The Voice Kids – a globalização do mais do mesmo

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por Renato K. Silva - doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.

Assistindo ao The Voice Kids, crente de que ouviria e veria um frescor da criançada na interpretação das músicas que contrastasse com a versão adulta do programa, percebi uma reprodução dos cacoetes dos adultos: vocalizes e floreios desnecessários; legatos o tempo inteiro e muito vibrato. Estamos formando/formatando um tipo de intérpretes musicais, de nossas canções, que não condiz com a história da nossa música popular: o canto natural. Quando vejo o The Voice me dá uma vontade danada de correr para ouvir: Carmen Miranda, João Gilberto, Belchior. Os cantores “sem voz” que fizeram da música brasileira ser o que é: uma das mais criativas e plurais do mundo.

Ponho em itálico a palavra globalização porque buscarei encandear ao longo do texto o conceito de globalização como fenômeno que tenta solapar as diversidades culturais, e também fazendo uso da palavra como corruptela de Rede Globo, emissora responsável pelo programa de novos calouros supostamente representantes da música brasileira. Outrossim, a referida emissora vem fazendo um processo de homogeneização de nossa música – aplacando a diversidade musical, historicamente, constituída no Brasil.

Assistindo o The Voice Kids em um domingo de janeiro do ano corrente, deparei-me com a escancarada reprodução do modelo The Voice, o programa voltado para os calouros adultos. O pretenso argumento de que as crianças são mais espontâneas e livres dos vícios musicais dos adultos não se sustenta. As crianças que se apresentam no programa passam por seletivas regionais concorridíssimas, são expostas a níveis galopantes de estresse, ansiedade e competição. Tudo isso apenas para copiarem os maneirismos vocais ditados pela indústria fonográfica na razão: EUA-Brasil. Ou seja: da indústria cultural norte-americana para os estúdios da Globo.

Primeiro, o júri composto por: Ivete Sangalo, Carlinhos Brown e Victor e Léo já é uma indicação de como a pluralidade musical brasileira foi alijada do processo. Um júri de quatro membros representando dois gêneros musicais: Axé Music e Sertanejo. Os dois ritmos hegemônicos nos meios de comunicação de massa atualmente. O programa é uma franquia de um conteúdo para audiovisual estadunidense. A versão brasileira não foi apenas uma cópia (certamente questões de contrato) dos gringos, como percebemos até no cenário, mas também na formação/escolha de intérpretes - tanto na versão adulta quanto infantil -  que não fazem parte da nossa tradição musical, como veremos à frente.

Daí o leitor/a pode argumentar: “A Globo não está preocupada em veicular um programa de calouros infantis onde a música seja apreciada por si mesma. A emissora está preocupada com a audiência, com o espetáculo”. Concordo plenamente com o argumento do leitor/a. Porém não me venham tentar convencer-me que eles são os novos representantes da música brasileira. Ou aquela outra falácia: “A tevê e o rádio exibem e executam aquilo que o povo quer ver e escutar”. Mentira, é executado e exibido quem pagar o maior “jabá” – prática de mecenato privado (geralmente empresários) pago aos responsáveis por veículos de comunicação para divulgar a obra de certo artista em detrimento da pluralidade musical. Por isso a sensação de “familiaridade” que temos ao transitar pelo dial das FMs brasileiras, ou dos programas de auditório. Há nos dois casos, a presença do mesmo grupo de artistas.

Ainda sobre o tema, a tevê brasileira já produziu programas de calouros – também com apelo na audiência – bem mais significativos, como os antológicos Festivais da Canção da Record, nas décadas de 1960-70, onde surgiram nomes da Tropicália, da Jovem Guarda, do Sambalanço, Música de Protesto, do Samba, da Black Music etc., ou também o Festival da Música Brasileira que a própria Rede Globo organizou, em 2000. No programa dos anos 2000 haviam nomes ligados ao Funk, ao Rap, ao Samba, ao Rock. Enfim, havia espaço para a diversidade musical. Já com a franquia The Voice (na versão infantil e adulta) só há espaço para um modelo de apresentação: quem consegue dilatar mais a musculatura das cordas vocais num exercício de virtuosismo vocálico pomposo, porém vazio.

O programa The Voice é uma indicação de como a canção brasileira, como a conhecemos, está saindo de cena dos meios de comunicação de massa.

A canção brasileira sempre foi a espinha dorsal de nossa educação estética (e sentimental), é a nossa arte mãe. Ela foi formatada, como a conhecemos, durante os anos 1930 com a popularização do rádio e com a gravação eletrônica em estúdio a partir de 1927, o que permitiu os cantores e cantoras “sem voz”, gravar.

Essa formatação foi galvanizada sobretudo pelo Samba, ritmo que então começava a destoar como a expressão musical do país justamente pelas políticas varguistas no âmbito da construção de uma identidade cultural do povo brasileiro. As canções dos anos 1930 começaram a enfatizar um tipo de canto mais próximo de um conversa. Como, por exemplo: Conversa de botequim de Noel Rosa, ou a marchinha cantada por Carmen Miranda: Mamãe eu quero onde além do canto natural há uma forte presença da linguagem das ruas: livre, leve e solta.

Durante os decênios de 1940 e 1950, o rádio toma conta do país e a tevê começa a dar seus primeiros passos. Uma voz dominou este período, seu dono: Orlando Silva, “O Cantor das Multidões”. Além de Orlando Silva, havia Francisco Alves (padrinho musical do primeiro), Nelson Gonçalves, Eliseth Cardoso, Dolores Duran e outras vozes que transformaram as duas décadas anteriores à Bossa Nova como a época do Samba-Canção, das letras sobre traição, morte, suicídio e outras fossas que a batida de João Gilberto, junto com as letras de Tom Jobim, Vinicius de Morais, Newton Mendonça e outros tampas da Bossa vieram arejar no repertório da música comercial brasileira de então.

Com o Chega de saudades (João Gilberto, 1959) a Bossa Nova surge resgatando o canto natural e a linguagem mais plástica das ruas sobretudo dos sambas da década de 1930, misturado com o cool-jazz norte-americano na batida e na voz inigualável do baiano de Juazeiro. O que a Bossa Nova legou para as futuras gerações foi a vocação da música brasileira para o aparente despojamento da junção letra/canto na relação: harmonia/melodia.

Essa tradição do canto natural que a Bossa Nova resgatou dos sambas dos anos 1930 foi decantando-se até os anos 1990. Passou pela Tropicália, Sambalanço, Black Music, Jovem Guarda, Música de Protesto, Udigrudi e até para as gerações do Rock dos anos 1980-90. Os anos 1990 foi a década que consolidou o Sertanejo e o Pagode. O Sertanejo priorizou um modelo de canção pautado nas duplas em que o primeira voz sobressaía-se do segundo a partir de floreios musicais sobretudo nos estribilhos – os vibratos –, enquanto o segunda voz ficava na base vocal, por vezes intercalando uns vocalizes. Como exemplo: Indiferença – de Zezé Di Camargo & Luciano.

Portanto, afora a atual presença/influência do Sertanejo (com ênfase na versão Universitário) na formação auditiva das novas gerações, no final dos anos 1980 até agora, a música Pop especialmente a estadunidense com suas divas engendrou também um tipo de interpretação musical pautado nos vibratos – floreios musicais geralmente desnecessários – pois muitos das divas são oriundas de uma tradição musical – em parte as igrejas Batistas negras – onde o virtuosismo vocálico (pautado nos vibratos e vocalizes) dão à tônica. A exemplo: I Will Always Love You de Whitney Huston.

Por fim, as finalistas do último domingo 28 de fev. 2016, “treinadas” por Ivete Sangalo, cantaram Drão de Gilberto Gil. As três deram ênfase nos vibratos e nos legatos. E foi justamente a concorrente que mais acentuou essa técnica a que perpetuou-se no programa. A música Drão ficou praticamente irreconhecível. Aquela voz natural de Gil cantando-a passou longe, enfim, espero que no futuro as crianças voltem para a toada que fez a música brasileira ser o que é: plural como nosso povo.

PS.: A Globo e os jurados do programa deveriam fazer uma mea culpa e dizer para os jovens cantores: “Drão! / Os meninos são todos sãos / Os pecados são todos meus”.

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Imagem I: Tiago Leifert, Ivete Sangalo, Carlinhos Brown, Victor e Leo. Apresentador e jurados do programa, respectivamente. Crédito: Google Imagens.

Imagem II: O encontro do Samba com a Bossa Nova. Cartola, Nara Leão, Zé Keti e Nelson Cavaquinho. Crédito: Google Imagens. 



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A antropofagia da Mulher do Fim do Mundo

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por Renato K. Silva - doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.


Elza Soares, 79 anos, 60 de carreira, lançou em 2015 seu primeiro trabalho exclusivamente com músicas inéditas, A Mulher do Fim do Mundo (Circus/Natura Musical) em parceria com um grupo de músicos/produtores paulistanos que vem sacolejando o pulverizado cenário musical brasileiro nos últimos anos. O grupo paulistano que fez a dobradinha com Elza no disco é composto por: Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Marcelo Cabral, Guilherme Kastrup (assinou a concepção, direção e produção), Celso Sim, Thiago França, Douglas Germano e Clima. Eles são responsáveis por significativos trabalhos não só na música como também nas artes plásticas e no audiovisual. São da lavra deles os trabalhos de Metá, Metá, Passo Torto, Ná Ozzetti, Juçara Maçal entre outros.

A Mulher do Fim do Mundo começa com um poema de Oswald de Andrade, Coração do mar que fora musicado pelo professor e músico José Miguel Wisnik. Este último também foi responsável pela produção do disco de Elza Soares, Do cóccix até o pescoço (Maianga, 2002). Não é à toa que o poema de Oswald de Andrade é o abre-alas do disco. Oswald fora o mentor de uma das teses centrais da cultura brasileira: Antropofagia (1928) que, em linhas gerais, consiste em utilizar uma linguagem telúrica, “não-catequizada”, porém não de maneira gratuitamente ufanista, pois segundo a tese, é necessário alimentar-se do que vem de fora e depois regurgitar por cima dos elementos nacionais.

Está aí a base que compõe o novo disco de Elza Soares: mistura os elementos cosmopolitas – rock, hip-hop, eletrônico –, com os ritmos nacionais – samba, marchinha, carnaval – de maneira audaciosa, ou como num dos versos de Oswald: “É um navio humano quente, negreiro do mangue”. A voz de Elza rasga o poema como uma embarcação sem velas atravessando o mangue da música brasileira no que ela tem de mais pungente: o encontro do universal com o local, como foi o caso da Bossa Nova, do Tropicalismo e do Manguebeat. Provando que na casa do “purismo” estético, a arte brasileira produziu irrelevância.

A voz de Elza é suja como se estive saindo de um cemitério de sucatas, esganiçada como placas metálicas. As canções são sujas tanto nos arranjos quanto na fatura das letras. Há no disco uma sobreposição de camadas de detritos (objetos) sonoros elevando-se aos píncaros do progresso terceiro-mundista, a modernização conservadora.

Ou para lembrarmos de uma frase clássica do filme O bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), que inclusive é o tema da terceira faixa do disco: “O terceiro mundo vai explodir; quem tiver de sapato não sobra, não pode sobrar!” e este disco vai sobrar porque está descalço. Descalço dos tradicionais “calçados” da MPB: reverência asséptica ao samba “intocável”; temas musicais canonizados geralmente nas odes às cabrochas e aos cartões-postais brasileiros; as dores de cotovelos do pop e dos sertanejos ou o niilismo embotado de hedonismo do neo-indie da nova geração.

Em A Mulher do Fim do Mundo há um instantâneo de um Brasil nada ufanista. O desenho musical e as letras são um diagnóstico das metrópoles brasileiras, em especial São Paulo, na vivência fragmentada e dilacerada da consciência num dia-a-dia acachapante na grande cidade indiferente.

Nesta toada, o disco de Elza Soares fez-me lembrar do romance Eles eram muitos cavalos (Luiz Ruffato, 2001), onde a experiência da vida metropolitana é esgarçada ao limite da sobrevivência diária em um caleidoscópio de formas narrativas. A São Paulo de Eles eram muitos cavalos é a mesma de Zero (Ignácio de Loyola Brandão, 1975). As três obras conseguem captar o ethos da vida na maior cidade brasileira porque, entre outros elementos, não se rogam em fundir linguagens numa empreitada entre o texto/letras (formas internas) e a circunstância (motivos externos às obras): as experiências dos esquecidos tornaram-se verbos/músicas encarnadas em crônicas de uma sociedade altamente violenta – a brasileira.

Neste sentido, A Mulher do Fim do Mundo ganha força ao dialogar com a “rua” sem o costumeiro paternalismo ou didatismo das expressões artísticas que visam desbravar o Brasil “profundo” das periferias, sejam elas geográficas ou econômicas.

Basta observamos algumas faixas do disco para perceber a pluralidade de perspectivas que impregnam a feitura do trabalho. Logo de início há a arbitrariedade na formação da sociedade brasileira em Coração do mar.

Na canção seguinte que dá título ao disco há a dissolução na experiência festiva como catarse de uma vida (feminina) alquebrada; sem dúvida é faixa mais autobiográfica que Elza canta, num mix de samba elétrico – guitarra com tamborins: “[...] Na chuva de confetes deixo a minha dor | Na avenida deixei lá | A pele preta e a minha paz | Na avenida deixei lá | A minha farra minha opinião | A minha casa minha solidão”.

Em Maria da Vila Matilde, terceira canção do disco, uma espécie de samba-de-breque com pintadas de punk-rock, há o tema da violência contra a mulher no regaço do lar. Também há elementos autobiográficos nesta música. Não seria gratuito se [associássemos] o adjetivo “mané”, inserido pela própria Elza no fim da canção, com o jogador Mané Garrincha, ex-marido da cantora: “[…] Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim | Mão, cheia de dedo | Dedo, cheio de unha suja | E pra cima de mim? Pra cima de Moi? Jamé, mané!”.

Na quarta faixa podemos ouvir a canção que é o ponto de equilíbrio de todo o trabalho. A música Luz vermelha consegue ser o zênite do trabalho pois ela dá coerência temática e sonora ao disco. A música narra a distopia na periferia do capitalismo, o Brasil, a partir da alegoria criada por Sganzerla e retomada por Kiko Dinucci e Clima: um faroeste do terceiro mundo. Isso tudo num sambinha sujo com rompantes intempestivos de guitarra como uma balada tropical/marginal da Boca do Lixo: “[...] Bem que o anão me contou que o mundo vai terminar num poço cheio de merda [...] Tá na quebrada quebrou | e o mundo todo afundou no dia da pá virada | Do meio-dia no meio do tiroteio | Me deu receio do feio que veio lá | De ficar velho no meio do mundo inteiro | Me deu receio da bomba que vou soltar”.

Já em Pra fuder, ouvimos uma marchinha temperada de metais cadenciados sensualmente até explodir no gozo-masoquista do estribilho na dupla acepção da palavra, freneticamente, repetida: “pra fuder (5x)”. Uma trepada furtiva-intempestiva, uma “rapidinha” com gosto de culpa e apuro de tempo: “Unhas cravadas em transe latejo | Roupas jogadas no chão | Pernas abertas, te prendo num beijo | Sufoco a sofreguidão”.

Em Benedita acompanhamos a trajetória de um travesti negro do candomblé usuário de crack; inúmeras minorias em um único corpo. Porém Benedita(o) não esmorece frente às circunstâncias que o(a) querem esmagar o tempo todo. Numa parceria vocal com Celso Sim, ouvimos em Benedita um rap de início cadenciado e depois explosivo justamente quando a personagem ganha às ruas para trazer seu sustento: “[...] Ele que surge naquela esquina | É bem mais que uma menina | Benedita é sua alcunha | E da muda não tem testemunha | Ela leva o cartucho na teta | Ela abre a navalha na boca | Ela tem uma dupla caceta”.

Já em Firmeza!? há a sintaxe, “não catequizada”, das ruas de São Paulo num diálogo a partir de um encontro entre dois amigos. Firmeza!? me fez lembrar a canção de Paulinho da Viola, Sinal fechado (1970). Ambas tematizam a urgência do dia a dia na urbe que cada vez mais comprime tempo-espaço e, paradoxalmente, deixa tudo mais distante no tempo e no espaço. Só que Sinal fechado tinha o ar asfixiante do AI-5; já em Firmeza!?,um rap na dobradinha dos vocais de Elza com Rodrigo Campos num dueto-diálogo, há a malemolência do “sotaque” das ruas no “sucesso” mútuo oriundo do lulismo? Talvez: “[...] Bixo mais acontece que a gente tá tão perto um do outro daí | Pó, eu não te vejo por onde é que você anda? | Tô de bobe, que eu não te vejo nunca mermão qual é? | Essa correria toda | É a life meu, irmão é a life a life corre, corre | [...] Mas tô feliz com teu sucesso | A e eu com o seu”.

Finalmente, A Mulher do Fim do Mundo traça um paralelo com o movimento da Lira Paulistana que sacudiu o campo artístico da cidade de São Paulo durante os anos 1980. A Lira Paulistana, sobretudo nos trabalhos de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, buscava fazer um diálogo entre as vanguardas artísticas – música, design, artes plásticas, vídeo, performance – com os elementos da rua – a linguagem, a moda, os hábitos, o consumo.

Desta forma, A Mulher do Fim do Mundo mistura por exemplo a sofisticada sintaxe do Racionais MC's com a arquitetura arrojada de um Vilanova Artigas; o samba proletário de um Adoniran Barbosa com o cartaz arrojado da estética concretista; o cinema da Boca do Lixo com a literatura moderna de Oswald de Andrade; os experimentos plásticos de um Nuno Ramos com o sotaque dos saraus da periferia.

Há um verso que sintetiza a experiência de Elza Soares em A Mulher do Fim do Mundo, presente na canção, Dança: “O que me fez morrer vai me fazer voltar”. E eis aí o ofício da cantora de 79 anos que continua, pra fuder!

Capa do disco (2015)

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“Tem gente mexendo no placar”

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por Renato K. Silva - Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN

Comecei a frequentar estádios de futebol em 1998, tinha 12 anos, e era levado por meu padrasto que, tenho certeza, queria fazer-me rubro negro. E conseguiu.

Minha tenra lembrança do futebol espetacularizado – o que é veiculado na tevê e no rádio pois o futebol de rua eu já conhecia e praticava-o –, foi com a Copa do Mundo de 1994, nos EUA, eu tinha 8 anos e lembro-me nitidamente do gol de Bebeto contra os ianques, em pleno 4 de julho, nas oitavas de finais da referida Copa. À época eu não fazia ideia do feito da seleção brasileira naquele jogo, mas comemorei com minha mãe o gol de Bebeto e guardo na lembrança o beijo de amor e carinho que o número 7 deu em Romário – assistente do gol – na comemoração, dizendo: “Eu te amo”.

Dos 8 aos 12 anos você quer formar uma identidade e para uma criança brasileira crescida nos anos 1990 o futebol era a instância central de produção de identidades não apenas clubística, como também de heterosociabilidade. Quem não se lembra da música do Skank: É uma partida de futebol cujo refrão diz: “Quem não sonhou em ser um jogador de futebol?”. O clipe da música foi gravado em pleno Mineirão com Samuel Rosa vestido com a camisa do Cruzeiro em meio à torcida. Esse era o clima dos anos 1990.

Entre os 8 e os 12 anos eu buscava uma identidade clubística. Meus tios – por parte de minha e os quais eu tenho uma estreita relação afetiva – torcem para o Santa Cruz e eu achava bonito o escudo do time tricolor. Mas o Sport era o time do meu padrasto e a partir da segunda metade dos anos 1990 começou a ganhar tudo. Coincidiu de minha ida a campo, para ver os jogos do Leão, as sucessivas vitórias e os subsequentes títulos. Para termos uma ideia, em 15 anos - de 1996 a 2010 - o Sport faturou dois penta-campeonatos.  

Talvez o impulso decisivo para eu começar a torcer para Sport foi o tri-campeonato Pernambucano de 1996, 1997, 1998. Até pouco tempo eu tinha o pôster do time campeão de 1996 afixado na parede do meu quarto: Albérico, Ildo, Chico Monte Alegre, Dedé, Rogério, Wallace, Leomar, Chiquinho, Dário, João Paulo e Luís Muller. Técnico: Hélio dos Anjos.

Em 1997 eu tinha 11 anos e começava a nutrir um carinho pelo Sport. Gostava do futebol vistoso de Wallace e da técnica intricada de Jackson e, claro, dos gols de Leonardo – o terceiro maior artilheiro da história do Sport com 136 gols. Este que tinha voltado ao time depois de três anos jogando em outros clubes.

No ano seguinte, 1998, o Governo do Estado institui o Todos Com a Nota e os estádios começaram a transbordar de público. Lembro-me de um jogo, no dia 15 de mar. 1998, há 18 anos: Sport 2 x 0 Náutico, no Arruda, cujo público oficial foi de 80.203 mil torcedores, mas acredito que tinha mais, bem mais. E eu estava lá sendo espremido nas gerais e extasiado com o futebol que o Sport apresentou naquele ano.

O campeonato de 1998 tinha três turnos, o Sport ganhou o três jogando o fino da bola. Não deu para ninguém, tri-campeão invicto. No último jogo, na Ilha do Retiro, o Sport enfrentou o Porto. A equipe de Caruaru foi a segunda colocada naquele campeonato. O placar do jogo: Sport 2 x 0 Porto. Dois gols de Irani, o primeiro cobrando falta e o segundo pegando de primeira o passe na entrada da área dado por Leonardo. Público: 56.875 mil torcedores, o maior da história da Ilha do Retiro. 

Neste dia do jogo contra o Porto, eu ia primeiro me perdendo do meu padrasto, depois, quase era esmagado pela turba de torcedores que não paravam de chegar à Ilha. Por questão de segurança, os Bombeiros junto com a PM abriram as grandes que dão acesso à área dos torcedores visitantes. Assistimos o jogo na área destinada à torcida do Porto. Detalhe: hoje o público máximo na Ilha do Retiro é de 35 mil torcedores, no dia, havia mais de 21 mil torcedores em cima da capacidade máxima de hoje. A estrutura física do estádio permanece a mesma. De onde estávamos - lado do placar - podíamos ver defronte o espetáculo da Torcida Jovem entoando Maracatu Atômico: "O bico do Beija-Flor..."

De 1998 pra cá passaram-se quase vinte anos. Com o tempo foi-se também o futebol “irresponsável” dentro e fora das quatro linhas, os públicos faraônicos e gente, muita gente. Dentre estas: o locutor Adilson Couto cujo bordão dá título a esta crônica e, no último dia 1 do março corrente, o ex-atacante rubro-negro Leonardo. Toda vez que lembro do estribilho: “Teeem gente mexxxendo no placar!” lembro-me dos gols de Leonardo. Dos gritos, das cervejas, do som do gavião da Rádio Jornal anunciando o tempo do jogo e o placar, das resenhas na escola...


Leonardo talvez foi o último atacante rubro-negro do período do futebol moleque, maloqueiro, brincalhão, irreverente, que não se levava tão a sério. Teve a falta de sorte de jogar numa época de alguns gênios da grande área do futebol brasileiro: Romário, Ronaldo, Edmundo, Túlio, Luisão, Evair... do contrário, teria alçado voos maiores na carreira. Some-se a isso o fato de que naquele tempo o futebol nordestino não tinha praticamente visibilidade. André, ano passado com a camisa do Sport, pela Série A, fez treze gols e ganhou uma repercussão internacional. Se fosse nos finais dos anos 1990, certamente não teria esta vitrine toda.

Dias depois da morte de Leonardo pude perceber como a geração dele foi fundamental para formar e formatar um tipo de torcedores rubro-negros: os que estão na casa dos 30 e cresceram vendo o time ser campeão e, talvez por isso, seja uma torcida exigente, chata e cheia de bico. Leonardo e seus coetâneos formaram torcedores acostumados a vencer, a sorrir, a ter a leveza do futebol brincalhão, a resenha e a paixão incondicional plasmada no lema: Pelo Sport, Tudo! Leonardo era o cara que mexia no placar. Obrigado, Leo Gol!


            

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