Walter e sua "ligação tenebrosa" com o Coque

26.1.16 Foi Hoje! 0 Comentarios


por JUDAS E MADALENA

Semana passada houve um evento aparente e duplamente banal: uma favela era mais uma vez desqualificada pelo fato de ser favela, ou pelo fato de ser pobre. O primeiro evento foi o fato de um jogador ter "quase" fechado contrato com um clube. Até então nada demais. O segundo, foi o fato do jogador já ter sido morador de uma favela. Nada mais banal que um jogador fechar ou não contrato com determinado Clube e ele ter origem nalguma periferia.

O jogador é o que atende pelo nome de Walter*, e já foi morador da favela do Coque. Então vamos ao que é corriqueiro nessa história. Num programa da Rádio Jornal de Recife, onde comenta-se resenha esportiva, um comentarista faz a seguinte afirmação: “O jogador Walter tem uma ligação tenebrosa com o Coque”. Uma pequena parada: estamos fazendo menção ao jogador Walter como ex-morador do Coque ou a Rádio Jornal que o representa como aquele que tem uma ligação tenebrosa com essa favela? Não tenho interesse no jogador nem na rádio como sujeitos aqui, mas o corriqueiro de se utilizar de qualquer banalidade para criminalizar as favelas, certo? Então voltemos. Um jogador que não fecha contrato com determinado clube, isso acontece o ano inteiro. Mas sua origem de favelado vir à tona como enigma para explicar o fato dele não ter fechado contrato com o clube do Sport, isso é uma banalidade que tenho interesse.

Este artigo opinativo tem intenção direta de se confrontar com o pensamento burguês atual, que retrata as favelas como se fossem um antro de criminosos. Assim como o fato dos meios de comunicação serem usados não só como mecanismo de discriminação social (separar as favelas do resto da cidade) e mais como dispositivo de desqualificação moral (falar das favelas como lugar onde impera o mal, assim só é possível falar dela pejorativa e criminosamente!).

A estratégia deste artigo é bagunçar as peças que estão em jogo nessas banalidades. As peças são: o pensamento burguês (veiculado nos meios de comunicação de massa), o jogador de futebol e por fim, as favelas, como bolas nesse jogo. O fundamental nessa bagunça é perceber que as favelas, embora sejam de muitas formas desqualificadas, ainda possuem formas de serem reconhecidas como lugares positivos de se habitar. Em poucas palavras, pois serei breve, tenho a intenção e o desejo de lutar por reconhecer a favela positivamente, pelo fato de ser simplesmente favela. Farei isso além de qualquer preceito moral, apenas a partir de minha "ligação tenebrosa" de favelado.

Quem fala aqui é um negro de alma negra, um índio de alma indígena, um favelado de alma favelada! Essas afirmações são necessárias para deixar o mais claro possível que os brancos ou os embranquecidos não são meus inimigos, assim como, e simplesmente, para afirmar o território de onde estou falando. Não quero me perder nesse discurso com ressentimentos. Mas se aqui há luta, não é por igualdade, muito menos por sublevação, mas por auto reconhecimento como negro, índio, favelado, e que somos do tamanho e do poder que temos! Nesse mundo de Deus existem algumas pessoas, do conhecimento popular, que nos ajudam a pensarmos nossas ligações tenebrosas. Vou citar duas para ilustrar isso. 

A primeira é o Ernest Hemingway (1899-1961). Fiquei sabendo que esse americano escreveu um livro chamado “Por quem os sinos dobram”, que inspirou um filme de 1943, dirigido por Sam Wood e adaptado por Dudley Nichols. Sem contar com o álbum e música homônima feitos por Raul Seixas, em 1979. Onde canta/conta a história de que “nunca se vence uma guerra lutando sozinho”. O que achei curioso na história de Hemingway (além do filme e músicas***), é que para ele a morte de um homem era um evento capaz de diminuir a sua própria humanidade. Fico pensando quantas vezes ele se sentiu diminuído em vida, pois foi um homem que foi ao campo da Primeira Guerra Mundial. Seu pai suicidou-se. Caso que ele depois repetiu.

A segunda pessoa é o jogador de futebol muito conhecido que dispensa algum tipo de apresentação: Neymar. Ele é uma figura curiosa para pensar ligações tenebrosas. Neymar não se encara como negro - houve diversas ocasiões em que ele sai pela tangente quando é caracterizado como tal. Mas venhamos e convenhamos: ser negro não é para todos! Acho que tem que se ter colhões, caso contrário, sai-se pela tangente e dá-se um jeito para se autoembranquecer. 

A questão da (des)valoração do negro no Brasil evidenciada nas altas taxas de desemprego por cor/raça, aprisionamento por cor/raça e entrada parca e polêmica por cotas nas universidades, não fez de Neymar, muito embora tenha traços negroides e origem afro-favelada, um negro... Quer dizer, mais drasticamente, as mortes e discriminações pelas quais passam o povo negro não diminuem em nada a humanidade de Neymar.

Em 11/01/2016, o jogador Messi (dispensa também apresentações!) foi pela quinta vez eleito o melhor jogador do mundo. Messi enquanto autista que é, (pelo que sei! Posso estar errado, mas não tenho nenhuma preocupação com isso!), também não tem nenhuma "ligação tenebrosa" com a questão do autismo ou pessoas portadoras de necessidades especiais. Fato que não diminui em nada sua humanidade. Mas Walter é do Coque, de fato ele tem uma "ligação tenebrosa" com o Coque. E é como bom negro/índio e favelado que farei minha bagunça! O Coque tem uma cultura, se posso utilizar da licença antropológica, na qual quem compartilha dela, tem de morrer no Coque. Essa forma de vida é representada por uma parcela de sua comunidade que tem uma ligação direta com a criminalidade. 

Aqueles que impõem medo no imaginário de Recife não são só criminosos, eles são educadores e têm uma dura lição a dar ao restante de seus moradores: quem é do Coque, morre no Coque. Nós coquenses, podemos citar “N” exemplos de pessoas que estavam envolvidas com a criminalidade e que foram viver em outros bairros, outras cidades, ou até outros estados, mas voltaram para morrer em seu território de "pertencimento". 

Ser negro no Brasil é um fato de se reconhecer ou não enquanto negro. Ser favelado do Coque é saber que estamos inseridos em uma "ligação tenebrosa" com essa favela. Temos a ligação com nossos familiares habitando aquele espaço, temos a ligação com este, onde caminhamos pelas ruas, reconhecendo as pessoas que passam também, lugar esse onde aprendemos desde “maloqueiragens”, até a cuidar de nossos filhos. Aprendemos que amigos não são necessariamente aqueles que têm alguma coisa, mas aqueles com quem nos sentimos nós mesmos, diferentes e iguais em cada dia. Amigos de fato, se reconhecem a qualquer momento, em qualquer lugar...  Um sujeito do Coque que é desqualificado pelo fato de ser do Coque é diminuído sim em sua humanidade. Pois aqui a desqualificação se dá, não só ao sujeito enquanto favelado, mas ao lugar em que a sua história foi construída. 

O jogador Walter é mais um símbolo "tenebroso" que o Coque comporta. Mas ele não foi o 1º nem vai ser a 5º pessoa a ter uma "ligação tenebrosa" com o Coque. Ele de fato tem essa ligação e não pode ser de outra forma. Caso ele não feche contrato com o clube do Sport isso não desqualifica o clube e não me diz respeito, mas em algum momento de sua vida como futebolista ele tem que afirmar sua "ligação tenebrosa" com o Coque. Isso sim é uma forma de qualificar positivamente seu passado/presente, mostrando sua ligação umbilical com esse território chamado Coque. Dessa forma, o Coque não o largará até que a morte os separe, como não separa a vida de muitas outras pessoas.
                                                 


Notas:
*jogador de futebol de tal time que fecharia contrato com o Sport clube de Recife, mas por motivos familiares não teve contrato fechado**.
** Tal motivo não é importante para a discussão, então não importa se é verdade ou não o motivo de seu não fechamento do contrato com o Sport Clube, o importante aqui são as relações dos sujeitos com o território chamado Coque.
*** A banda Metallica também fez sua versão em 1984: For Whom The Bell Tolls.

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