Azul da cor do Blue
Leia este texto
ouvindo o disco Blue da Joni Mitchell
[...]
Ei Blue, essa música é pra você
Tinta negra na
ponta da agulha
Que perfura a
pele
Repleta de
espaço vazio pra preencher.
[...]
Tudo mundo está
dizendo: “Ir pro inferno é o que há”
Mas eu acho que
não.
Ainda que eu vá
até lá, só pra olhar.
Blue, te amo.
(Joni Mitchell)
Há
alguns dias zapeando pela internet na madrugada vi que haviam postado no Fórum
do Making Off o filme, Azul é a cor mais quente (2013) cujo
título original é La Vie d'Adèle
escrito e dirigido pelo cineasta franco-tunísio Abdellatif Kechiche. De início,
fiquei com algumas reservas em relação ao longa e, principalmente, pelo tamanho
do arquivo, seis gigas e meio – haja HDs para suportar o triunfo do digital
sobre o celuloide.
Enfim,
resolvi dar um crédito a produção e fiz o download do arquivo e sua respectiva
legenda, pois do idioma de Montaigne não tenho ainda músculos suficientes na
língua para degluti-lo sem este expediente.
Quando
abri o arquivo em Blu-ray (o azul já
estava presente no formato do arquivo) vi que o filme tinha três horas, pensei,
duas da manhã... Vai acabar lá para as cinco. E não é que vi o filme do fio ao
pavio.
De
início, não é um filme que me agrada, achei-o muito gorduroso (longo) e
rocambolesco, porém entendi a proposta e o aceite como foi feito.
O
tema candente para mim foi à relação entre o corpo versus a mente, onde a
personagem Adèle (Adèle Exarchopoulos) representa o primeiro pólo e Emma (Léa
Seydoux) o segundo. Esta tensão também está presente no último filme de L. V.
Trier, Ninfomaníaca (2013). Esta
batalha pode ser traduzida também em uma Europa cindida por uma tradição
humanística onde Emma é a herdeira de um universo sublime das Belas Artes (ela
estuda a matéria e já faz alguns trabalhos em óleo sobre tela) e tem como
círculo de amizade pessoas ambientadas ao mundo do simbólico e uma família moderna e abastada com os pais
divorciados e que não a censuram por ser lésbica. Já Adèle é à força de Eros (a
pulsão indômita de uma natureza irrequieta) que mimetiza o atavismo das classes
subalternas que a Europa sempre sonegou como fonte de sua formação (tema caro a
cinegrafia europeia desde, Metropolis
[1927] a Underground [1995] e são os
que vivem nos subterrâneos, nas camadas mentais incontroláveis), mas que se faz
presente nos trabalhos considerados menores. Lembremos que Adèle é desdenhada
por Emma e seus amigos e família por querer trabalhar com crianças, ou seja, é
a reprodução social do corpo que sempre esteve associado ao pueril e a mente ao
sublime em uma Europa que mesmo atravessando uma aguda crise econômica – elas
vão a passeatas contra a privatização do aparato estatal francês –, faz coro as
velhas práticas estabelecidas pelos segmentos mais “esclarecidos”, pois são
eles que reproduzem este arquétipo colonialista.
O
olhar de Abdellatif Kechiche também é contaminado por esta ideologia
colonizadora que falei acima, basta ver os closes “ginecológicos” que ele faz
na boca de Adèle quando ela está dormindo e também quando abre a lente para
mostrar a postura do corpo da personagem dormindo, todas sensualizadas, e não
vemos o mesmo tratamento na economia interna do filme sendo dado a Emma.
Tanto
Emma quanto Adèle também mimetizam uma lógica dos papeis de gênero, a primeira
sendo o “homem” da relação e a segunda a “mulher” (ainda estamos nos pólos:
corpo versus mente; senhor versus subalterno; homem versus mulher) evidenciado
nos trabalhos domésticos, Adèle cozinha e serve a todos o seu tentador
espaguete à bolonhesa – destaque para os eróticos closes das bocas e mãos
lambuzados –, e sempre quando ela entra em cena há o seu corpo sendo tomado
inteiro seja nas danças (ela é fã de Buena Vista Social Clube) e em seus trajes
extremamente feminino, enfim, ela é uma extensão do seu corpo, e só. Quando
Emma entra em cena é o silêncio que reina, ela é polida e gosta de frutos do
mar com vinho branco (seus costumes reflete sua herança de classe), seu corpo
não é sensualizado e seus trajes são neutros.
Em
relação às cenas de sexo que causaram um certo frisson no lançamento do filme no Brasil, com uma possível censura
no circuito comercial, não há nada de apelativo ao meu ver, exceto, a primeira
cena que dura mais de seis minutos, mas como falei anteriormente, faz parte ao
meu ver da proposta rocambolesca do filme assim como a cena da briga entre as
duas – um dramalhão que faria E. Rohmer enrubescer –, um barraco de estremecer
os alicerces da vizinhança.
Um
movimento intrigante no filme que foi apontado por um amigo meu (Gustavo) é o
da cor azul. Quando a cor entra na vida de Adèle através da coloração
dos cabelos de Emma que a atraí como imã na cena do semáforo, e a envolve completamente durante toda a relação principalmente em suas roupas. Na cena da praia após a briga com Emma onde ela está tomando conta das crianças, ela entra no mar e fica boiando (a foto acima faz alusão à cena) é ali que ela se vê tomada pelo desejo
irrefletido por Emma. Entretanto, nas cenas seguintes, já vemos Emma perdendo a
coloração capilar e afastando-se do azul, que talvez seja a síntese do
relacionamento das duas, e adquirindo uma pigmentação mais opaca, típica de uma de obra arte que perdeu seu tema recorrente e explode para outras direções mais
frias, porém, plurais.
Ao
cabo, não houve vencedores tampouco vencidos, houve a escolha de Emma por seu
mundo e por tudo aquilo que sempre lhe foi familiar, o sublime de uma vida mais
contemplativa a partir da constituição de uma família (os “homens” são mais
propensos a repor uma relação mais duradoura após o termino de uma anterior,
do que as “mulheres”). Para Adèle lhe restou o convívio, mas amenizado pelas
contingências do trabalho e da vida, de uma alma encalacrada em um corpo em
constante expansão.
Para
ambas, o azul continua sendo uma cor em uma das telas da parede da memória, mas
como dói vê-la.
por Renato Ribalta
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