Choro

29.4.14 Castanha 0 Comentarios


Vivendo nós construímos; construímos um mundo dentro de nós a partir de tudo que nos é externo. O filósofo inglês John Locke acreditava que tudo que conhecemos deriva do contato que temos com o mundo externo por via de nossos cinco sentidos. As informações passam por esses sentidos e chegam ao nosso cérebro construindo em nossa mente tudo que conhecemos; somos o que conhecemos. Sendo assim, diríamos que algo, perto ou distante, é fruto de nossa experiência com o mundo concreto que nos faz dizer que um dado ponto esteja “perto” se é facilmente alcançável ou “distante” se for difícil de alcançar. O mesmo vale para os conhecimentos dos sentimentos, o abstrato do abstrato: é possível saber o que é dor não só levando uma pancada de algo concreto, mas também se decepcionando com as pessoas por causa de ações em situações que são tão soltas e disformes quanto o vento. Concordo com Locke: vivendo se conhece e conhecendo se transforma. É preciso ter uma boa noite de sexo para ter uma noção de quanto tempo você perdeu transando com pessoas que não sabem transar. É preciso ter um bom amigo pra saber quanto desprezíveis são alguns seres humanos que não merecem ser chamados de amigos. É preciso ficar ofegante para saber o que intensidade. É preciso se entorpecer para saber que o que chamamos de real pode ser visto de outras formas. É preciso esperar o tempo passar para entender os efeitos do tempo. É preciso sentir medo, simplesmente porque às vezes é preciso sentir medo; e o medo nós força a tomar decisões que nos torna corajosos. É preciso viver para valer a pena estar vivo e saber que a vida não tem precisões. É preciso sorrir. Quando João Bernardo nasceu também foi assim; seu pai, Júnior, encontrou-se com seu próprio pai, o avó de João, para comemorarem. Embriagaram-se e ao final Júnior falou ao seu genitor “agora eu sei o quanto o senhor me ama, agora que sou pai, sei o que é amar um filho” abraçaram-se e choraram. João Bernardo não sabe disso, tem apenas um ano, mas saberá.


Castanha 07 de março de 2014            

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Interlúdio

29.4.14 Unknown 0 Comentarios



"Um foco de luz seduz razão
De repente a visão
da esperança" (INAH, Dona)


Interlúdio. Conforme o dicionário online que agora consulto: "Intermédio, diversão musical". Segundo o minidicionário Michaelis que ora tenho à mão: "sm (lat med interludiumMús Trecho que se intercala entre as diversas partes de uma longa composição."

Pobres dicionários, objetos vazios, nunca lidos, apenas consultados, tutor primeiro das nossas mais profundas ignorâncias. Pobre dicionário, cada vez mais obsoleto, perde continuamente espaço para o Google e outros sítios de busca. É a segunda opção na sua função primordial.

Pobre dicionário que, portanto, só pode conter definições - parcas definições. Jamais verdades. Jamais inverdades. Jamais dúvidas, anseios ou frustrações.

Nunca saberão os que consultam os dicionários que o interlúdio pode sinalizar mudança de direção. Que ele pode ser o crepúsculo ou o alvorecer. Mas que, sobretudo, significa o fim da inércia. O interlúdio é sempre o contraponto que indica um novo movimento. É, em outros termos, o negativo da imagem que seremos no porvir.

Posto nestes termos, o interlúdio - quando chega - pode significar um sopro de vida para quem imergiu num marasmo (que parecia) incontornável. Sugere o fim, esperado fim, do tédio existencial, da ressaca vital que se abraça à alma como um enfermidade se empodera do corpo.

O interlúdio, se me permitem ainda levar essa pobre metáfora até sua última instância, é o que preenche o espaço que se localiza entre o que é agora e o que doravante será. Mais do que alento, é quase uma compensação para quem, afogado na apatia, vivia sem expectativas.

E quão esperado é, em vista disso, esse momento de se metamorfosear - tomar outra forma ou simplesmente se disfarçar. Mas como falar aos quatro cantos o que silencia? Como esclarecer o que obscurece? Como ensandecer, e tornar cognoscível, aquilo desvairia?

Tarefa árdua que não cabe ao pobre dicionário - companheiro inoportuno num momento inglório. Pobre dicionário, que não pode abarcar minhas dúvidas, meus anseios, minhas frustrações.

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O inverno aponta seus dedos molhados

28.4.14 Mademoiselle Fifi 0 Comentarios


Os melhores dias surgem com as chuvas
são neles em que tudo se acentua
o odor da terra
o gosto da bolacha Maria
e o cheiro de pimenta do reino do teu corpo me faz lembrar
sob a chuva
que neste teu reino nômade eu sou forasteira.
- Que inferno! Nos dias de chuva as memórias ardem.
A chuva é o pecado em forma líquida e oblíqua
ela aponta que desse mundo tudo irá tombar e que também não sairemos vivos dele.
E é no outono que ficamos mais céticos, porque nele tudo fica tarde logo cedo.


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A flor e a estátua de bronze

28.4.14 Cabotino 0 Comentarios


Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!
(José)


No Brasil, o poeta que mais tenho afinidade e cumplicidade é Carlos Drummond de Andrade. E quem não gosta de Drummond é uma pessoa potencialmente desagradável.

Em Copacabana há um circuito de estátuas em homenagem a algumas pessoas de relevo na cultura brasileira e que, evidentemente, moraram ou enalteceram o Rio de Janeiro, são sete delas: Dorival Caymmi; Ary Barroso; Braguinha; Siqueira Campos; Princesa Isabel; Barão do Rio Branco e Drummond.

De todas estas estátuas a de Drummond é disparada em assédio e depredação. Para se ter uma ideia do apreço que as pessoas tem com a estátua há um Tumblr chamado, Meu amigo Drummond[1] que reúne milhares de fotografias enviadas por pessoas do mundo inteiro ao lado da estátua, há até fila para pousar com a imagem do poeta itabirano. Por outro lado, estima-se que desde sua inauguração (2002) até hoje, a estátua do “homem por trás dos óculos e do bigode” (Poema de sete faces) tenha sido alvo de aproximadamente dez avarias, especialmente em seus óculos, o que está orçado, segundo a prefeitura do Rio, no montante de R$ 25.000 gastos nas reparações[2].

Eu fico me perguntando por que a estátua (em bronze) de Drummond causa tanto furor nas pessoas? Ela é mais noticiada do que a do próprio Cristo Redentor (em pedra sabão) com seus braços arqueados e cansados sobre a Baía de Guanabara, onde as pessoas sempre que podem não perdem a oportunidade de ajudar o Cristo imitando o seu gesto, ridicularmente. A estátua de Drummond é curvada, diferente do Cristo que exclama em pé, ela interroga e reflete os “oitenta por cento de ferro nas almas” (Confidência de itabirano) alheias e, os vinte por cento restantes, ela comunica por trás de seus óculos que é a alegria brasileira, que é, diga-se de passagem, bem triste “A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, preguiçosa” (Explicação).

As recalcitrantes depredações na estátua de Drummond provam de alguma maneira que ela incomoda mais do que as demais, e não é por seu material, o bronze, haja vista, as demais na orla de Copacabana também são, e não é pelos óculos porque na última depredação ela foi pichada, eu acredito que é pelo motivo da estátua, ou seja, o próprio Drummond. Um poeta que escreveu isso “Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos / assim te levo comigo, tarde de maio” (Tarde de maio) só pode gerar inquietações nas pessoas. Drummond é a pedra no caminho da hipócrita alegria brasileira “Vomitar esse tédio sobre a cidade. / Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado. / Nenhuma carta escrita nem recebida. / Todos os homens voltam para casa. / Estão menos livres mas levam jornais / e soletram o mundo, sabendo que o perdem” (A flor e a náusea), diria mais, Drummond é o grão de areia na camisinha ufanista brasileira “Eu também já fui brasileiro / Moreno como vocês. / Ponteei viola, guiei forde / e aprendi na mesa dos bares / que o nacionalismo é uma virtude / Mas há uma hora em que os bares se fecham / e todas as virtudes se negam” (Também já fui brasileiro). 

Drummond acompanhou de perto as transformações no interior da sociedade brasileira dentro e fora do Estado, não devemos esquecer que ele fora funcionário público alocado na pasta do ministro Gustavo Capanema no MES (Ministério da Educação e Saúde Pública) onde não perdeu por nenhum segundo a sua autonomia intelectual e artística, e acompanhou toda Era Vargas em diante e também as mudanças culturais no país, viu de perto os rumos da nação e “seus recalques se sublimando” (Não se mate) mostraram que há tempos – como o atual –, “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram / E as mãos tecem apenas o rude trabalho [...] Chegou um tempo em que não adianta morrer. / Chegou um tempo em que a vida é uma ordem” (Os ombros suportam o mundo). 

A imagem de Drummond gera nas pessoas um magnetismo que mostra e demostra quanto o poeta é intransponível na cultura brasileira, e o quanto ele atormenta com seu grau máximo de exigência em tudo o que tocava e fazia, talvez por isso, hoje seu olhar por trás dos óculos de bronze aponte para as pessoas e para o país que ali dentro, apesar do bronze, há uma flor que fura o asfalto do atraso brasileiro, o tédio latino-americano, o nojo de encarar a primeira década deste século e o ódio de não ver o Brasil se realizar logo.






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Morro do Peludo S/N

24.4.14 Cabotino 0 Comentarios


- Bom dia. Primeiramente vocês devem estar se perguntando por que um jornalista está dando este workshop para cinegrafistas. Pois bem, venho a pedido da empresa fala-vos, ou melhor, mostrar-lhes como proceder no trabalho de campo, especialmente, com os links ao vivo que é o nó górdio da tevê brasileira e mundial. A reportagem ao vivo possui contingências e variáveis que são difíceis de aferir, portanto, vou ensinar-lhes algumas lições para o futuro trabalho de vocês.

A primeira lição que vocês devem aprender é que televisão não é cinema, por isso, nada de inventar tomadas mirabolantes ou planos longos. Isso aqui não é um filme de Antonioni “aposto que estes idiotas não sabem quem foi Antonioni e nunca viram um filme dele”. Façam o simples que o resto do trabalho fazemos na edição. Lembrem-se, tevê é tempo e o tempo é fundamental para os nossos anunciantes que pagam os nossos salários. A tevê para nós acontece no horário do intervalo que é o horário de faturar, por isso, nosso objetivo é a audiência e é ela que atrai a publicidade. Vocês vão lá e filma e só. Vocês são os nossos olhos e isso não é uma metáfora “será que eles sabem o que é uma metáforaacredito que não”. São olhos e nada mais. Então, não quero questionamentos sobre o conteúdo que será veiculado pelos olhos de vocês, não me interessam eles.

Qual é mesmo o nosso objetivo?

- A audiência.

- Muito bem. Em relação a isso, os estudos de campo do nosso pessoal de pesquisa comprova que o drama humano atrai a atenção dos semelhantes “grande descoberta, esse pessoal recebe uma fortuna para descobrir o óbvio, quero ver eles em campo cobrindo uma guerra civil ou conflito de terroristas pelo mundo afora e torcendo para não pisar em uma mina terrestre”. Diante disso, quando o jornalista perguntar a um entrevistado como foi sua tentativa de suicídio e este disser: “eu cortei o meu pulso”, vocês descem a lente e dá um close no pulso para mostrar a cicatriz. Quando ele chorar vocês deem um close nos olhos, pois as lágrimas são um bom negócio para a tevê “Machado de Assis uma vez disse que lágrimas não são argumento, mas para a tevê elas são um argumento irrefutável para a audiência”.

É preciso fazer um mosaico do Brasil e vocês são os olhares treinados que irão montar este mosaico “será que eles entendem que estou falando de uma construção ideológica do Brasil. Não há mosaico o que há é uma invenção que construímos deste país plural e mutante como poucos no mundo”, por exemplo, queremos a genuinidade do Brasil, a raiz e o autêntico. Se vocês tiverem mostrando um índio, nada de filmar a sua Havaiana; a 51 ou o refrigerante que ele toma, pois índio anda de cocar e não tem celular, entenderam. Agora, se a pauta da reportagem pedir, vocês vão e filmam tudo isso que falei “evidentemente veiculamos quem pagar mais, se os madeireiros querem transmitir os índios como seres relapsos e usurpadores que não tem nada mais de autêntico, vamos seguir isso” entenderam?

- Recapitulando, quem dar a sugestão da câmera?

- A pauta, senhor.

- Não me chamem de senhor, não sou tão velho assim, apenas mais experiente do que vocês. Enfim, outra coisa de suma importância. Essa questão é fundamental para as transmissões das autoridades católicas – padres, arcebispos, bispos, cardeais e o papa –, e não serve para outros credos “aposto que eles nem desconfiam que o Vaticano seja um bom negócio para a empresa porque a Santa Madre Igreja vende mais do que boca de urna em véspera de eleição neste país” e esta questão consiste em: vocês tem que filmar a autoridade católica de baixo para cima, uma contra-plongée, este tipo de tomada seria como um submarino emergindo da água e é preciso pegar debaixo para cima, por quê? É um recurso estético eficiente e realça a indumentária da autoridade religiosa “eles nem desconfiam que este recurso de câmera sirva para dar mais realce a autoridade católica, vemos eles debaixo para cima como se fosse a própria arquitetura das catedrais católicas e devemos nos inferiorizar diante desta imagem demiúrgica, é puramente ideológico, pois a Igreja Católica nos paga tão bem quanto show de Roberto Carlos no fim de ano”.

Antes do coffee break irei dar mais algumas lições e elas irão em direção aos trabalhos de campo nervosos, ou seja, manifestações e reportagens sobre o MST. Em relação a este último, vocês devem filmar as manifestações e passeatas deles de cima para baixo, uma plongée – de cima para baixo, haja vista, este recurso ressalta a dimensão da manifestação deles e acentua a sua causa “coitados, nem intuem que com este recurso de câmera faz com que sobrevoemos a passeata, sugerindo superioridade em relação à causa deles que é rebaixada e ilegítima, inferiorizada para nós”. Já em relação aos protestos de rua, passeatas de estudantes e estes meninos que se vestem de preto, os black boyzinhos, ou melhor Black Blocks, vocês devem dar ênfase seguindo o trabalho dos policiais filmando-os por trás e seguindo com a câmera na mão o seu trabalho nas manifestações “acreditem, eles não fazem ideia de que com este recurso de câmera nós estamos dando ênfase ao trabalho da polícia e legitimando-a porque eles estão do nosso lado, ou seja, defendendo o monopólio da força do Estado e com isso fortalecendo a máquina que também monopoliza os impostos e a continuidade do jogo político que assegura a ordem das coisas vigentes, o status quo”.

Após o coffee break, vamos falar do trabalho em Brasília, como vocês devem agir na cobertura dos políticos e suas legendas partidárias e também nos debates eleitorais “eles não fazem ideia das diferentes diretrizes que imprimimos nos partidos, pensam que estamos fazendo a isonomia democrática e estamos não há dúvida disso, o segredo da cobertura política não está tanto nos recursos de câmera, mas sim na edição das imagens”.

Por hora é isso, nos vemos após o intervalo e sugiro que comam bem, pois fora do Brasil não há esta boquinha.


*Imagem do filme Cidadão Kane (Orson Welles, 1941)






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Crônica de uma morte anunciada, um livro imune aos espoliadores

17.4.14 Foi Hoje! 0 Comentarios


Vivemos a Era do Fetiche e podemos ver suas marcas nas Festas literárias que grassam pelo país de uma década para cá. Uma ampla maioria lotam os auditórios destas Festas para ouvir um escritor falando sem nunca terem lido nada deles, só para ter um autógrafo no final e uma foto selfie postado nas redes sociais, pois o escritor é apenas uma extensão de sua vaidade.

Quantos de vocês já não cruzaram com pessoas que dizem assim: “eu fui à primeira sessão (...) comprei na pré-venda (...) ainda não havia saído e eu já tinha (...) um amigo trouxe dos EUA (...) estava na noite de autógrafos (...) fui à priemere etc.” Como se a primazia a um bem cultural fosse algo além da fruição do próprio objeto artístico e servisse apenas para endossar o currículo narcísico que, evidentemente, está associado a uma hierarquia de classe e a construção de uma distinção feita quase nestes termos: “eu sou foda porque eu tive em primeira mão e você vai pegar o resto seu atrasado”.

Outro dado desta Era são as pessoas que tem acesso primeiro a bens culturais, geralmente seriados e filmes, e que adoram estragar a narrativa contando um trecho marcante da história para os que ainda não tiveram a oportunidade de ver, é o chamado spoiler e seus praticantes são adjetivados de espoliadores – o estraga prazer. 

Diante disso, Crônica de uma morte anunciada é imune aos espoliadores, por quê? Leiam o primeiro parágrafo do livro escrito por Gabriel Garcia Márquez (El Gabo), um escritor nascido das entranhas de uma Macondo

“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h 30m da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sono, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros. ‘Sempre sonhava com árvores’, disse-me sua mãe 27 anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira ingrata” (tradução para o português [BRA] feita por Remy Gorga para a Editora Record).


A excitação desta obra prima do escritor colombiano não é afetada pela revelação logo na primeira linha do livro, mas dar-se a partir daí. O romance escapa dos clichês tipificados pelo romance policial que repete, entre outros lugares-comuns, a cena de que o assassino sempre volta ao local do crime etc. Com sua narrativa “cinematográfica”, Gabo conduz o leitor como um travelling pela vida de Santiago Nasar que é assassinado pelos irmãos de Angela Vicario por ter-lhe desonrado. Em um único dia vemos as séries de contingências que levarão ao trágico fim de Nasar naquela segunda-feira ingrata.

Gabo pega à mão do leitor em Crônica e diz como G. De Andrade em seu lendário Comando da Madruga: “vem comigo”, e o carrega através das veredas de uma leitura única, pois mesmo sabendo do desfecho somos guiados por um flash back alucinante pela vida de Nassar. Além de ser uma narrativa ímpar, Crônica é uma aula de literatura não só para quem deseja escrever ou vive da escrita, mas acima de tudo, para quem admira um trabalho bem feito.

Enfim, Gabo em Crônica ensina aos espoliadores de plantão na Era do Fetiche que a fruição estética de uma narrativa supera qualquer vaidade que tente estraga-la, porque a arte sempre será imune a narcisismos.

por Renato Ribalta


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Azul da cor do Blue

17.4.14 Foi Hoje! 0 Comentarios



Leia este texto ouvindo o disco Blue da Joni Mitchell
[...]
Ei Blue, essa música é pra você
Tinta negra na ponta da agulha
Que perfura a pele
Repleta de espaço vazio pra preencher.
[...]
Tudo mundo está dizendo: “Ir pro inferno é o que há”
Mas eu acho que não.
Ainda que eu vá até lá, só pra olhar.
Blue, te amo.
(Joni Mitchell)

Há alguns dias zapeando pela internet na madrugada vi que haviam postado no Fórum do Making Off o filme, Azul é a cor mais quente (2013) cujo título original é La Vie d'Adèle escrito e dirigido pelo cineasta franco-tunísio Abdellatif Kechiche. De início, fiquei com algumas reservas em relação ao longa e, principalmente, pelo tamanho do arquivo, seis gigas e meio – haja HDs para suportar o triunfo do digital sobre o celuloide.

Enfim, resolvi dar um crédito a produção e fiz o download do arquivo e sua respectiva legenda, pois do idioma de Montaigne não tenho ainda músculos suficientes na língua para degluti-lo sem este expediente.

Quando abri o arquivo em Blu-ray (o azul já estava presente no formato do arquivo) vi que o filme tinha três horas, pensei, duas da manhã... Vai acabar lá para as cinco. E não é que vi o filme do fio ao pavio.

De início, não é um filme que me agrada, achei-o muito gorduroso (longo) e rocambolesco, porém entendi a proposta e o aceite como foi feito.

O tema candente para mim foi à relação entre o corpo versus a mente, onde a personagem Adèle (Adèle Exarchopoulos) representa o primeiro pólo e Emma (Léa Seydoux) o segundo. Esta tensão também está presente no último filme de L. V. Trier, Ninfomaníaca (2013). Esta batalha pode ser traduzida também em uma Europa cindida por uma tradição humanística onde Emma é a herdeira de um universo sublime das Belas Artes (ela estuda a matéria e já faz alguns trabalhos em óleo sobre tela) e tem como círculo de amizade pessoas ambientadas ao mundo do simbólico e uma família moderna e abastada com os pais divorciados e que não a censuram por ser lésbica. Já Adèle é à força de Eros (a pulsão indômita de uma natureza irrequieta) que mimetiza o atavismo das classes subalternas que a Europa sempre sonegou como fonte de sua formação (tema caro a cinegrafia europeia desde, Metropolis [1927] a Underground [1995] e são os que vivem nos subterrâneos, nas camadas mentais incontroláveis), mas que se faz presente nos trabalhos considerados menores. Lembremos que Adèle é desdenhada por Emma e seus amigos e família por querer trabalhar com crianças, ou seja, é a reprodução social do corpo que sempre esteve associado ao pueril e a mente ao sublime em uma Europa que mesmo atravessando uma aguda crise econômica – elas vão a passeatas contra a privatização do aparato estatal francês –, faz coro as velhas práticas estabelecidas pelos segmentos mais “esclarecidos”, pois são eles que reproduzem este arquétipo colonialista.

O olhar de Abdellatif Kechiche também é contaminado por esta ideologia colonizadora que falei acima, basta ver os closes “ginecológicos” que ele faz na boca de Adèle quando ela está dormindo e também quando abre a lente para mostrar a postura do corpo da personagem dormindo, todas sensualizadas, e não vemos o mesmo tratamento na economia interna do filme sendo dado a Emma.

Tanto Emma quanto Adèle também mimetizam uma lógica dos papeis de gênero, a primeira sendo o “homem” da relação e a segunda a “mulher” (ainda estamos nos pólos: corpo versus mente; senhor versus subalterno; homem versus mulher) evidenciado nos trabalhos domésticos, Adèle cozinha e serve a todos o seu tentador espaguete à bolonhesa – destaque para os eróticos closes das bocas e mãos lambuzados –, e sempre quando ela entra em cena há o seu corpo sendo tomado inteiro seja nas danças (ela é fã de Buena Vista Social Clube) e em seus trajes extremamente feminino, enfim, ela é uma extensão do seu corpo, e só. Quando Emma entra em cena é o silêncio que reina, ela é polida e gosta de frutos do mar com vinho branco (seus costumes reflete sua herança de classe), seu corpo não é sensualizado e seus trajes são neutros.

Em relação às cenas de sexo que causaram um certo frisson no lançamento do filme no Brasil, com uma possível censura no circuito comercial, não há nada de apelativo ao meu ver, exceto, a primeira cena que dura mais de seis minutos, mas como falei anteriormente, faz parte ao meu ver da proposta rocambolesca do filme assim como a cena da briga entre as duas – um dramalhão que faria E. Rohmer enrubescer –, um barraco de estremecer os alicerces da vizinhança.

Um movimento intrigante no filme que foi apontado por um amigo meu (Gustavo) é o da cor azul. Quando a cor entra na vida de Adèle através da coloração dos cabelos de Emma que a atraí como imã na cena do semáforo, e a envolve completamente durante toda a relação principalmente em suas roupas. Na cena da praia após a briga com Emma onde ela está tomando conta das crianças, ela entra no mar e fica boiando (a foto acima faz alusão à cena) é ali que ela se vê tomada pelo desejo irrefletido por Emma. Entretanto, nas cenas seguintes, já vemos Emma perdendo a coloração capilar e afastando-se do azul, que talvez seja a síntese do relacionamento das duas, e adquirindo uma pigmentação mais opaca, típica de uma de obra arte que perdeu seu tema recorrente e explode para outras direções mais frias, porém, plurais.

Ao cabo, não houve vencedores tampouco vencidos, houve a escolha de Emma por seu mundo e por tudo aquilo que sempre lhe foi familiar, o sublime de uma vida mais contemplativa a partir da constituição de uma família (os “homens” são mais propensos a repor uma relação mais duradoura após o termino de uma anterior, do que as “mulheres”). Para Adèle lhe restou o convívio, mas amenizado pelas contingências do trabalho e da vida, de uma alma encalacrada em um corpo em constante expansão.

Para ambas, o azul continua sendo uma cor em uma das telas da parede da memória, mas como dói vê-la.

por Renato Ribalta





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O smartphone matou a solidão

15.4.14 Cabotino 0 Comentarios



Acredito que a arte seja um sintoma de alguma coisa que a está incomodando, percebi que algumas das últimas postagens do Foi Hoje! Se debruçaram sobre o tema da aceleração das relações humanas acompanhadas do progresso técnico-científico, em especial, as tecnologias de comunicação. Pois bem, com este mote vou lhes narrar o que aconteceu comigo há alguns dias atrás.

Nos últimos dois dias recebi dez ligações no celular, cinco em cada dia, destas chamadas oito eram para me pedir alguma coisa, ou seja, oitenta por cento das ligações foi uma voz em forma de mão estendida, uma mão pedinte e olhem que eu não sou o ministro da fazenda, nem o diretor do Louvre tampouco o Papa.

Ontem peguei um ônibus às 6h da manhã para ir à rodoviária e pasmem, ouvi a esta hora uma discussão de relacionamento - “você não está entendendo... toda vez é isso, basta eu ir lá para casa de pai pra tu ficar assim... Ela se mudou de lá, menina...” e uma conversa de negócios “olha estou chegando por lá por volta de 1h da tarde, daí eu te ligo e dependendo da resposta tu pode fazer o depósito”. Afora estas conversas que deu para ouvir, ainda vi várias pessoas ao telefone no ônibus e fora dele nas paradas, ora falando, ora digitando. O silêncio e a contemplação tornaram-se atentado violento ao pudor.

Uma vez no ônibus interestadual mais pessoas agarradas ao celular falando da dificuldade que foi pegar o ônibus na hora (...) de quando chegar lá liga (...) e fala pra fulano que já estou no ônibus etc., e isso ainda não era nem 7h da manhã! A discrição tornou-se tão obsoleta quanto aquele Nokia 6120.

O que é tão urgente que não possa esperar um pouco mais para ser dito, um horário mais razoável – o celular acabou com o horário comercial e ampliou a mais-valia.

Daí vocês podem me perguntar, mas os celulares não tem culpa e sim os seus donos e suas inconveniências, será mesmo? Ora, seria muita ingenuidade pensar que uma técnica (a telefonia móvel) é isenta da asfixia que cada vez mais nos sufoca, os celulares hoje tem uma infinidade de recursos agregados que se desdobram em mais recursos comunicativos que nos seduze a utilizá-los sob os infinitos pacotes falaciosos das operadoras (o Brasil tem uma das tarifas mais caras do mundo). Enfim, experimentar uma nova técnica modifica também a nossa experiência com o mundo, por exemplo: quem de vocês pode me dizer onde eu posso encontrar uma cabine telefônica ou aquele cantinho semiprivado, quase nosso, onde as pessoas falavam, despreocupadamente, enquanto enrolavam o fio do telefone fixo como víamos nos filmes e telenovelas?

Para mim todo mundo com um celular incomoda mais que um mau hálito, aliás, o próprio celular é uma invenção com mau hálito.

Não sou nostálgico tampouco advogo um falso idilismo de que no passado às pessoas se entendiam melhor, o mundo continua o mesmo e as pessoas continuam sem se entender, pois a compreensão é uma quimera. Só que hoje temos WhatsApp e celulares com dois chips. O que não dar para admitir é você sair com alguém e esta pessoa ficar na mesa bulinando, falicamente, um celular. Estou avisando, o próximo que me fizer isso não dividirá mais comigo nem uma Coca-Cola.

O celular banalizou a emergência, antes o telefone tocava em sua casa e você sabia que era algo importante, hoje tem dias que você torce para o celular não tocar ou, aqui para nós, admita que você o desliga para ninguém lhe encher o saco durante aquela soneca à tarde. Além de banalizar a emergência ele ampliou a venda de ansiolíticos. Imagine só o quão tristinho você iria ficar se, de repente, todos os seus contatos de sua agenda não atendesse mais os seus telefonemas, se os seus grupos do WhatsApp saísse do ar, você se sentiria um anjinho caído com as asas em frangalhos – um verdadeiro Lúcifer com o sinal fora de área.


*Ilustração feita por Banksy, o artista underground mais mainstream do mundo.
    





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Sobre falta de critividade, ficção, realidade, etc

10.4.14 Unknown 0 Comentarios


"Informações entram pelas narinas e a cultura sai mau hálito." (ZERO QUATRO, Fred)

Na esteira das preocupações mais comezinhas do dia-a-dia, desde o que irá saciar minha fome na próxima refeição até as preocupações sobre o futuro e perpetuação da espécie, da minha espécie, rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, etc, fica difícil pensar numa história exemplar, tanto no sentido negativo quanto no positivo, para jogar neste endereço e entreter o leitor.


Culpa disso, em parte, é deste mundo frenético em que vivemos. Fica difícil competir com essa tecnologia robusta voltada à informação. Existem canais de televisão e internet que se dedicam a dar novas notícias todos os dias, vinte e quatro horas por dia.

E, para esta tarefa, haja poder inventivo.

Neste ponto faço referência a uma já clássica comunidade virtual que tinha como nome o título de uma matéria jornalística divulgada amplamente mundo afora: “Anão vestido de palhaço mata 8”. Dentro da qual se seguiam outras como “Padre morre após levantar voo com mil balões de festa”. É complicada ou não a disputa? Minha ficção não é páreo para essa realidade.

Se eu vivesse no tempo de Rubem Braga, em que até os telefones locais eram raridade, talvez fosse mais fácil me inspirar nos seus gestos: ir para uma praça ou praia, se distrair com um cajueiro ou passarinho, matutar, ruminar, e, por fim, exausto de tanta divagação, escrever.

Mas vivo hoje, em pleno século vinte e um, e a avidez por informação é a cocaína destes tempos. Agora entendo a mãe de uma amiga que sempre me aconselhava a tirar dez minutos do meu dia para perder com pensamentos pueris, frívolos e fugazes. É para descansar os sentidos, ela dizia. Quanta sapiência! Mas no auge dos meus catorze anos eu confundia as coisas: pensava que descansar os sentidos era deitar ridiculamente com uma rodela de batata sobre cada olho, assim como ela fazia.

Talvez ela estivesse percebendo o que hoje tenho como certeza: sim, fomos vencidos pela máquina. Não a da ficção científico-cinematográfica, mas esta que hoje é a maior extensão do corpo: o celular - ressalva feita para os fumantes. É incrível como a maioria das tentativas de se resguardar dez minutos do dia sucumbe ao desejo de cutucar o smartphone.

E enquanto essa febre não passa, basta me conformar e esperar pacientemente as crônicas de Castanha, que uma vez ou outra puxa um coelho da cartola.

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Sei um segredo, você tem medo

9.4.14 Foi Hoje! 0 Comentarios



Ontem, após a quinta semana de exibição, resolvi assistir ao filme Eles voltam (2011) escrito e dirigido pelo cineasta brasiliense, Marcello Lordello. 

Foi uma noite de domingo típica no bairro do Derby, solitária e iminentemente perigosa, acentuada por ser dia de clássico das multidões, Santa Cruz e Sport fizeram a primeira partida decidindo uma vaga na final do campeonato pernambucano, porém, às 20:40h não havia multidão nenhuma nas imediações da Fundaj do Derby. Só o casal de flanelinhas e os namorados incautos que chegavam de táxi ou de carro para pegar aquela última sessão.

A sessão estava relativamente vazia. O silêncio pairava a tal ponto que dava para ouvir o som do ar-condicionado da sala José Carlos Cavalcanti Borges (cinema da Fundaj) e também dos bocejos de alguns espectadores. Devemos condescender estes bocejos, haja vista, ser domingo à noite e, principalmente, pelo ritmo do filme que exige-nos uma contemporização que escapa a socialização de nossos olhares e ouvidos habituados à estética célere da publicidade, dos blockbusters hollywoodianos, ao futebol televisivo e, claro, pela Globo e suas 1001 câmeras em uma noite.

Eles voltam preza pelo tempo morto – onde aparentemente nada acontece –, preza pelos planos longos e abertos como os eternos canaviais da zona da mata pernambucana, preza pelo silêncio e é um filme que plasma a vida dos irmãos Peu (Georgio Kokkosi) e Cris (Maria Luiza Tavares), um casal de adolescentes que é abandonado por seus pais em uma estrada como castigo por estarem brigando, como relatará Cris em seguida, na única ocasião em que ela narra minimamente o que lhe ocorreu. 

Enfim, Eles voltam é um filme que faz falta ao cinema brasileiro porque faz uma reflexão cadenciada dos nossos sentidos já tão saturados de estímulos.

A partir daí o filme passa a ser um walk-movie de um dos temas mais recorrentes no imaginário Ocidental: o regresso para casa. Cris aos doze anos se vê só na estrada, abandonada por tudo o que lhe dá sentido na vida, sua família e, ao som de Clube da esquina vol. I (Tudo o que você podia ser) começa sua pequena odisseia de volta para casa.

Neste périplo ela vai de um assentamento dos sem-terra (MST), onde apesar do estranhamento mútuo – ela é branca, tem um smartphone e comi delicadamente – é tratada com uma dignidade que põe em xeque à reportagem da Globo que desqualifica a “invasão” dos sem-terra em uma plantação de laranjas (da Cutrale) no interior de São Paulo, dizendo ao avô em uma suntuosa mesa de café da manhã, “antes disso eles deveriam ver como eles vivem”, quando já se encontra na casa de seus avós, até ser “resgatada” por Pri (Irma Brown) sua vizinha de casa de veraneio que, talvez seja o seu reflexo futuro, uma personagem saturada da vida metropolitana e da pressão familiar que se refugia, hedonisticamente, no único lugar do mundo que não considera estranho, seu corpo.

Cris é uma menina de classe média alta recifense e, antes de dizerem o jargão batido “classe média sofre”, devemos fazer o exercício de alteridade, pois sem ele, o filme perde a sua estética e sua ética. Para mim, o ponto forte do filme é a relação com o Outro. Há nesta relação todo o conflito de classe e do habitus (a disposição corporal) de Cris no contato com as classes subalternas, e a câmera capta bem este contraste, desde as mudinhas de planta e galinhas no assentamento; ao acanhado pedido de absolvente no banheiro da comerciante que lhe dá guarida e o respectivo primeiro banho de cuia; a telenovela vista em grupo e a faxina na casa de veraneio – ela não sabe pegar em uma vassoura e sente-se logo cansada após alguns segundos de limpeza e vai ver tevê.

Esta indisposição de Cris às atividades práticas do dia-a-dia reflete a crise de experiência do mundo contemporâneo e, principalmente, das classes médias. Podemos detectar isso no contato de Cris com Elayne (Elayne de Moura) – da mesma faixa etária só que com a distância física própria dos condicionamentos de classe –, irmã do trabalhador assentado do MST que lhe leva para casa e lhe dar teto e comida. Elayne apresenta a Cris um mundo semionírico – horizontal e onde dá para se perder embaixo de um bambuzal e ouvir a sua singular sinfonia.

Outro contato marcante é o de Cris com a filha da comerciante que lhe dá abrigo por alguns dias que, assim como a menina Elayne no assentamento, são loquazes nas descrições de suas experiências com o mundo, enquanto Cris permanece em silêncio. A filha da comerciante vai enumerando os acontecimentos de sua vida desde São Paulo (onde nasceu) e depois em Tamandaré (litoral sul pernambucano) até dizer que vai ao Centro do Recife fazer compras.

Esta acentuada escassez de experiência de Cris e de sua classe social fica evidente no trabalho em grupo que ela tem que fazer para a escola quando retorna para casa. Como estava ausente por uns dias, ela é escalada pela professora para fazer com uma colega de turma considerada uma “pária” por suas amigas. Uma vez na casa desta colega, as duas travam uma conversa recheada de monossílabos e após imprimirem as fotografias para o trabalho, Cris começa a ver os retratos da colega de turma pendurados na parede de seu quarto e pergunta quais são aqueles locais das fotografias e sente-se com inveja da vida em trânsito da colega lhe dizendo: “eu sempre morei no mesmo prédio e estudei na mesma escola” ao qual a amiga de turma responde: “sorte a sua”. Após esta conversa, a anfitriã leva Cris ao parapeito do edifício onde mora e as duas tentam localizar lá de cima a partir de uma Recife verticalizada e labiríntica onde fica a escola e o mar. Em seguida, Cris acossada pelo desejo de ir ao centro da cidade, em um desejo oriundo da conversa com a filha da comerciante, e ela e a colega resolvem pegar um táxi, sorrateiramente, para encarar à cidade como um "bambuzal de concreto e aço proibida" para elas.

Por fim, o ponto alto do filme é a relação entre Cris e Peu cuja cena no corredor do hospital sintetiza, em ampla medida, o atual estado das convivências contemporâneas não só entre irmãos adolescentes de sexos distintos, mas de uma sociedade que aprendeu e desenvolveu uma forma de relacionamento mediado por uma técnica, a tecnologia. Cris só consegue entrar no universo do irmão, desde a primeira cena em que ambos lutam pelo celular até a cena no hospital, a partir da interposição tecnológica e é aí que ela faz o irmão se redimir, não só do fato de lhe ter abandonado na estrada sozinha, mas também de alguma peleja maior entre ambos e que talvez tenha sido o fato desencadeador da "viagem particular" de cada membro de sua família àquela altura. Após esta cena, Cris vai visitar à mãe que provavelmente lhe aguardava com aquela sensação que só as mães possuem quando se referem aos filhos que erraram pelo mundo, Eles voltaram.


*Cartaz do filme por Clara Moreira.

por Renato Ribalta

 

             
             
           
            

           
            

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Depois se pergunta por que vai dormir sozinha todas às noites, pudera, vai ao bar sozinha e fica lá com aquela cara de poucos amigos, mais amarrada do que cara de agiota. Fica lá com aquele copo de Brahma semigelado afim de fumar um cigarro e arrumar um boy pra jogar conversa fora pela noite adentro. Quando não vai só, vai com aquelas amigas horrorosas só para sentir sua autoestima mais elevada e ser o centro das atenções e dos desejos da mesa. Quando não são as amigas tribufus são aqueles amiguinhos viados que compartilham a tristeza da solidão nos papos sobre o zodíaco e sobre felinos – “menina minha gata tá tão braba, acho que tá no cio”.

Todos se perguntam “como uma menina tão bonita, gostosa, com grana, inteligente está só esta noite?”. E ela também se faz esta pergunta. O olhar de sua mãe também faz esta pergunta (excetuando-se o “gostosa”, palavra vulgar para a sua mãe) aos sábados quando ela sai de casa com aquele vestido vermelho, cor de barro molhado, com um decote parecido (se não fosse às alças) com o de Anita Ekberg adentrando majestosamente a Fontana di Trevi em La dolce vita.  Seu erro é achar que às noites recifenses são às noites romanas das intrigas e dos desencontros dos filmes de Fellini. O problema de quem procura um Marcello Mastroianni é que este procura a sua Sophia Loren e, evidentemente, falta-lhe alguns atributos além de não ser italiana.

Ela é daquelas que se contenta em receber uma comida de olhos da cabeça aos pés. De se regozijar toda por dentro só por que se sentiu desejada por um olhar e se esse desejo for externado por um elogio verbal, pronto, já dormirá satisfeitíssima.

Falo para ela direto: “menina, saí dessa. Eu já passei por essa fase e desse mato não sai coelho nem cobra. Não quero dizer com isso que você saía por aí se permitindo a tudo e a todos, mas seja mais razoável. Seja mais susceptível às investidas. Esse negócio de que mulher não flerta é do tempo que Cleópatra banhava-se no Nilo ainda menina. Tu és um mulherão, essas pernonas, esse bundão. Tens um par de olhos sedutores e arrastados. Uma pele bem branquinha. Cabelo lindo. Tu vai deixar isso tudo ser banquete dos vermes e do tempo? Eu sei que todos homens são idiotas, são uns chatos que saem de um buraco e vivem querendo voltar para ele, mas sexo é sexo e se ele fosse algo que requer muita hesitação o mundo não teria inventado o erotismo tampouco a camisinha. Pense nisso”.


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