Pai policial contra Mãe da periferia

30.12.15 Pássaro Bege 0 Comentarios



Em Pai contra Mãe, cose-se uma crônica que infelizmente insiste em prevalecer entre nós. Penso aqui na semelhança entre a história de Cândido e as de alguns policiais nas periferias de nossas cidades. Lembro, contudo, que o contexto histórico que promoveu o encontro entre Cândido e Arminda na descida da S. José, na crônica de Machado e os encontros contemporâneos entre os policias e as mães das periferias não é o mesmo, leia crônica se ainda não a leu. Entretanto, o que me autoriza essa leitura interessada de Pai contra Mãe, hoje, prestes a findar-se o ano de 2015, é o esforço de problematizar a contínua saga dos pobres que matam outros pobres; só que agora, no lugar da corda, o fuzil; no lugar dos “caçadores de escravo”, homens fardados; no lugar da recompensa do Senhor; bônus por desempenho e as bênçãos dos moradores dos condomínios fechados e do Estado democrático de direito na figura do Secretário de Segurança Pública. Quem me autoriza a isso é o próprio Bruxo do Cosme Velho, quando, no início de Pai contra Mãe, adverte: “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais”. Assim, interesso-me aqui pela economia dos sentimentos despertados na crônica, para pensar o que ocorre hoje com alguns policias em suas abordagens nas favelas do país. Não é caso de dizer que moram de favor ou que sejam "Cândidos", a falta de estabilidade que os acomete não é em relação ao ofício, mas em relação às suas vidas e aos seus dedos nervosos. Em tempo, como bem nos ensina Machado, tomo de empréstimo a figura dos policiais contra as mães das periferias, para pensar a Polícia enquanto instituição, recusando o desejo hipócrita de apedrejamento dos “Canoas” em particular, recusando-me nessa toada a vê-los como inimigos em si, mesmo reconhecendo que devam ser responsabilizados. O que quero ressaltar é que há um gerenciamento sobre as nossas formas de sentir e agir, que exige de nós vigilância, para que, querendo aprender depressa, não aprendamos mal, do contrário, seremos sempre parecidos com Tia Mônica, juízes que advertem no outro o que em nós mesmos é latente, por insistirmos, cinicamente, em desconhecer a complexidade que constitui nossos ofícios e aparelhos diários de tortura e barbárie. Tudo isso, para que a máxima “nem todas as crianças vingam”, não vingue; para que os oprimidos se reconheçam e (re) costurem juntos os retalhos do nosso trágico tecido social.

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A noite do tambor silenciado: a saída de Gilmar Bola Oito da Nação Zumbi

23.12.15 Unknown 0 Comentarios



com o nó na garganta

e a imagem indo embora
da boca pra fora
já de segunda mão


Matéria do "Caderno C" do Jornal do Commercio, do dia 20/12/2015, noticia que Gilmar Bola Oito, antigo membro da Nação Zumbi, foi tirado da banda. A informação, é claro, repercutiu no cenário cultural pernambucano, e foi recebida com espanto por parte significativa do público. Bola Oito foi um dos fundadores do "Chico Science & Nação Zumbi" - no nem tão remoto fim do anos 1980. Isso parecia lhe conceder um lugar cativo no grupo.

Outro fator que contribuiu para o espanto foi o conteúdo da matéria: o músico estaria recebendo tratamento desigual (inclusive financeiro) perante os outros integrantes e seu afastamento teria sido decretado por meio de uma reunião da qual ele não participou - o próprio resultado da reunião não lhe teria sido comunicado por nenhum de seus ex-companheiros, mas pela empresária da banda, Ana Almeida.

Se é inegável que houve surpresa, não se pode dizer que ela foi absoluta. No máximo, relativa. Isso porque numa entrevista de agosto, publicada nas mesmas páginas de cultura do mesmo jornal, Bola Oito já manifestava seu descontentamento com a perda de protagonismo e de prestígio dentro do grupo, o que dá indícios de um desgaste que se acumulava há tempos. De qualquer forma, no momento em que seu desligamento é divulgado, e nas circunstâncias particulares em que isso ocorreu, a pergunta que emerge é: "o que ocasionou a saída de Gilmar Bola Oito?"

Bem se sabe que as questões internas e o relacionamento interpessoal entre os membros tem uma força enorme na desunião de um grupo musical -  o que pode culminar tanto com o fim dele ou com a saída de um dos integrantes. Mas o caminho que quero delinear aqui é um pouco distinto, e mais do que saber um motivo imediato que teria catalisado a sumária demissão de Bola Oito, o que interessa é entender o que teria possibilitado a sua saída.

Não é mistério para ninguém o processo de formação da banda "Chico Science & Nação Zumbi": Chico Science, vocalista do grupo "Loustal", conhece o conjunto percussivo "Lamento Negro", que lhe foi apresentado por Gilmar Bola Oito. Ao entrar em contato com o "Lamento Negro", parece ficar claro para Chico Science o seu projeto musical: a mistura entre elementos regionais e tradicionais e da cultura pop urbana lhe soava como a combinação perfeita. Advém daí o epíteto de "alquimista dos ritmos" que Chico carrega até hoje.

O ponto importante é que a denominação que o diferencia no cenário da música brasileira também serve para definir o papel que ele desempenhava dentro da banda: era Chico quem punha em "amálgama perfeito" as aspirações dos meninos mais afinados com o rock de garagem (Dengue, Lúcio Maia) e com o pessoal mais ligado à música regional (Bola Oito, Gira). Com a morte dele, e o advento da liderança interna de Jorge Du Peixe, o primeiro projeto é que parece ganhar mais espaço em detrimento do segundo.

É claro que a morte de Chico, o líder nato, afetaria os rumos sonoros da banda de maneira definitiva. O próprio Dengue reconhece isto. Mas sem o "alquimista" já não seria possível equalizar de maneira satisfatória os dois projetos sonoros que estão na gênese da banda. O centro gravitacional do grupo então passa a ser o quarteto Du Peixe, Pupilo, Lúcio e Dengue.

O projeto destes quatro parece querer conferir à banda uma identidade mais de rock, com forte influência do dub e largo uso de feitos sonoros de música eletrônica. A pecha de "banda de maracatu" que o conjunto conseguiu dos críticos menos sofisticados parecia incomodar os referidos membros, e era disto que eles queriam se distanciar - aliados à clara necessidade de sair da sombra de Chico Science e de se acomodar ao estilo mais cadenciado do vocal de Du Peixe. Aqui temos um dos muitos momentos em que o grupo manifesta este desejo.

Não que as alfaias - instrumento de Gilmar Bola Oito - estivessem fora da sonoridade da banda, mas elas tiveram seu papel subsumido ao projeto rock do grupo. Isto é, não tinham mais autonomia de reivindicar uma sonoridade regional - salvo em raríssimas exceções, como em "Quando a Maré Encher" e em "Meu Maracatu Pesa uma Tonelada". Mas, é claro, o programa de uma sonoridade mais "seca", onde os instrumentos e elementos regionais estavam, de certo modo, "esterilizados", foi sendo paulatinamente construído.

O Rádio Samba, de 2000, é marcado pela forte sonoridade eletrônica, mas a versão da música de Fábio Trummer saciou o desejo dos fãs por algo mais frenético. O primeiro álbum homônimo da banda Nação Zumbi, de 2002, consegue agradar por conter músicas mais simples, leves e ao mesmo tempo mais rápidas - é o disco dos "hinos" da fase pós-Chico, como exemplo temos "Propaganda" e "Blunt Of Judah". O "projeto rock", no entanto, parece alcançar forma, de fato, no monocromático "Futura", álbum de 2005. Neste, é possível perceber músicas lineares, sem muitas alterações de ritmo, ao mesmo tempo em que alfaias estão bem tímidas - acompanhando tenazmente a bateria de Pupilo. O disco não caiu nas graças nem do público e nem da crítica - apesar de um modesto reconhecimento tardio ter ocorrido.

O "efeito Futura" fez com que a banda se concentrasse no "Fome de Tudo" (2007). O grupo sai do P&B ao multicor, visual e sonoramente. "Fome de Tudo" não é, nem de longe, pop e acessível, como definiu Jorge Du Peixe, na ânsia de dar um novo contorno à banda. Mas ele é, sem dúvida, um disco mais trabalhado, com muitas variações de ritmo e plasticamente melódico. Talvez o ponto alto da fase pós-Chico.

Depois disso o grupo entra num hiato de produções que só se encerraria ano passado, 2014, com o lançamento do segundo álbum homônimo. Talvez o título da primeira música, "Cicatriz", defina bem o que é esse trabalho: algo vitorioso, a cesura que costurou o despertar da banda depois de anos de ausência dos palcos, e algo ressacado, como se a força e o vigor ainda não estivesse plenamente restabelecidos. Este também parece ser um disco em que a banda quer se imiscuir no grosso das produções locais dos últimos anos, trazendo uma sonoridade muito semelhante à dos trabalhos solos de Otto ("Certas Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos", 2009) e Lirinha ("Lira", 2012), ambos produzidos por Pupilo. As alfaias, mais uma vez, retraídas em sua pujança.

Portanto, o protesto público de Gilmar Bola Oito, há quarto meses, pela perda de força nas decisões da banda, que dá notícias de um crescente escanteamento, e, agora, a denúncia de que teria sido expulso e o claro descontentamento pelo  modo como isso se deu, pode ser entendido à luz do caminho que a Nação Zumbi trilhou depois da inesperada morte de Chico. O Bola Oito descolado ou anacrônico é fruto do enfraquecimento de um projeto musical, outrora vigoroso, que conferia espaço singular à sonoridade regional. Uma vez que um, o projeto, perde protagonismo sonoro, o outro, o músico, já não é mais necessário. Seria esta a lógica por trás da saída de Gilmar Bola Oito?
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Rosano Freire, doutorando em Ciências Sociais pela UFRN

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A cultura do tapetão

21.12.15 Cabotino 0 Comentarios


por Renato K. Silva

Na noite de 10 de maio de 1938, havia festa na antiga sede do Senado, no Rio de Janeiro, onde o na época Ministro da Justiça Francisco Campos comemorava com seus correligionários e figurões locais, o aniversário de seis meses da Constituição Federal que implementou o Estado Novo – um golpe político que inaugurou a Terceira República brasileira a partir de uma forte centralização do poder nas mãos do Executivo e que duraria até 1945. 

Na mesma noite, do outro lado da cidade, o presidente Getúlio Vargas repousava no Palácio Guanabara. O presidente utilizava o Palácio do Catete como gabinete de trabalho durante o dia e o Guanabara como residência, ou seja, o presidente dormia no Guanabara.

Enquanto a noite avançava, Vargas e Alzira, sua filha, não imaginavam o que iria acontecer: um grupo de insurgentes ligados à Ação Integralista Brasileira (AIB) preparava uma invasão ao Palácio da Guanabara com o intuito de assassinar Vargas. 

O grupo toma o Guanabara de assalto e investe contra a edificação aos tiros. Eles cortam a energia elétrica mas erram ao não cortar também a linha telefônica. Com isso, Alzira consegue entrar em contato com algumas autoridades policiais da cidade que vêm em socorro ao chamado, sobretudo capitaneadas pela figura do Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra que, saindo de casa consegue arregimentar ao longo do caminho soldados para atender ao pedido de Alzira.

Enquanto a ajuda não vinha, Vargas acatou o pedido de Alzira: 

‘“Papai, por que não tentamos o túnel que liga o palácio às dependências do Fluminense?’ O túnel secreto passava por baixo dos jardins do palácio e desembocava no estádio do clube, onde Alzira supunha que os reforços esperados estivessem a postos — talvez até já tivessem entrado por lá e se aproximassem do prédio. Vargas aprovou o plano, mas logo descobriu que a porta para o túnel estava trancada’” (LOCHERY, 2014, p. 34).

A tentativa de invasão dos insurgentes duraria até às cinco da manhã quando finalmente a polícia toma o Palácio da Guanabara e dispersa o que restou dos sublevados pró AIB. O motim deixou o saldo de sete mortos e a possibilidade, felizmente gorada, de explodir a porta que ligava o Palácio ao estádio do Fluminense. Na última hora, o secretário de Vargas localiza um porteiro que tinha a chave da porta e assim a polícia junto com o Ministro Dutra - que estavam do outro lado do túnel, nas dependências do Fluminense -  conseguem abri-la e resgatar os palacianos. 



Fiz esta breve digressão histórica com o intuito de apresentar ao leitor o que nomeei no título deste texto, A cultura do tapetão. Pois bem, a nomenclatura tapetão surgiu no léxico brasileiro a partir do Fluminense Football Club:

“O Fluminense não só foi salvo de dois rebaixamentos pela Justiça Desportiva como também é o clube que inventou o tapetão. Em 1969, um advogado entrou na Justiça comum para pedir a absolvição de Flávio, atacante que havia sido expulso em um clássico contra o Vasco. O juiz entendeu que era inconstitucional punir um cidadão brasileiro sem direito de defesa e absolveu Flávio, que enfrentou o América no jogo seguinte e fez gol. O Jornal dos Sports estampou uma foto do tapete do tribunal, dizendo que o Flu tinha recuperado no tapetão vermelho o que perdera no tapete verde” (apud. ROSSI; MENDES, 2014, p. 79)

A cultura do tapetão tem o seu vernáculo inaugurado com o Fluminense, mas sua prática é antiga: no Brasil, os ganhos políticos de parte significativa das elites não são caudatárias de ações republicanas, aqui, ou ganha-se na bala ou o tapetão. Isto é, no Brasil o Estado é de direito oligárquico.

E é simbólico que a saída para um dos momentos mais críticos do Estado Novo - cujo chefe, Getúlio Vargas, tomou o poder à bala em 1930, permaneceu contrário à democracia por meio do tapetão em 1937, e só veio ser democraticamente eleito em 1950 - tenha se dado pelo túnel que dá acesso ao estádio do Fluminense, na referida noite de 10 de maio de 1938. E não seria o Fluminense o time da elite carioca, conhecido também como “pó de arroz”, e que futuramente ficaria conhecido como o “time da virada de mesa” a partir dos “subterrâneos/tuneis” do combalido e maleável, no tocante aos interesses das elites futebolísticas, aparato regulador do futebol brasileiro: Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Vargas estava sendo encalacrado naquele ano (1938) por um grupo político que a literatura historiográfica chama de golpista, os Integralistas. Três anos antes fora o caso da Intentona Comunista (1935) que também tentou derrubar o governo Vargas, e que ademais são chamados de golpistas. Ora, pergunto-me, não era Vargas (até 1950) também um golpista? Há uma prática corriqueira em nossa cultura política: tenta-se restabelecer a democracia com golpe. 

No Brasil, historicamente, os golpistas assentam praça tanto à direita quanto à esquerda do espectro político. 

Há em nossa história uma sobreposição dos interesses e das práticas das elites sobre as camadas da base da pirâmide social. Ou seja, a cultura do tapetão surge em nossas elites e espraiou-se para as sendas das classes subalternas. Porém, não devemos ver este movimento de maneira mecânica na relação de causa e efeito: não é por que uma parte significativa da elite brasileira não segue os ritos do jogo democrático/republicano que as classes inferiores irão tomar o mesmo caminho. 

A cultura do tapetão surge em nossas elites mas não é só praticada por elas. Agora, seu uso é mais danoso ao País quando ela é praticada pelas elites porque envolve vultuosos recursos materiais e simbólicos que vão desde a permanência do jogo democrático, à absolvição pela Justiça de políticos ou de grupos empresarias que desviaram milhões/bilhões do erário público. 

Hoje nos encontramos em mais uma das encruzilhadas políticas que o Brasil mesmo costuma, estupidamente, se postar: deve seguir a regra do jogo democrático/republicano ou atender aos interesses de parte da elite econômica/política que, costumeiramente, querem vencer na bala ou no tapetão quando perdem nas urnas ou no gramado? 

É de bom-tom ficarmos alertas aos desdobramentos da cultura do tapetão nos próximos dias. Será que teremos (outros ou novos) encontros nos “subterrâneos” dos “túneis” da política brasileira? Quem será o chaveiro que abrirá a porta do “túnel” que liga os golpistas aos militares do outro lado? Olho vivo e faro fino porque os palácios e as corporações sobretudo de mídia (elites) estão confabulando contra os interesses da rua (democracia). É hora de detectar quem está no tapete vermelho (tapetão) e quem está no tapete verde (quem vai "limpo" na bola) da democracia. 

REFERÊNCIAS
LOCHERY, Neill. Brasil, os frutos da guerra. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
ROSSI, Jones; MENDES, Leonardo, Jr. Guia politicamente incorreto do futebol. São Paulo: LeYa, 2014. 

Foto: Vista aérea do Palácio Guanabara às margens do estádio das Laranjeiras (Fluminense). Crédito: Google Imagens.

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Escritor e doutorando em Ciências Sociais (UFRN).

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Minha infância segundo um auto-outro-narrador

12.12.15 Cabotino 0 Comentarios


por Renato K. Silva             

Antes de iniciarmos a análise do romance Infância cabe dizer que este trabalho de J. M. Coetzee é a primeira parte de uma trilogia chamada, Cenas da vida na província que conta com os títulos Infância, Juventude e Verão. E que pretendemos desenvolver futuramente as análises dos outros dois títulos que se comunicam não apenas no tocante à trajetória do personagem, o próprio Coetzee “alterado” não apenas no sentido inerente ao processo ficcional como também no que tange à “alteridade” da própria narração (eu vs. outro ou eu/outro), como também na continuação e no desenvolvimento da forma narrativa sui generis desta trilogia: o auto-outro-narrador.  

As memórias da infância do escritor sul-africano ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2003, John Maxwell Coetzee, contidas no seu livro Infância (1997) cenas da vida na província I[1] – são reminiscências comuns a um escritor – ou qualquer pessoa – que faça o exercício de resgate do conjunto de imagens e lembranças de quando era criança. Entretanto, o que há de estranho nos relatos de J. M. Coetzee é a sua escrita em terceira pessoa, numa espécie de auto-outro-biografia, ou narrador-outro. No trecho destacado a seguir, podemos perceber claramente o recurso formal do qual falamos:

“ELE NÃO CONTA NADA para a mãe. Sua vida escolar é guardada em segredo absoluto. Ela não vai saber de nada, decide, a não ser o que estiver no boletim trimestral, que será impecável. Ele será sempre o primeiro da classe. Seu comportamento será sempre muito bom, e o aproveitamento, excelente. Enquanto o boletim dele for irretocável, ela não terá o direito de perguntar nada. É o contrato que ele estipula mentalmente”. (Ibid. p. 9)

Logo de início, o leitor é envolvido numa atmosfera de estranhamento porque mesmo não conhecendo minimamente a biografia do escritor sul-africano, percebe-se que ele está referindo-se a sua própria história, só que na terceira pessoa. É como se o narrador onisciente – típico das narrativas em terceira pessoa – claudicasse frente à primeira pessoa que insiste em irromper o tempo inteiro na história.
  
J. M. Coetzee nasceu na Cidade do Cabo, África do Sul, em 1940, é filho de descendentes de holandeses, em casa falava inglês; com os demais parentes, falava africânder – uma língua remanescente do período em que a Holanda colonizou uma parte da África. Adentrando a narrativa de Infância, percebemos que além da tensão com o idioma na escola, em casa e com os demais parentes, Coetzee fora fustigado pelo conflito religioso e étnico por conta do Apartheid no país. 

Em Infância, constatamos como Coetzee viveu em um torvelinho de mal-entendidos que, muitas vezes, fora praticado por ele mesmo. Como no caso em que disse na escola que era católico, sem saber nada a respeito do que consistia sua afirmação. A partir daí, ele será perseguido por todos, inclusive pelos garotos católicos que nunca o viam na missa, além dos protestantes e pelos judeus, minoria na escola e em Worcester – pequena cidade em que a família Coetzee se mudara após o fim da Segunda Guerra, cujo pai do escritor Zacharias Coetzee, fora um ex-combatente. 

A família Coetzee consistia no já mencionado pai – veterano de guerra, advogado e funcionário do governo sul-africano, só que na época da narrativa, ele trabalhava para a Conservas Standard, propriedade de um judeu, o único que a família tinha deferência por conta da condição de empregador do pai. A mãe do escritor, Vera Wehmeyer, professora numa escola secundária, mulher de hábitos pouco-ortodoxos para a sociedade sul-africana da época, como no trecho em que ela compra uma bicicleta e, por isso, é rechaçada publicamente e privadamente por acreditarem que ela fracassaria na prática pelo simples fato de ser mulher. Além dos pais, Coetzee tinha um irmão caçula.

Por meio de Infância podemos vislumbrar um pouco da natureza reservada e do modo de vida “monástico” que J. M. Coetzee cultiva na vida até hoje. Homem de poucas falas, entrevistas e aparições públicas – não foi receber, por duas vezes, o Prêmio Man Booker Prize for Fiction, um dos mais prestigiados da língua inglesa. Dizem que nunca bebeu, nunca fumou, não come carne vermelha e faz longas pedaladas de bicicleta por dia em sua atual cidade, Adelaide, localizada na Austrália, onde trabalha como pesquisador honorário desde 2003, no Departamento de Língua Inglesa da Universidade de Adelaide.

Em Infância, o embrião do estilo de vida austero de Coetzee está lá na escola primária – como exposto no parágrafo anterior – na busca incessante em ser o melhor aluno em todas as matérias, pois o medo de encarar a palmatória lhe vexava e o incitava a ser sempre o laureado. O rigor com os sentimentos também está presente na relação pouco afetiva e efetiva que tinha com mãe, às vezes demonstrando irritabilidade no afeto que a mãe tentava lhe deitar, causando mútuo desconforto. A circunspecção e o esmero do púbere Coetzee está presente também na rigidez de sua aparência, sempre fez questão dos calçados numa época que os africânderes iam à escola descalços, assim como os alunos de cor (negros).

A relação com o pai também é intempestiva, sobretudo quando o pai larga o emprego na Conservas Standard, e volta a advogar na Cidade do Cabo, toda a família o acompanha. Na nova (velha) cidade, o pai volta a ter os contatos de outrora e uma maior rentabilidade financeira com o novo emprego. Em seguida, o pai começa embriagar-se de forma contumaz e torna-se alcoólatra. Perde o escritório por não poder mais mantê-lo devido às dívidas com o sindicato por conta de empréstimos indevidos – com recursos do sindicato – para amigos. Chamo atenção para este imbróglio da família Coetzee porque um dos líderes do sindicato, sr. Golding (negro) vai à casa dos Coetzee cobrar as dívidas do pai do escritor. Após a cobrança, há um costume que diz muito sobre a relação entre os brancos e os negros na África do Sul do Apartheid:

“O sr. Golding chega. Usa terno jaquetão, não sorri. Toma o chá que sua mãe serve, mas não promete nada. Quer o dinheiro dele. Depois que ele sai, há uma discussão sobre o que fazer com a xícara de chá. O costume, ao que parece, é que quando uma pessoa de cor bebe numa xícara, ela tem de ser quebrada. Ele fica surpreso que a família da mãe, que não acredita em nada, acredite nisso. No entanto, afinal, a mãe apenas lava a xícara com alvejante” (Ibid. p. 137)

Após a poluição moral do pai frente à comunidade (desemprego, alcoolismo e dividas), o jovem Coetzee sente repulsa do pai que, desempregado, definhava em casa como um alcóolatra pusilânime. A mãe voltou a trabalhar fora, a família teve apuro financeiro, a escola na cidade grande não lhe dava mais prazer porque, talvez, perdera o posto do melhor aluno da sala agora que encontrava-se em uma escola maior.

Em todo Infância o único lugar que o jovem Coetzee não se sente completamente alheio, é na fazenda da família pelo tronco paterno. A fazenda pertenceu ao avô de Coetzee que, ao morrer, deixara para os filhos. Na propriedade, percebemos uma afinidade do narrador-outro com um rincão que, de maneira misteriosa, manifestava-se como seu, porém impossível de tomar posse habitando-o:

“Ele tem de ir para a fazenda porque não existe lugar no mundo de que goste mais ou imagine gostar mais. Tudo o que é complicado no amor pela mãe é descomplicado no amor pela fazenda. Mas desde que pode se lembrar, esse amor teve um lado doloroso. Ele pode visitar a fazenda, mas nunca irá morar lá. A fazenda não é sua casa; ele nunca passará de um hóspede, um hóspede difícil. Até hoje, a cada dia a fazenda e ele percorrem caminhos diferentes, se separando, se distanciando cada vez mais. Um dia a fazenda estará perdida para sempre, totalmente; e ele já sofre por essa perda”. (Ibid. p. 73)

A fazenda manifestava uma atenção maior do jovem Coetzee porque, talvez, o desobrigasse do rigor auto imposto em casa e na escola, pois fazia as visitas no período de férias escolar. Na propriedade, ele podia ouvir as histórias dos seus antepassados, conviver com os funcionários da fazenda – homens, mulheres e crianças de cor –, ordenhar ovelhas, ou comer amiúde suas carnes nas refeições. Enfim, ele experimentava um leque de experiências que a vida urbana lhe sonegava.

Afora o rigor que o jovem Coetzee tentou impor a sua vida desde a terna idade, o eu-outro da narrativa, no geral, teve uma infância típica de um garoto que cresceu na Era do Rádio e no início da Era da Globalização no período do pós Segunda Guerra. A paixão que ele detinha pelo críquete, as partidas ouvidas no “pé do rádio” junto com o pai. Os almanaques e livros de coleções infantis que começavam a ser distribuídos em escala planetária fizeram do narrador-outro resgatar experiências pregressas de caráter pueril, e por que não, felizes.  

Por fim, não é o conteúdo da narrativa que nos revela o escritor em seu texto (experiência narrativa) e seu contexto (o meio que lhe circunscreve), mas sim a forma como a história é narrada. Ou seja, o narrador-outro é além de um recurso formal, o ponto nevrálgico que nos descortina a própria dimensão da personagem-autor do livro: a reserva, o distanciamento, a austeridade, a circunspecção estão presentes na forma como a “primeira pessoa” torna-se “terceira pessoa”. O distanciamento na “terceira pessoa” nos desperta para prestarmos atenção em uma natureza alheia, tanto na escrita quanto na vida da personagem. Em uma palavra: o eu de Infância é outro.

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Escritor e Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.


[1] COETZEE, J. M. Infância – cenas da vida na província I. São Paulo: Companhia das letras, 1997. Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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O ornamento das massas

11.12.15 Cabotino 0 Comentarios


Poço da Panela, Recife, 8 de dez. 2015

Ao Exmo. Sr. Vice-presidente da República Federativa do Brasil, Dr. Michel Temer.

Memento morri introito cogito, ergo sum 

Venho por meio desta missiva recorda-lhe e reivindicar, peremptoriamente, o lugar oficial na história do Brasil, de Vice-presidente ornamental ou decorativo, segundo seu léxico de influência jurídica. 

Reivindico porque nunca houve nenhum Vice-presidente que exerceu seu cargo de maneira mais pungente quanto eu. Nos oito anos que permaneci no cargo (1995-2002), eu fui atilado, impoluto e reto em minha função: entrei mudo e saí calado. 


Vossa Excelência não tem o direito de arvorar-se ao posto de decorativo/ornamental sem antes fazer referência a mim. Sou oriundo de uma terra em que a prática do ufanismo além de ser um ato político, faz parte do ethos do povo, seja ele da arraia miúda ou ocupante da cadeira no Campo das Princesas. Isto é, exigimos sempre a vanguarda, a primazia e o local de proa nos destinos da nação. O que não nos levou a lugar nenhuma até agora, mas tudo bem...

Outrossim, ninguém cumpriu os ritos para se tornar um Vice ornamental/decorativo quanto eu. Irei agora enumerar – prática cara ao seu modus operandi de epistolar aprendiz – algumas partes de minha trajetória política que me põe, irrefutavelmente, em posição central na decoração política brasileira.

1º Fui Governador biônico por Pernambuco, exercendo o executivo pela ARENA, de maneira implacável, sem legitimidade nenhuma diante do povo brasileiro no geral; e do povo pernambucano em particular, deliberei algumas verbas para obras que já não lembro mais.  

2º Exerci diversos cargos políticos desde meu mandato de biônico. Ninguém descreveu um arco temporal político que foi da ARENA até o DEM, atravessando a era do PFL, como eu! (desculpe-me a ênfase). De todos os cargos políticos que exerci, eu nunca me expus publicamente para reivindicar os holofotes e o protagonismo político, como Vossa Excelência está querendo agora. Sou tão decorativo que o povo brasileiro não se lembra nem do timbre da minha voz. Ademais, Vossa Excelência exige uma maior participação no governo – como ficou claro na sua carta à presidente Dilma Rousseff – porém, deve se lembrar que não tens legitimidade. Por isso, é necessário cautela, parcimônia e consciência de irrelevância (desculpe-me o cacófano) do cargo. Ora, se gostarias da Presidência, porque não pusestes uma chapa junto com o seu partido (PMDB) nas últimas eleições? Disso posso jactar-me (exceto o cargo de biônico): nunca ganhei cargo político no tapetão. Palavras que Vossa Excelência e seus cupinchas chamam, hipocritamente, de impeachment. 

3º Finalmente, para ser um Vice-presidente irremediavelmente ornamental/decorativo, carece entrar na Academia Brasileira de Letras, algo que vislumbro almejares devido à sua produção técnica no Direito Constitucional e também na ficção, com seu livro de versos. Posso dizer como advogado e ficcionista, tal qual Vossa Excelência que, sua obra é tão decorativa quanto a sua função de Vice-presidente e, neste quesito, em breve ficarás mais próximo da minha histórica posição de vanguarda ornamental na política brasileira. Quando a gráfica do Senado ou da Câmara começar a imprimir seus livros é que a glória do espírito puramente decorativo da política estará cada vez mais próxima. Persevere que num futuro não tão longe ninguém vai se lembrar de você, como também não se lembrará de mim. Como diz o adágio popular: o vice é o primeiro dos últimos. Só que no caso do Vice-presidente este aforismo vox popoli não se aplica devido à nossa falta de legitimidade: ninguém neste país vota para vice. Estamos fadados ao ornamento.

Memento morri in gloria excelsius


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Sob o signo de Susan Sontag

7.12.15 Cabotino 0 Comentarios


 por RENATO K. SILVA


Os Diários (1947-1963) da escritora e ensaísta norte-americana descendente de judeus, Susan Sontag (1933-2004), lançados no Brasil pela Companhia das Letras (2009) com a tradução de Rubens Figueiredo, nos dão uma mostra dos anos de formação da autora de A doença como metáfora

São páginas marcantes que narram os primeiros anos de juventude até o início da vida adulta. Neste ínterim: a descoberta do sexo; da literatura clássica; do cinema; do teatro; da filosofia e, acima de tudo, dos momentos político-sociais que estavam perpassando o mundo ocidental naqueles anos do pós Segunda Guerra.

E é neste contexto que S. Sontag desperta para o mundo do espírito, das humanidades, em um período que em breve anunciaria a revolução comportamental dos anos 1960, justamente em um dos seus epicentros: a Califórnia. 

É pertinente a leitura dos Diários sobretudo para quem tem interesse na crítica genética de análises biográficas, nos estudos culturais, pelo gênero memorialístico – tão escasso na literatura brasileira –, ou simplesmente por interesse estético, pois são relatos confessionais dignos de um espírito em plena ebulição.

Susan Sontag fez parte da segunda geração de judeus que migraram para os EUA, especialmente no final do século XIX, nas inúmeras diásporas judaicas que miraram o outro lado do Atlântico para, como se dizia no século passado, “fazer a América”. Desta forma, se viva, ela estaria na mesma faixa etária de um Woody Allen, ou Philip Roth, artistas contemporâneos e da mesma origem religiosa da escritora e ensaísta. 

Com efeito, Susan Sontag nunca fora caudatária de nenhum credo religioso ou assecla ferrenha de qualquer ideologia política. Neste sentido, os Diários dão uma mostra de como ela tinha um interesse intelectual múltiplo. Era uma espécie de camelão do reino do simbólico. Passava da Flauta Mágica de Mozart a um romance de Jean Genet como quem troca de roupa. 

Em 1983, Susan Sontag aparece no início do filme Zelig escrito e dirigido por Woody Allen. Ela tece um depoimento, junto com outros intelectuais e escritores como Saul Bellow, sobre o personagem homônimo criado por W. Allen, Leonard Zelig, um homem com a estranha habilidade de metamorfosear-se em qualquer pessoa que chega-se próximo a ele, exceto as mulheres, e que estava em vários locais onde aconteceram diversos eventos importantes nos dois primeiros quartéis do século XX, nos EUA. Na segunda metade do século XX, poderíamos dizer que Susan Sontag fora uma espécie de Zelig do mundo intelectual norte-americano e a prova disso está nos seus Diários

Os Diários foram organizados pelo filho único de S. Sontag, o também escritor David Rieff, filho dela com Phillip Rief, professor de filosofia de Sontag que a conheceu quando esta fora sua aluna na Universidade de Chicago. Em seguida, casaram-se e tiveram D. Rieff. Susan tinha 18 anos quando se casou. 

Os Diários começam no ano de 1947, quando Sontag ingressa na Universidade da Califórnia, em Berkeley, para estudar Letras, com apenas 16 anos recém completos. A precocidade de Sontag é assustadora e sua ambição em prol da fruição da alta cultura é vertiginosa. Para termos uma ideia, aos 16 anos ela tem sua primeira experiência sexual com escritora e modelo Harriet Sohmers Zwerling e pouco depois, “entrevistou” (uma conversa informal) Thomas Mann, na ocasião, erradicado na Califórnia. O escritor alemão era uma das suas paixões literárias nos, digamos assim, “verdes anos”.


Com a sucessão temporal dos Diários, podemos perceber as mudanças não apenas nas preferências estéticas de Sontag, como também na sua forma de escrever que vai ganhando contornos mais “enxutos”. Porém, os Diários mostram uma intelectual que claudica em seu foro íntimo. A postura séria e contundente da ensaísta ferrenha na esfera pública – debatendo assuntos como a fotografia, as guerras que seu país entrou durante o século passado, a doença (câncer e AIDS) entre outros temas – contrastam com as hesitações da escritora frente às circunstâncias que atravessou durante os anos de formação, em especial, com o casamento:

“Sobre o casamento: É só isso. Não tem mais nada. As brigas + o carinho, infinitamente reduplicados. Só que as brigas têm uma densidade maior, diluindo a capacidade de carinho” (SONTAG, 2009, p. 79).

Sontag pôs em testamento que seu espólio (arquivos) fosse doado para a Universidade da Califórnia. Desta maneira, coube ao filho David Rieff organizar os mais de cem cadernos que compõem os Diários da escritora morta em 2004 em decorrência de um câncer. Sua morte virou ensaio fotográfico feito por sua companheira na época, a fotógrafa Annie Leibovitz, durante o período de tratamento e morte subsequente no hospital. 

David Rieff que também escreve o prefácio dos Diários, além de organizar a publicação deles. Afirma que tomou a iniciativa de lançar o material póstumo, mesmo tendo conteúdos divergentes com seus os interesses – a intimidade escancarada de sua mãe em sua relação com Phillip Rieff, pai de David – resolveu topar o desafio de lançá-lo alegando que se não o fizesse, outra pessoa o faria. 

Os Diários descortinam os anos de formação de Sontag em uma espécie de Bildungsroman confessional. Suas imersões na literatura e música clássica e contemporânea nos apresentam o gosto versátil da escritora que nos anos subsequentes irão transformá-la numa das intelectuais mais ativas do seu tempo. Em uma mistura até então incomum de: altura cultura dialogando com o universo da indústria cultural (publicidade, tevê, cinema comercial, fotografias, Pop Art e outros gêneros da cultura de massas). 

Ao mesmo tempo que lemos sobre as inúmeras referências que compõem o gosto de Sontag, podemos perceber os rasgos de autoestima após alguns períodos de baixo-estima sobretudo em relação à beleza física que, achava-a aquém das suas aspirações, como neste depoimento do dia 23/5/49, quando Susan tinha 17 para 18 anos:

“Agora conheço um pouco da minha capacidade... Sei o que quero fazer da minha vida, e tudo isso é tão simples, mas era tão difícil para mim saber no passado. Quero dormir com muitas pessoas — quero viver e ter ódio de morrer — não vou lecionar, nem fazer o mestrado depois da graduação... Não pretendo deixar que o meu intelecto me domine e a última coisa que quero é cultuar o conhecimento ou as pessoas que têm conhecimento! Não dou a mínima para o acúmulo de fatos de ninguém, exceto quando se tratar de uma reflexão sobre sensibilidade elementar, de que eu de fato preciso... Quero fazer tudo... ter um modo de avaliar a experiência — se me causa prazer ou dor, e tenho de ser muito cuidadosa quanto a rejeitar a dor — tenho de perceber a presença do prazer em toda parte e encontrá-lo também, pois ele está em toda parte! Quero me envolver completamente... tudo é importante! A única coisa a que renuncio é a capacidade de renunciar, de recuar: a aceitação da mesmice e do intelecto. Eu estou viva... eu sou linda... o que mais existe?” (Ibid. p, 31-32).

Podemos perceber a formação, nos Diários, desta inteligência sui generis quando nos deparamos com Sontag entrando em salas de cinema comerciais; vendo espetáculos de teatro de toda a sorte; ouvindo inúmeros concertos musicais entre outras iniciativas da indústria cultural das cidades em que viveu: Califórnia, Chicago, Nova Iorque, Londres, Paris isso para ficarmos apenas nos anos de formação que compreendem os Diários, pois sabemos que a “veia” cosmopolita da autora de Questão de ênfase aumenta com o passar dos anos.

Entretanto, em todas estas cidades Sontag acompanhou a vida acadêmica, ora como aluna de diversos cursos e seminários que vão da filosofia analítica de Ludwig Wittgenstein ao pensamento cristão de Søren Kierkegaard, passando, a partir da década de 1950, no casamento com P. Rieff, à escrita de um livro sobre Sigmund Freud, em seguida aos esboços do seu famoso ensaio, Contra a interpretação. Tudo isso somado ao estreito convívio com a intelligentsia do seu tempo nas diversas cidades onde viveu, seja por meio de relações epistolares ou de jantares, conferências ou conversas informais em cafés.

Com relação à literatura, Sontag fora uma leitora arguta. Pontua os Diários todo o seu esforço em empreender uma leitura sistemática da literatura do seu tempo e dos clássicos, com enfoque na literatura alemã. Não é à toa que ela sente-se lisonjeada quando o seu orientador em Oxford, o filósofo Stuart Hampshire, diz que os americanos – se referindo à Sontag – são demasiados sérios como os alemães. A sutil crítica do professor inglês soou como elogio para ela.
 

O convívio com a literatura por parte de Sontag chega ao paroxismo quando aos 15 anos ela já tinha lido o romance de Thomas Mann, A montanha mágica. Outro ponto de convivência íntima com a literatura, está presente na “encenação” que ela faz da narrativa homérica, Ilíada para o seu filho David quando este ia dormir. Entre os vários enxertos que povoam os Diários um diz muito sobre a disciplina “monástica” que Sontag tinha para si mesma como um ato de fé: “Não me importa se fica horrível. O único modo de aprender a escrever é escrever” (Ibid., p, 80). Além disso, ela guardava duas horas diárias dedicadas à escrita. 

Um fator candente da razão do divórcio dela com Philip Rieff era a sua total inadequação à vida matrimonial (dona de casa cindida entre o intelecto/marido e sexo/esposa), além das inúmeras discussões que haviam no casamento como podemos constatar no decorrer da leitura. Sobre a vida matrimonial, os Diários escasseiam-se a partir do início de 1950, período do início da vida a dois, aparecendo apenas alguns trechos sobre os conflitos com o marido: “No casamento, todo desejo se torna uma decisão” (Ibid., p, 66). Após o fim do casamento em 1957, a escrita de Sontag ganha contornos mais “leves”. Ela volta a escrever com mais regularidade e com um tom menos “carregado”. 

No período pós-casamento, ela começa a descrever pormenorizadamente os seus afazeres diários – comer, ler, escrever, lavar roupas, preparar viagens, mandar cartas, ir aos correios, tirar dinheiro do banco, tomar um táxi etc. – parece que a vida de dona de casa estava “inviabilizando” seus projetos profissionais. Neste ano, ela parte para estudar em Oxford e a vida na Europa descortina-se para ela com todo o esplendor da Era de Ouro do Capitalismo (1945-1973), como diria o historiador marxista inglês, Eric Hobsbawm.

Os Diários fazem pouca referência à infância da escritora e sua relação com à religião de sua família, o judaísmo. Sobre a opção religiosa de Sontag, as páginas dos Diários não dão muita pista. No primeiro momento ela escreve, “deus” (“com minúscula mesmo porque ele não existe” [p. 13], segundo ela). Em seguida, transita por sendas do Cristianismo em uma perspectiva de curiosidade intelectual. Outras vezes, faz interjeições com: “meu Deus!” (desta vez com maiúsculas). A tantas dos Diários, lemos ela apreciando carne suína – o que indica a sua não filiação ao judaísmo praticante: “Levei o material para a Mandrake para ser embrulhado, + vou ligar para saber na terça de manhã. Fiz uma refeição decente (costeletas de porco e camarões em molho de soja + cogumelos pretos) no Young Lee, por 2,79 dólares” (Ibid., p. 101).

Por fim, o biógrafo de Clarice Lispector, Benjamin Moser em matéria escrita à Folha de S. Paulo, em 3 de fevereiro de 2014, que está preparando a biografia de Susan Sontag, afirma que a escritora norte-americana morou em várias cidades do mundo e conheceu inúmeras outras. Seu arquivo na Universidade da Califórnia (Berkeley) reflete a natureza irrequieta de sua dona – um caleidoscópio de referências e suportes midiáticos que vão de canhotos de passagens, recortes de jornal a HDs com mais de 17 mil e-mails salvos. É por estas e outras que Susan Sontag foi uma Zelig do pensamento ocidental da segunda metade do século passado, e seus Diários dão uma prova viva deste intelecto plural.

REFERÊNCIAS 
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos, o breve Século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
HOMERO, Ilíada. São Paulo: Penguin Companhia, 2013.
MANN, Thomas. A montanha mágica. São Paulo: Nova Fronteira, 2006.
SONTAG, Susan. Diários (1947-1963). São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ZELIG. Direção: Woody Allen. FOX - SONY DADC, 1983. DVD (60 min).

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Escritor e doutorando em Ciências Sociais (PGCS-UFRN)

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