Walter e sua "ligação tenebrosa" com o Coque
por JUDAS
E MADALENA
Semana passada houve um evento aparente
e duplamente banal: uma favela era mais uma vez desqualificada pelo fato de ser
favela, ou pelo fato de ser pobre. O primeiro evento foi o fato de um jogador
ter "quase" fechado contrato com um
clube. Até então nada demais. O segundo, foi o fato do jogador já ter sido
morador de uma favela. Nada mais banal que um jogador fechar ou não contrato
com determinado Clube e ele ter origem nalguma periferia.
O jogador é o que atende pelo nome de
Walter*, e já foi morador da favela do
Coque. Então vamos ao que é corriqueiro nessa história. Num programa da Rádio Jornal de Recife, onde comenta-se
resenha esportiva, um comentarista faz a seguinte afirmação: “O jogador Walter
tem uma ligação tenebrosa com o Coque”. Uma pequena parada: estamos
fazendo menção ao jogador Walter
como ex-morador do Coque ou a Rádio Jornal que o representa como aquele que tem uma
ligação tenebrosa com essa favela? Não tenho interesse no jogador nem na rádio como
sujeitos aqui, mas o corriqueiro de se utilizar de qualquer banalidade para
criminalizar as favelas, certo? Então voltemos. Um jogador que não fecha
contrato com determinado clube, isso acontece o ano inteiro. Mas sua origem de
favelado vir à tona como enigma para explicar o fato dele não ter fechado
contrato com o clube do Sport, isso é uma banalidade que tenho interesse.
Este artigo
opinativo tem intenção direta de se confrontar com o pensamento burguês atual, que retrata as favelas como se fossem um antro de criminosos. Assim como o fato dos
meios de comunicação serem usados não só como mecanismo de discriminação social
(separar as favelas do resto da cidade) e mais como dispositivo de
desqualificação moral (falar das favelas como lugar onde impera o mal, assim só
é possível falar dela pejorativa e criminosamente!).
A
estratégia deste artigo é bagunçar as peças que estão em jogo nessas banalidades.
As peças são: o pensamento burguês (veiculado nos meios de comunicação de massa),
o jogador de futebol e por fim, as favelas, como bolas nesse jogo. O
fundamental nessa bagunça é perceber que as favelas, embora sejam de muitas
formas desqualificadas, ainda possuem formas de serem reconhecidas como lugares
positivos de se habitar. Em poucas palavras, pois serei breve, tenho a intenção
e o desejo de lutar por reconhecer a favela positivamente, pelo fato de ser
simplesmente favela. Farei isso além de qualquer preceito moral, apenas a partir
de minha "ligação tenebrosa" de favelado.
Quem fala aqui é um negro de alma negra,
um índio de alma indígena, um favelado de alma favelada! Essas afirmações são
necessárias para deixar o mais claro possível que os brancos ou os
embranquecidos não são meus inimigos, assim como, e simplesmente, para afirmar o
território de onde estou falando. Não quero me perder nesse discurso com
ressentimentos. Mas se aqui há luta, não é por igualdade, muito menos por
sublevação, mas por auto reconhecimento como negro, índio, favelado, e que
somos do tamanho e do poder que temos! Nesse mundo de Deus existem algumas pessoas, do conhecimento popular, que nos ajudam a pensarmos nossas ligações tenebrosas. Vou citar duas para ilustrar isso.
A
primeira é o Ernest Hemingway (1899-1961). Fiquei sabendo que esse americano escreveu
um livro chamado “Por quem os sinos dobram”, que inspirou um filme de 1943, dirigido por Sam Wood e adaptado por Dudley Nichols. Sem contar com o álbum
e música homônima feitos por Raul Seixas, em 1979. Onde canta/conta a história de que
“nunca se vence uma guerra lutando sozinho”. O que achei curioso na história de
Hemingway (além do filme e músicas***), é que para ele a morte de um homem era um evento capaz de diminuir a sua
própria humanidade. Fico pensando quantas vezes ele se sentiu diminuído em
vida, pois foi um homem que foi ao campo da Primeira Guerra Mundial. Seu pai
suicidou-se. Caso que ele depois repetiu.
A segunda pessoa é o jogador de futebol
muito conhecido que dispensa algum tipo de apresentação: Neymar. Ele é uma
figura curiosa para pensar ligações tenebrosas. Neymar não se encara como negro - houve diversas ocasiões em que ele sai pela tangente quando é caracterizado como tal. Mas venhamos e convenhamos: ser negro não é para todos! Acho que tem
que se ter colhões, caso contrário, sai-se pela tangente e dá-se um jeito para se autoembranquecer.
A questão da (des)valoração do negro no Brasil evidenciada nas altas taxas de desemprego por
cor/raça, aprisionamento por cor/raça e entrada parca e polêmica por cotas nas
universidades, não fez de Neymar, muito embora tenha traços negroides e origem
afro-favelada, um negro... Quer dizer, mais drasticamente, as mortes e
discriminações pelas quais passam o povo negro não diminuem em nada a
humanidade de Neymar.
Em 11/01/2016, o jogador Messi (dispensa
também apresentações!) foi pela quinta vez eleito o melhor jogador do mundo. Messi
enquanto autista que é, (pelo que sei! Posso estar errado, mas não tenho
nenhuma preocupação com isso!), também não tem nenhuma "ligação tenebrosa" com a
questão do autismo ou pessoas portadoras de necessidades especiais. Fato que
não diminui em nada sua humanidade. Mas Walter é do Coque, de fato ele tem uma "ligação tenebrosa" com o Coque. E é como bom negro/índio e favelado que farei
minha bagunça! O Coque tem uma cultura, se posso utilizar da licença
antropológica, na qual quem compartilha dela, tem de morrer no Coque. Essa
forma de vida é representada por uma parcela de sua comunidade que tem uma
ligação direta com a criminalidade.
Aqueles que impõem medo no imaginário de
Recife não são só criminosos, eles são educadores e têm uma dura lição a dar
ao restante de seus moradores: quem é do Coque, morre no Coque. Nós coquenses,
podemos citar “N” exemplos de pessoas que estavam envolvidas com a criminalidade e que foram viver em outros bairros, outras cidades, ou até outros estados, mas voltaram
para morrer em seu território de "pertencimento".
Ser negro no Brasil é um fato
de se reconhecer ou não enquanto negro. Ser favelado do Coque é saber que
estamos inseridos em uma "ligação tenebrosa" com essa favela. Temos
a ligação com nossos familiares habitando aquele espaço, temos a ligação com
este, onde caminhamos pelas ruas, reconhecendo as pessoas que passam também,
lugar esse onde aprendemos desde “maloqueiragens”, até a cuidar de nossos filhos. Aprendemos que amigos não são necessariamente aqueles
que têm alguma coisa, mas aqueles com quem nos sentimos nós mesmos, diferentes
e iguais em cada dia. Amigos de fato, se reconhecem a qualquer
momento, em qualquer lugar... Um sujeito
do Coque que é desqualificado pelo fato de ser do Coque é diminuído sim em sua
humanidade. Pois aqui a desqualificação se dá, não só ao sujeito enquanto favelado, mas ao lugar em que a sua história foi construída.
O jogador Walter é mais um símbolo "tenebroso" que o Coque comporta. Mas ele não foi o 1º nem vai ser a 5º pessoa a
ter uma "ligação tenebrosa" com o Coque. Ele de fato tem essa ligação e não pode
ser de outra forma. Caso ele não feche contrato com o clube do Sport isso não
desqualifica o clube e não me diz respeito, mas em algum momento de sua vida
como futebolista ele tem que afirmar sua "ligação tenebrosa" com o Coque. Isso
sim é uma forma de qualificar positivamente seu passado/presente, mostrando sua
ligação umbilical com esse território chamado Coque. Dessa forma, o Coque não o
largará até que a morte os separe, como não separa a vida de muitas outras
pessoas.
Notas:
*jogador de futebol
de tal time que fecharia contrato com o Sport clube de Recife, mas por motivos
familiares não teve contrato fechado**.
** Tal motivo não é
importante para a discussão, então não importa se é verdade ou não o motivo de
seu não fechamento do contrato com o Sport Clube, o importante aqui são as
relações dos sujeitos com o território chamado Coque.
*** A banda Metallica
também fez sua versão em 1984: For Whom
The Bell Tolls.
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