URUBU-CALANGO

23.11.11 Calango Albino 2 Comentarios


Quando o vento está bom e quando o céu é de brigadeiro, arregaço as asas, subo na janela e pego a primeira corrente de ar quente ascendente. A sensação do vento batendo no rosto é a melhor de todas. Sou urubu, porém um tanto diferente dos outros irmãos de voo. Exatamente por isso, preciso permanecer numa distância segura deles, caso contrário, me matariam a bicadas. Voar, por si só, já seria suficientemente perigoso e uma aventura, mas a intolerância dos meus com a coloração de minhas penas, torna tudo mais difícil, porém, mais emocionante. A atenção tem que ser redobrada, olho no voo em si, olho nos irmãos. Minhas penas são albinas e quando fitadas pelos outros urubus, a pequena distância, são capazes de enlouquecer de raiva a mais pacata dessas aves de rapina.

Pois, sigo meu voo, atento às distâncias necessárias para minha segurança. Voo mais baixo que eles, mas o suficiente para apreciar a vista: como é bela daqui de cima essa cidade! O rio cortando seus bairros, serpenteando, até encontrar com o outro (rio) e com o braço de mar. Daí já se avista a cidade irmã; primeiro a sua parte mais bela e mais alta. As ladeiras impregnadas de história, de histórias. Esperam o ano todo por histórias novas. Agora estão vazias, bem diferentes de quando passo por aqui a pé, no meio de uma multidão, aquela mesma em que o arlequim chora pelo amor da colombina. Dou um rasante onde hoje tem um elevador.

Mas a graça toda desse voo está na parte em que aprumo pro litoral em si, na faixa de beira de mar. Eu sigo pelo norte em corrente ascendente, sentindo o cheiro do mar e por alguns instantes, distraído e de olhos fechados, quase volto a ser calango. Sim, porque a princípio sou bicho da terra. E assim sempre foi. Não disse como pude metamorfosear de calango a urubu, não foi por mal, nem por distração minha. Simplesmente, um dia, olhando pela janela de casa, as asas surgiram e meu impulso foi o de voar. Desde então, uma vez por ano, me é concedida essa troca de pele, de bicho da terra a bicho voador. Nunca a questionei, por medo mesmo que ao questioná-la fosse tirada de mim essa condição, de réptil-ave. Pois bem, aceitei. E até que não é tão impensável essa mudança. Já disseram que somos primos próximos, aves e répteis.

Enfim, mudo uma vez por ano e logo volto a ser calango. Pois é, a metamorfose dura apenas uma hora e logo tenho que aterrissar. Mas não reclamo, nem acho ruim. Aproveito o voo de uma hora na íntegra. O caminho de volta pra casa faço como calango mesmo, pelo asfalto quente, desviando dos automóveis. Venho sempre pensando como seria bom se no próximo ano ao invés de uma, me fossem dadas duas horas de voo.

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Quem...?

23.11.11 Jonas Anasc 2 Comentarios


Quem poderá explicar o que se passa dormindo?
Quem gritará quando chegar o momento de acordar?
Quem burlará as correntes do destino?
Quem saberá onde quer chegar?
Quem jogará palavras sujas ao vento?
Quem irá desenterrar os vivos?
Quem julgará o passa-tempo do tempo?
Quem mostrará o já visível?
Quem enfrentará a velha ordem?
Quem tocará a face do desejo?
Quem beberá na fonte da vida e da morte?
Quem reconhecerá a si mesmo?
Quem vestirá a camisa da discórdia?
Quem sorrirá canalha para o medo?

Quem sairá do ninho? Quem quebrará as barreiras de vidro?

Quem salvará os segundos e as horas?
Quem libertará os velhos bandidos?
Quem correrá na frente do agora?
Quem terminará o jogo antes do início?
Quem sentirá o peso da memória?
Quem lembrará que nunca esteve fora?
Quem pensará livremente nisso?

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Conversas Paralelas...

23.11.11 Jonas Anasc 2 Comentarios


... Tudo faz parte de uma cadeia de significados que são simbolizados nos materiais trocados. Desde os colares e pulseiras, até mesmo a produção de mandiocas, todos tem um caráter existencial para quem os produz...

- você se esqueceu dos seus sonhos, meu amigo?
- meu sonho tornou-se uma imagem opaca, uma radiografia de uma vida fadigada.
- durante toda minha infância e adolescência eu construí um sonho para mim: eu queria crescer e ser um cara mais ou menos, ter uma vida mais ou menos, ter dois filhos, o primeiro uma menina e o segundo um menino. Porém, desde que eu entrei na universidade que eu não consigo mais sonhar com isso; eu não quero mais ser mais ou menos. Sou quase forçado a ser mais e mais. Isso me angustia, me ilude e me destrói. Foi assim que esqueci do meu sonho.
- Não foi deus ou você... Tudo que se ganha nessa vida é pra perder. Nada continua inalterado até o fim?
- Só se vive porque se sabe que vamos morrer, por isso que vivemos. Tudo nessa vida se perde, e é por isso que valorizamos o que ganhamos. Tem que ser assim... Agora, você perdeu seu sonho?
- Você está certo, meu amigo. Quanto ao sonho, acho que ele me perdeu.
- Deixe de ser evasivo!

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Auto-psicanálise

22.11.11 Foi Hoje! 1 Comentarios


Dedicado a Renato Ribalta


Dia desses acordei de um sono profundo. E ao meu lado estavam todas as ferramentas, tudo sobre meu ofício, com o qual, ganho meu pão diário.
Revirei aqueles papeis xerocados, juntei todas aquelas folhas e as sacudi bem forte. Estava irritado. Nada verteu do papel.
Ao sono profundo voltei depois do caso passado, e lá pelas tantas ouvi o canto daquele maldito pássaro, que me acompanha das raias imaginativas dessa prosa cansada que é a vida.
Naquele tempo, entre bolas de gude e jogos de futebol imaginários, partidas inesquecíveis com jogadores memoráveis se desenrolavam em minha mente. O estádio lotado gritava o nome dos artilheiros das competições que criava. Não era raro que as finais daqueles campeonatos fossem eletrizantes, e que nos acréscimos, aquele zagueiro turrão, de cabeça, empatasse a partida e que fosse todo o destino do duelo, para as penalidades máximas. Não houve campeões em minha infância, protelava meses e meses os finais daquelas partidas.
Acordei mais uma vez daquele sono profundo, e lá estavam os papeis jogados, sacudidos e espremidos no chão.
Havia também pontas de cigarros.
Meus sonhos são cada vez mais a expressão de minhas fraquezas, e ando lendo sobre psicanálise há uns dez anos por conta disso.
Desfechos ridículos. Humilhação. Zombarias me atormentam o sono.
Em minha biografia constará o quanto fui ridículo nos meus sonhos, e também, como minha vida foi regada a ilusões, misticismo e muito pouca sabedoria.
O lago perto de minha casa onde insiste em cantar aquele pássaro tornou-se vazio, como a alma daqueles que não sabem direito como se dão os desfechos das partidas decisivas.
Como aqueles, que não sabem desde alvorada fazer a partida empatada ter um vencedor ao pôr do sol.



por Pássaro Bege

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Cerveja Não Causa Dor de Cabeça

21.11.11 Joarez 0 Comentarios


Cerveja gelada e feijoada completa: não há quem recuse. Se for zero-oitocentos, deus do céu!, nem a distância do local do evento desanima os convidados, como foi o caso da minha amiga S., que comemorou seu aniversário - com direito aos elementos citados acima e um pouco mais - em Moreno City; cidade diferenciada, que conta com apenas uma avenida - pra quê mais? Cheguei cedo, me espalhei, comi à vontade, bebi além da conta, e fui o último a deixar a confraternização - saí literalmente varrido do recinto. Achei pouco: antes de ir para casa, ainda tomei umas saideiras na casa de Rafael, um amigo aqui das redondezas. No dia seguinte acordo com uma dor de cabeça imensa, marteladas no quengo em slow motion, e começo a maldizer, com toda sorte de palavrões, a bebedeira do dia anterior. A dor é contínua, ora mais forte, ora mais fraca, mas sempre presente. Vasculho a memória e não encontro em meus registros situação semelhante. Lembro, até mesmo, de já ter bebido mais e não ter como retorno uma ressaca tão aguda. Enquanto tentava levantar elementos que ajudassem a explicar o meu sofrimento, ouço a voz do apresentador do programa esportivo: "Tupi se sagra campeão da Série D em cima de gigante do futebol brasileiro, no Arruda...". A cabeça quase explode. Descubro o motivo da minha dor: a derrota do Santa, por 2 a 0, na final do campeonato. Minha memória, seletiva e bondosa como sempre, havia me poupado essa amarga recordação no dia seguinte. Mas agora já era tarde: contei com o desfavor da televisão para deixar essa lembrança mais viva do que nunca. Sem ter muito o que fazer - este tipo de ressaca não se cura com Sonrisal - saí triste e desolado: perambulei pelas ruas a fumar o king size da decepção, e entre uma baforada e outra, refazia clássica aporia shakespereana: Tupi or not Tupi: that is the question!

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Caso do Labrador

16.11.11 Joarez 2 Comentarios


Eu já vinha refletindo e conversando com um grande amigo sobre o fato de que, em certas ocasiões, mais do que fazer uma pergunta, o importante é fazer a pergunta certa, com o objetivo de tornar as coisas mais fáceis.

Daí que, quando um mancebo fosse pedir a donzela em namoro - coisa cada vez mais rara hoje em dia, mas ainda vale o exemplo - ele não chegaria tenso e nervoso para dizer a clássica frase "Você quer namorar comigo?", mas perguntaria serenamente: Você deseja ficar só, triste e abandonada?, ela respondendo um "Não", ele já seguraria sua mão, e diria, Pois bem, agora somos um casal, estamos namorando.

A partir desse exemplo-matriz estenderíamos a tática oral para outras situações, donde não desejaríamos saber se uma pessoa quer comer feijão, arroz e bife, mas sim se ela quer ficar com a barriga na miséria, no que, no caso de uma resposta negativa, agilmente serviríamos o que estivesse à disposição em nossas despensas e armários.

Sacou? Sigamos em frente.

Pois bem, ainda em prosa leve com o mesmo camarada, chegamos à conclusão razoável de colocar em prática nossa teoria, a fim de, obviamente, alcançarmos alguns modestos objetivos pessoais. Foi assim que, hoje, em minha casa, em duelo com minha mãe, obtive relativo sucesso no caso de um labrador. A pequena conversa transcorreu mais ou menos assim:

- Soubesse que tua irmã tá com a história de trazer um labrador aqui pra casa?, já pensasse?, mais aperreio, mais barulho, mais sujeira...

- Sim, e daí?

- E daí o quê?... Vai criar, é?

- Vai matar, é?

Minha digníssima progenitora não resistiu à pergunta que lhe dirigi em forma de respota: olhou-me fixamente por três segundos e depois caiu na gargalhada. Riu, passeou pelo terraço, se acalmou e depois veio até mim prometendo que ia pensar com mais carinho no caso do labrador.

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Um dia de cão de a cavalo

9.11.11 Cabotino 1 Comentarios



No Marco Zero da cidade do Recife uma figura excêntrica chama a atenção dos moradores deste rincão urbano fincado na lama: São Petersburgo sem São Pedro. Era um sujeito esquálido, uma barbinha pontiaguda lhe ressaltando o queixo afilado, com roupas de cavaleiro medieval, portando lança, espada a tiracolo e escudo, montado em um cavalo não menos magro que ele.

Estava em seu trote calmo pelo “antigo” bairro da cidade (que alias não é tão antigo assim, mais um exemplo de invenção da tradição desta cidade), quem o via se assustava no primeiro momento, mas, em seguida continuava a sua via crucis diária e circular. Ele por sua vez estranhava as edificações plurais daquele sitio, casarões ornados no estilo rococó, construções em ângulos retos à base de concreto e vidro, afora os cartazes e os automóveis que o cruzavam velozmente.

Em seguida atravessou a Ponte Maurício de Nassau, como um boi terrestre mascando o seu amido de estímulos. Ia devagar, quase parando, até desembocar na Av. Guararapapes, sem holandeses, mas com a sua batalha cotidiana e “pacífica” que expulsa diariamente seus guerreiros em ônibus repletos de entulho humano, navio negreiro do desterro diário.

Reparou que as pessoas de vez em quando olhavam para a torre do edifício dos Correios (onde se encontra o relógio), porém, a maioria delas consultava de instante em instante um pequeno objeto que levavam primeiro aos olhos, e em seguida aos ouvidos, falando com eles através de estranhos solilóquios repletos de pausas e reações distintas. Chegou à conclusão de que aquele deveria ser um Deus em extinção, e que este era agora o novo Deus. Deus no alto grande quase morto; Deus pequeno em nossos bolsos posto - rei morto, rei posto.

O ritmo daquele turbilhão frenético lhe entrando pelos sete buracos de sua cabeça causava-lhe torpor, o calor, os sons, os tons de cores, as palavras pregadas em todos os lugares, enfim, os signos em rotação e a vertigem por símbolos. A apatia já o tinha dominado completamente, o seu cavalo agora é que seguia o seu curso, tomando às rédeas do seu destino e do seu dono.

Por instinto, o animal seguiu através do ar úmido que soprava em suas narinas para o lugar mais verde do Centro da cidade, o parque 13 de Maio (nome pomposo, data vazia). E resfolegando de cansaço foi para o gramado em busca de comida e esteio para o seu dono que se encontrava mais morto do que vivo neste cemitério dos vivos, Recife. Inclinou-se gentilmente para que o seu dono descesse, este o fez quase automaticamente, deitou-se na grama e balbuciou estas palavras:

- Obrigado meu amigo Rocinante. E olhando para o céu completou o seu monólogo. - Pois é minha amada Dulcinéia, a única coisa que não mudou além do meu amor por você, foram às nuvens do céu.


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A Fábula dos Três Jegues

2.11.11 Joarez 2 Comentarios


Eram três jegues, moravam numa pequena fazenda, de uma pacata cidade do interior do Maranhão. O que se sabe é que em um belo dia eles fugiram. Seu Dono pôs-sê a procurá-los por toda a cidadezinha e a melhor informação que obteve foi a de que os distintos bichanos tinham conseguido uma carona num caminhão que seguiria pelo litoral, passando por algumas capitais nordestinas.

Iniciou-se a busca e o primeiro burrico não tardou a ser achado. Ele foi encontrado trabalhando numa MC Donald's em Fortaleza. Tudo corria muito bem até que o coitado descobriu a matança descarada que honroso estabelecimento gastronômico infligia aos animais quadrúpedes. Tomando as dores de seus pares, e para se vingar, começou a matar humanos e a deles fazer hambúrguer. Foi capturado e mandado de volta a sua terra natal.

O segundo jumentinho virou motorista de ônibus, em Salvador, e também não passou muito tempo foragido. Ele foi descoberto porque todos, digo todos, motoristas, cobradores, passageiros e pedestres, estranharam o modo extramamente correto com o que nosso maranhense dirigia, sem a menor infração ao código de trânsito. Uma investigação da Polícia Federal trouxe sua verdadeira identidade à tona. Segundo testemunhas, não ofereceu resistência na hora da prisão. Voltou para casa, por conta própria, mais triste e menos enfurecido.

O caso mais emblemático foi o do terceiro mulo. Os jornais noticiaram, veja bem, depois de seis anos apreensão de um jegue, assim e assado, na cidade do Recife. O bicho já estava, pode-se dizer, incorporado ao ethos da cidade. Assim que pôs os pés na capital pernambucana, o nosso herói arrumou logo uma vaga para tocar alfaia num grupo de maracatu. Daí para virar figura fácil no circuito cultural da cidade, foi pouco tempo. Era fácil vê-lo, da Rua da Moeda à Rua do Lima, do Abril pro Rock ao Coquetel Molotov. Formou uma banda para tocar nos festivais da cidade, ganhou dinheiro, tinha muitas fãs, vivia bem e tranquilo.

Você deve estar se perguntando que horrenda catástrofe rompeu tão bela calmaria. Pois é. O nosso burrico deu uma entrevista numa rádio local e, nela, afirmou que o "Los Hermanos é uma banda ordinária". Ordinária, explica ele: comum, trivial. Mas assim não entenderam os ouvintes da rádio. O fantástico jegue foi perseguido durante mais de trinta dias por uma massa de popcults. Eles ofereceram até recompensa, um fio de cabelo de Rodrigo Amarante, por uma informação que levasse à sua captura.

Foi no período dessa caça desumana (perdoe a infeliz piada) que descobriram que o famoso músico da cena pós-mangue era um simples jegue. É exatamente aí que o problema deixa de ser apenas dos popcults e passa a ser também da polícia, da sociedade, ávida por notícas, e de seu dono lá do Maranhão, que sonhava em ganhar dinheiro com um jegue famoso.

E foi isso que aconteceu. Tendo o jegue sido capturado e mandado de volta, seu dono começou a explorar a sua imagem e a cobrar quantias absurdas por entrevistas em rádios, programas de TV, jornais e revistas.

Numa delas, sendo ele indagado sobre as supostas vantagens de uma vida humana, o burrico disparou: "A vantagem de ser mulo é que ao encontrar China eu não preciso ser hipócrita e dizer a ele que seu som é bacana".


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