A consciência insiste em fantasmagorizar o que na verdade não passa de lembranças e nada mais
Talvez
a nossa grande tragédia não seja a morte, como constataram os filósofos do
absurdo, sobretudo Albert Camus, mas sim a consciência não só de nossa finitude
como a consciência que tenta dar sentido a tudo e, para isso, divide o tempo em
uma estrutura tripartite: presente passado e futuro. Uma consciência que
insiste em encontrar regularidades nas coisas da natureza tanto dentro quanto
fora do nosso corpo, como no caso da narrativa científica. Porém, acredito que
o maior dos fantasmas que a consciência se depara é com a presença dos que já
morreram. E nisso o protótipo do príncipe dinamarquês shakespeariano, Hamlet,
seja a personagem mais acabada do que pretendo dizer.
Acossado
pelo fantasma do pai, Hamlet busca justiça crente de que seu pai fora assassinado
por alguém de sua corte. Esta consciência leva-o a veredas que todos vocês
conhecem. Pois bem, minhas inquietações não são de ordem grandiloquentes como
nas tragédias shakespearianas destituídas de legitimidade divina, isto é, os
conflitos narrados pelo bardo inglês se dão na esfera terrena, não há deuses
para chancelar as querelas humanas, literalmente humanas. Minhas pretensões são
bem mais modestas aqui. Acredito que o que irei narrar provavelmente já
aconteceram com vocês.
Bem,
ontem acordei sobressaltado por um sonho, não diria pesadelo. Sonhei com um
amigo que morreu há uns anos por conta de insuficiência renal. Era mais velho
que eu e esteve presente de maneira significativa na minha adolescência,
naquele fase em que tudo é ênfase. Desde que morreu, nunca sonhara com ele, por
que agora? Não sei dos desígnios das lembranças embaralhadas no sono, tampouco
pretendo empreender um trabalho de gênese freudiana e buscar o grau zero dessa
memória em particular.
O
que lembro do sonho é que meu amigo falecido falava-me, lá onde residia quando
vivo, sentado, um pouco mais magro, cabelo cortado e uma barba de semanas: “eu
não morri, o que dizem por aí foi um mal-entendido, eu voltei do hospital,
passei um tempo fora e agora estou aqui”. O que isso quer dizer? Não sei,
lembro-me de acordar assustado no meio da noite. Olhar através da janela a
madrugada fria e chuvosa de agosto e, em seguida, fechá-la, voltar a dormir com
a imagem dele renitente em minha memória, agora plena por conta da vigília do
sono recém desperto.
Recapitulando
o sono, lembro-me que além do meu amigo morto, havia quatro mulheres, duas mães
e duas filhas, uma com o nome de Maria. Além delas, meu irmão me acompanhava à
casa do meu amigo falecido e, defronte a ela, nós prestávamos atenção a um
avião que viajava placidamente em um céu de brigadeiro. O voo era espetacular
enquanto as duas meninas subiam correndo as escadarias que dão acesso à casa
onde meu amigo morava. Porém, eu fui o único a falar com meu amigo morto.
A
presença dele ali na minha frente foi um momento efusivo para nós dois.
Lembro-me que nos abraçamos e ele me falou as palavras que citei há pouco.
Depois destas cenas em aparente desconexão – meu irmão, as mulheres, o voo do
avião, a conversa com meu amigo morto -, acordei com uma sensação esquisita e
ambivalente: feliz por revê-lo tão nitidamente e triste por saber que fora
apenas um sonho.
A
consciência nítida que assevera que os que já morreram não voltarão mais é
menos atroz do que aquilo que deveríamos ter dito em vida, e por medo ou outra
circunstância comezinha, não dissemos para aqueles que já morreram. E esta
dimensão é menos devastadora do que a oportunidade de dizermos, em sonho, aos
que já morreram, o quanto eles foram imprescindíveis para nossas vidas. Por
isso registro aqui antes que minha consciência torne-se finda, ou antes que
esqueça do sonho: eu sei que sua morte foi um mal-entendido, você está aqui e
agora e posso te dizer: venha quando quiser porque quem ama não estranha os
desígnios da consciência, caso contrário, viveríamos no desnecessário drama
hamletiano.
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