrevive porque há um pacto moral envolvendo as partes.
Uma vez rompido esse pacto e não costurado outro imediatamente, por meio das
partes envolvidas, entramos num cenário de anomia. E a falta de padrão no tocante
ao axiônimo no caso de FHC e Lula, por parte do Judiciário, é um exemplo de que
o pacto moral rompido em maio do ano passado ainda falta muito para se
restabelecer.
Estão acusando Lula de
transformar qualquer aparição pública sua em comício político, seja num velório
ou num depoimento policial. Mas é justamente essa a arma de qualquer autoridade
carismática: seduzir a coletividade
com a sua força moral atribuída, outrora, por essa mesma coletividade, e que
será sempre retroalimentada com a sua enunciação pública. O carisma é imantado
em contato com o público. Lula sabe que só ganhará sobrevida se estiver em
campo.
O carisma cerceado é inócuo.
Lula conheceu na pele, nos
últimos anos, o que a pele dele sempre foi para a classe dirigente nacional: a
reprodução do seu passado subalterno que se anuncia quando ele aparece em cena.
Se lhe negam o direito ao pronome de tratamento adequado é porque o carisma é
visto como algo tributário das massas. As elites não querem ser atreladas às
massas pois aquelas buscam a distinção, e as massas são o oposto da distinção.
Lula em Recife, 2016. Foto: Ricardo Stuckert. |
A Medicina e o Direito
sempre foram os grandes passatempo da classe dirigente brasileira. A ex-médica
do Sírio-Libanês que divulgou o laudo de Marisa Letícia da Silva, esposa de
Lula, num grupo do WhatsApp, fez isso porque entende que a família Silva é apenas
um corpo homogêneo ungido pelo povo. E esse corpo não merece a dignidade ética
do sigilo médico tampouco o axiônimo de direito que lhe é negado pelo
Judiciário.
Portanto, Lula intui que seu
futuro depende da sua capacidade de urdir, o mais cedo possível, um novo pacto
moral entre os agentes nacionais. E para isso seu carisma será fundamental pois
a classe dirigente está lhe negando até o pronome de tratamento. Que Lula tem virtú todos nós sabemos, cabe saber
agora se terá fortuna para costurar
esse novo pacto. Mas enquanto estiver nas ruas seu carisma detém o habeas corpus que, segundo os latinos, significa:
tenha/traga o corpo que está sob sua
guarda.
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