Sob o signo de Susan Sontag
por
RENATO K. SILVA
Os Diários (1947-1963) da escritora e
ensaísta norte-americana descendente de judeus, Susan Sontag (1933-2004), lançados
no Brasil pela Companhia das Letras (2009) com a tradução de Rubens Figueiredo,
nos dão uma mostra dos anos de formação da autora de A doença como metáfora.
São
páginas marcantes que narram os primeiros anos de juventude até o início da
vida adulta. Neste ínterim: a descoberta do sexo; da literatura clássica; do
cinema; do teatro; da filosofia e, acima de tudo, dos momentos político-sociais
que estavam perpassando o mundo ocidental naqueles anos do pós Segunda Guerra.
E é
neste contexto que S. Sontag desperta para o mundo do espírito, das
humanidades, em um período que em breve anunciaria a revolução comportamental
dos anos 1960, justamente em um dos seus epicentros: a Califórnia.
É
pertinente a leitura dos Diários sobretudo
para quem tem interesse na crítica genética de análises biográficas, nos
estudos culturais, pelo gênero memorialístico – tão escasso na literatura
brasileira –, ou simplesmente por interesse estético, pois são relatos
confessionais dignos de um espírito em plena ebulição.
Susan
Sontag fez parte da segunda geração de judeus que migraram para os EUA,
especialmente no final do século XIX, nas inúmeras diásporas judaicas que
miraram o outro lado do Atlântico para, como se dizia no século passado, “fazer
a América”. Desta forma, se viva, ela estaria na mesma faixa etária de um Woody
Allen, ou Philip Roth, artistas contemporâneos e da mesma origem religiosa da
escritora e ensaísta.
Com
efeito, Susan Sontag nunca fora caudatária de nenhum credo religioso ou assecla
ferrenha de qualquer ideologia política. Neste sentido, os Diários dão uma mostra de como ela tinha um interesse intelectual
múltiplo. Era uma espécie de camelão do reino do simbólico. Passava da Flauta Mágica de Mozart a um romance de
Jean Genet como quem troca de roupa.
Em
1983, Susan Sontag aparece no início do filme Zelig escrito e dirigido por Woody Allen. Ela tece um depoimento,
junto com outros intelectuais e escritores como Saul Bellow, sobre o personagem
homônimo criado por W. Allen, Leonard Zelig, um homem com a estranha habilidade
de metamorfosear-se em qualquer pessoa que chega-se próximo a ele, exceto as
mulheres, e que estava em vários locais onde aconteceram diversos eventos importantes
nos dois primeiros quartéis do século XX, nos EUA. Na segunda metade do século
XX, poderíamos dizer que Susan Sontag fora uma espécie de Zelig do mundo intelectual
norte-americano e a prova disso está nos seus Diários.
Os Diários foram organizados pelo filho
único de S. Sontag, o também escritor David Rieff, filho dela com Phillip Rief,
professor de filosofia de Sontag que a conheceu quando esta fora sua aluna na
Universidade de Chicago. Em seguida, casaram-se e tiveram D. Rieff. Susan tinha
18 anos quando se casou.
Os Diários começam no ano de 1947, quando Sontag
ingressa na Universidade da Califórnia, em Berkeley, para estudar Letras, com apenas
16 anos recém completos. A precocidade de Sontag é assustadora e sua ambição em
prol da fruição da alta cultura é vertiginosa. Para termos uma ideia, aos 16
anos ela tem sua primeira experiência sexual com escritora e modelo Harriet
Sohmers Zwerling e pouco depois, “entrevistou” (uma conversa informal) Thomas
Mann, na ocasião, erradicado na Califórnia. O escritor alemão era uma das suas
paixões literárias nos, digamos assim, “verdes anos”.
Com
a sucessão temporal dos Diários, podemos
perceber as mudanças não apenas nas preferências estéticas de Sontag, como
também na sua forma de escrever que vai ganhando contornos mais “enxutos”.
Porém, os Diários mostram uma
intelectual que claudica em seu foro íntimo. A postura séria e contundente da
ensaísta ferrenha na esfera pública – debatendo assuntos como a fotografia, as
guerras que seu país entrou durante o século passado, a doença (câncer e AIDS)
entre outros temas – contrastam com as hesitações da escritora frente às
circunstâncias que atravessou durante os anos de formação, em especial, com o
casamento:
“Sobre o casamento: É só
isso. Não tem mais nada. As brigas + o carinho, infinitamente reduplicados. Só
que as brigas têm uma densidade maior, diluindo a capacidade de carinho”
(SONTAG, 2009, p. 79).
Sontag
pôs em testamento que seu espólio (arquivos) fosse doado para a Universidade da
Califórnia. Desta maneira, coube ao filho David Rieff organizar os mais de cem
cadernos que compõem os Diários da
escritora morta em 2004 em decorrência de um câncer. Sua morte virou ensaio
fotográfico feito por sua companheira na época, a fotógrafa Annie Leibovitz,
durante o período de tratamento e morte subsequente no hospital.
David
Rieff que também escreve o prefácio dos Diários,
além de organizar a publicação deles. Afirma que tomou a iniciativa de lançar o
material póstumo, mesmo tendo conteúdos divergentes com seus os interesses – a
intimidade escancarada de sua mãe em sua relação com Phillip Rieff, pai de
David – resolveu topar o desafio de lançá-lo alegando que se não o fizesse,
outra pessoa o faria.
Os Diários descortinam os anos de formação
de Sontag em uma espécie de Bildungsroman
confessional. Suas imersões na literatura e música clássica e contemporânea nos
apresentam o gosto versátil da escritora que nos anos subsequentes irão
transformá-la numa das intelectuais mais ativas do seu tempo. Em uma mistura
até então incomum de: altura cultura dialogando com o universo da indústria
cultural (publicidade, tevê, cinema comercial, fotografias, Pop Art e outros gêneros da cultura de
massas).
Ao
mesmo tempo que lemos sobre as inúmeras referências que compõem o gosto de Sontag,
podemos perceber os rasgos de autoestima após alguns períodos de baixo-estima
sobretudo em relação à beleza física que, achava-a aquém das suas aspirações,
como neste depoimento do dia 23/5/49, quando Susan tinha 17 para 18
anos:
“Agora conheço um pouco
da minha capacidade... Sei o que quero fazer da minha vida, e tudo isso é tão
simples, mas era tão difícil para mim saber no passado. Quero dormir com muitas
pessoas — quero viver e ter ódio de morrer — não vou lecionar, nem fazer o
mestrado depois da graduação... Não pretendo deixar que o meu intelecto me
domine e a última coisa que quero é cultuar o conhecimento ou as pessoas que
têm conhecimento! Não dou a mínima para o acúmulo de fatos de ninguém, exceto
quando se tratar de uma reflexão sobre sensibilidade elementar, de que eu de
fato preciso... Quero fazer tudo... ter um modo de avaliar a experiência — se
me causa prazer ou dor, e tenho de ser muito cuidadosa quanto a rejeitar a dor
— tenho de perceber a presença do prazer em toda parte e encontrá-lo também,
pois ele está em toda parte! Quero me envolver completamente... tudo é
importante! A única coisa a que renuncio é a capacidade de renunciar, de
recuar: a aceitação da mesmice e do intelecto. Eu estou viva... eu sou linda...
o que mais existe?” (Ibid. p, 31-32).
Podemos
perceber a formação, nos Diários,
desta inteligência sui generis quando
nos deparamos com Sontag entrando em salas de cinema comerciais; vendo
espetáculos de teatro de toda a sorte; ouvindo inúmeros concertos musicais
entre outras iniciativas da indústria cultural das cidades em que viveu: Califórnia,
Chicago, Nova Iorque, Londres, Paris isso para ficarmos apenas nos anos de
formação que compreendem os Diários,
pois sabemos que a “veia” cosmopolita da autora de Questão de ênfase aumenta com o passar dos anos.
Entretanto,
em todas estas cidades Sontag acompanhou a vida acadêmica, ora como aluna de
diversos cursos e seminários que vão da filosofia analítica de Ludwig
Wittgenstein ao pensamento cristão de Søren Kierkegaard, passando, a partir da
década de 1950, no casamento com P. Rieff, à escrita de um livro sobre Sigmund Freud,
em seguida aos esboços do seu famoso ensaio, Contra a interpretação. Tudo isso somado ao estreito convívio com a
intelligentsia do seu tempo nas
diversas cidades onde viveu, seja por meio de relações epistolares ou de
jantares, conferências ou conversas informais em cafés.
Com
relação à literatura, Sontag fora uma leitora arguta. Pontua os Diários todo o seu esforço em empreender
uma leitura sistemática da literatura do seu tempo e dos clássicos, com enfoque
na literatura alemã. Não é à toa que ela sente-se lisonjeada quando o seu
orientador em Oxford, o filósofo Stuart Hampshire, diz que os americanos – se
referindo à Sontag – são demasiados sérios como os alemães. A sutil crítica do
professor inglês soou como elogio para ela.
O
convívio com a literatura por parte de Sontag chega ao paroxismo quando aos 15
anos ela já tinha lido o romance de Thomas Mann, A montanha mágica. Outro ponto de convivência íntima com a
literatura, está presente na “encenação” que ela faz da narrativa homérica, Ilíada para o seu filho David quando
este ia dormir. Entre os vários enxertos que povoam os Diários um diz muito sobre a disciplina “monástica” que Sontag
tinha para si mesma como um ato de fé: “Não me importa se fica horrível. O
único modo de aprender a escrever é escrever” (Ibid., p, 80). Além disso, ela
guardava duas horas diárias dedicadas à escrita.
Um
fator candente da razão do divórcio dela com Philip Rieff era a sua total
inadequação à vida matrimonial (dona de casa cindida entre o intelecto/marido e
sexo/esposa), além das inúmeras discussões que haviam no casamento como podemos
constatar no decorrer da leitura. Sobre a vida matrimonial, os Diários escasseiam-se a partir do início
de 1950, período do início da vida a dois, aparecendo apenas alguns trechos
sobre os conflitos com o marido: “No casamento, todo desejo se torna uma
decisão” (Ibid., p, 66). Após o fim do casamento em 1957, a escrita de Sontag
ganha contornos mais “leves”. Ela volta a escrever com mais regularidade e com
um tom menos “carregado”.
No
período pós-casamento, ela começa a descrever pormenorizadamente os seus
afazeres diários – comer, ler, escrever, lavar roupas, preparar viagens, mandar
cartas, ir aos correios, tirar dinheiro do banco, tomar um táxi etc. – parece
que a vida de dona de casa estava “inviabilizando” seus projetos profissionais.
Neste ano, ela parte para estudar em Oxford e a vida na Europa descortina-se
para ela com todo o esplendor da Era de
Ouro do Capitalismo (1945-1973), como diria o historiador marxista inglês,
Eric Hobsbawm.
Os Diários fazem pouca referência à
infância da escritora e sua relação com à religião de sua família, o judaísmo.
Sobre a opção religiosa de Sontag, as páginas dos Diários não dão muita pista. No primeiro momento ela escreve,
“deus” (“com minúscula mesmo porque ele não existe” [p. 13], segundo ela). Em
seguida, transita por sendas do Cristianismo em uma perspectiva de curiosidade
intelectual. Outras vezes, faz interjeições com: “meu Deus!” (desta vez com
maiúsculas). A tantas dos Diários,
lemos ela apreciando carne suína – o que indica a sua não filiação ao judaísmo
praticante: “Levei o material para a Mandrake para ser embrulhado, + vou ligar
para saber na terça de manhã. Fiz uma refeição decente (costeletas de porco e
camarões em molho de soja + cogumelos pretos) no Young Lee, por 2,79 dólares”
(Ibid., p. 101).
Por
fim, o biógrafo de Clarice Lispector, Benjamin Moser em matéria escrita à Folha de S. Paulo, em 3 de fevereiro de
2014, que está preparando a biografia de Susan Sontag, afirma que a escritora
norte-americana morou em várias cidades do mundo e conheceu inúmeras outras.
Seu arquivo na Universidade da Califórnia (Berkeley) reflete a natureza
irrequieta de sua dona – um caleidoscópio de referências e suportes midiáticos
que vão de canhotos de passagens, recortes de jornal a HDs com mais de 17 mil
e-mails salvos. É por estas e outras que Susan Sontag foi uma Zelig do
pensamento ocidental da segunda metade do século passado, e seus Diários dão uma prova viva deste
intelecto plural.
REFERÊNCIAS
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos, o breve Século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
HOMERO, Ilíada.
São Paulo: Penguin Companhia, 2013.
MANN, Thomas. A montanha mágica. São Paulo: Nova Fronteira, 2006.
SONTAG, Susan. Diários (1947-1963). São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ZELIG. Direção: Woody Allen. FOX - SONY DADC, 1983. DVD (60 min).
___________________________
Escritor e doutorando em Ciências Sociais
(PGCS-UFRN)
0 comentários: