Ciclo do ônibus

31.8.15 Castanha 1 Comentarios





Todos os dias a mesma peleja. Janaína, às 4 da manhã, desperta corre e nem come; veste roupa; bota sapato e segue para parada de ônibus. Ônibus que nem tem hora para passar. Mas que passa antes das 7 da manhã. Encostada, ali completa seu sono até que o barulho do motor a acorda. Entra, paga, senta... No meio do caminho levanta a vista e enxerga uma velha e lhe cede o assento. Olhando de cima, para a velha, estuda as cicatrizes que o tempo fez naquele rosto... Quantas dessas rugas nasceram de expressões de tristeza e cansaço por não ter um trocado no bolso? Com certeza, nem a pobre velha sabia. Tentando esquecer tais pensamentos, ela olha pela janela e seu reflexo se mostra no vidro, vê suas expressões de cansaço e ali, equilibrando-se entre bolsas, entristece quando lembra que, dentro de sua bolsa, há seus currículos. Currículos que serão plantados e uma vez que derem frutos, no futuro, quando alguém lhe ceder lugar no ônibus e olhar para baixo estudando suas cicatrizes não tenha pena ao imaginar como foi seu passado.
Escrito por Renan Belém

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O livro que eu não roubei

27.8.15 Unknown 0 Comentarios



"rede ao vento

se torce de saudade
sem você dentro"

(Alice Ruiz)

Na época eu trabalhava numa dessas seções burocráticas vinculadas, em última instância, à prefeitura do Recife. Passeava de escola em escola, dando aulas aos alunos sobre arborização, preservação do patrimônio público, meio ambiente, essas coisas. Cada aula, em cada escola, era sempre um desafio: todas aquelas estantes repletas de livros me faziam trabalhar o autocontrole para não me apossar de cada exemplar que me agradava. Passava, no entanto, pelo martírio sem maiores percalços. Não foi o que aconteceu quando me
deparei com "Desorientais", livro de poemas de Alice Ruiz. Há tempos eu vagava pelos sebos à procura não só desse, mas de qualquer outro livro de Alice - tão raros como os livros de seu companheiro, Paulo Leminski. Minhas investidas, dessa forma, eram sempre frustadas, e eu voltava para casa com as mãos vazias, ou segurando aquilo que não estava nos planos. Mas na biblioteca daquela escola, escondido entre versões robustas de "Casa Grande & Senzala" e "Incidente em Antares", estava "Desorientais" lá, reluzente, destacado apesar pequenez física. Falava com meninas e meninos sempre de olho nele, à minha esquerda. Aproveitei o intervalo, me aproximei, saquei-o da estante, cheirei-o, abri-o aleatoriamente, li dois poeminhas, meu deus, que coisa maravilhosa! Os alunos voltaram e eu falava a eles automaticamente - a dúvida entre pegar e não pegar me consumia: tomá-lo para mim e me divertir noites a fio seria muito egoísmo? Se o livro está ali, parado, ou melhor, escanteado, e ninguém o lê (nem o lerá, acreditava eu), posso então dar-lhe bom destino e levá-lo para casa? Não, não posso: o livro foi comprado com dinheiro público para uso coletivo. Mas se não há um único caso de uso, que dirá uso comum! Vou levar, deixá-lo entregue às traças e toda a sorte de bicho ávido de papel, ah, isso sim é desperdiçar o dinheiro público. Mas ainda estaria me apossando de algo que não é meu, etc, etc. A dúvida moral e a falta de oportunidade de furtá-lo sem ser percebido me fizeram renunciar a essa ideia. E, desde então, dia após dia, ano após ano, eu tenho convivido com o fardo desse erro pavoroso. Às vezes, quando me acordo, olho minha exígua prateleira de livros, e vejo que, no meio deles, há uma ausência irremediável. Apoio o queixo nas mãos e lamento: ah, como teríamos sido felizes juntos.

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Mais um café Cirol Royal, por favor

15.8.15 Cabotino 9 Comentarios


Uma placa com a fotografia de um rottwailer e com os dizeres: “cuidado, cão feroz” alertava os visitantes indesejados. O cão estava protegendo uma edificação há muito deteriorada. Um edifício vermelho, sem ornamentos, tipicamente erigido no ideal estético do “estilo internacional” cuja a forma é a função. Em contraste com o formato funcional da arquitetura do edifício, não havia mais nenhuma função para a antiga fábrica do Café Cirol Royal, localizado no bairro de Areias, Zona Oeste do Recife.

Passei pela edificação inúmeras vezes desde sua franca capitulação. Dizem que o proprietário morreu, deixando a fábrica para os filhos que não deram continuidade ao negócio. Mas, só hoje percebi o quanto este café fez parte de minha vida. Parece que as ruínas da antiga fábrica adentraram os odores da memória e o paladar do passado. Desculpe-me, mas sou um saudosista incorrigível.

O café Cirol Royal é parte constituinte de minha infância, aliás, não só minha quanto de toda minha família. A prova da recepção deste café no seio familiar é que meu tio, quando vinha de férias todos os anos, oriundo do Rio de Janeiro, e ao regressar, levava consigo um fardo do café Cirol Royal para a minha tia que vive com ele na capital fluminense. Detalhe, ele viajava de ônibus na época. Falo aqui não de décadas atrás, mas de no máximo quinze anos. Parece que naquela época, tudo era impregnado de longevidade e, o café Cirol Royal fazia parte deste expediente com o seu cheiro que empestou os recônditos dos espaços afetivos de minha memória.

Às vezes fico pensando como alguns itens de consumo fizeram e fazem parte da biografia das pessoas e elas não se dão conta disso. Eles estão lá nas fotografias de outrora, como as garrafas de refrigerante Bhrama e Coca-Cola presentes nos almoços dominicais e nas festas de aniversário; os inúmeros rótulos da cerveja Antarctica; os maços em box dos cigarros Hollywood; Free e Charme (quem se lembra?).

Lembrar do café Royal (a partir de agora só Royal porque ele é de casa) é lembrar de um estilo de vida mais pausado, menos histérico, com menos bytes e menos polícia. É lembrar do cuscuz com margarina Paladar ou Doriana, o pão com Cremutcho (Mutcho, mutcho bom, quem lembra?), a cream cracker Pilar ou o pacote de biscoito da Confiança, onde a preferência pelo de champanhe geravam grandes entreveros nas famílias. 

Aqui em casa, o Royal era preparado no modo “soldado”: após ferver a água, adicionava o pó e esperava o mesmo assentar. Depois servia. Lembro-me que aqui em casa não tinha garrafa térmica, por conta disso, o Royal ficava no bule. Mainha, se lembra daquele bule? Por onde anda aquele bule...? Era amaçado no meio e seu bico parecia a embalagem do Pato, um produto de limpeza da época.

Nesta apreciação, o café Royal foi sim visitante assíduo de minha casa, tal qual aqueles amigos que nos visitavam e contavam as boas novas (o evangelho como diz os cristãos) do bairro, de sua vida: o casamento, filhos, mortes, quem foi preso, quem está doente, só que de repente, este amigo some do nosso convívio. Às vezes porque apenas se mudou ou anda muito atarefado, outras vezes por conta da “indesejada das Senhoras”, a morte. Hoje percebo que foi assim, de chofre, que o café Royal saiu de nossas vidas – alguém que foi embora sem se despedir, mas sua presença continua latente e pode ser resgatada como um objeto que está ali na fotografia da memória, com sua embalagem rubro-negra e seus caracteres desenhados sobre uma coroa, assim era a embalagem do café Royal.

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A consciência insiste em fantasmagorizar o que na verdade não passa de lembranças e nada mais

15.8.15 Cabotino 0 Comentarios


Talvez a nossa grande tragédia não seja a morte, como constataram os filósofos do absurdo, sobretudo Albert Camus, mas sim a consciência não só de nossa finitude como a consciência que tenta dar sentido a tudo e, para isso, divide o tempo em uma estrutura tripartite: presente passado e futuro. Uma consciência que insiste em encontrar regularidades nas coisas da natureza tanto dentro quanto fora do nosso corpo, como no caso da narrativa científica. Porém, acredito que o maior dos fantasmas que a consciência se depara é com a presença dos que já morreram. E nisso o protótipo do príncipe dinamarquês shakespeariano, Hamlet, seja a personagem mais acabada do que pretendo dizer. 

Acossado pelo fantasma do pai, Hamlet busca justiça crente de que seu pai fora assassinado por alguém de sua corte. Esta consciência leva-o a veredas que todos vocês conhecem. Pois bem, minhas inquietações não são de ordem grandiloquentes como nas tragédias shakespearianas destituídas de legitimidade divina, isto é, os conflitos narrados pelo bardo inglês se dão na esfera terrena, não há deuses para chancelar as querelas humanas, literalmente humanas. Minhas pretensões são bem mais modestas aqui. Acredito que o que irei narrar provavelmente já aconteceram com vocês.

Bem, ontem acordei sobressaltado por um sonho, não diria pesadelo. Sonhei com um amigo que morreu há uns anos por conta de insuficiência renal. Era mais velho que eu e esteve presente de maneira significativa na minha adolescência, naquele fase em que tudo é ênfase. Desde que morreu, nunca sonhara com ele, por que agora? Não sei dos desígnios das lembranças embaralhadas no sono, tampouco pretendo empreender um trabalho de gênese freudiana e buscar o grau zero dessa memória em particular. 

O que lembro do sonho é que meu amigo falecido falava-me, lá onde residia quando vivo, sentado, um pouco mais magro, cabelo cortado e uma barba de semanas: “eu não morri, o que dizem por aí foi um mal-entendido, eu voltei do hospital, passei um tempo fora e agora estou aqui”. O que isso quer dizer? Não sei, lembro-me de acordar assustado no meio da noite. Olhar através da janela a madrugada fria e chuvosa de agosto e, em seguida, fechá-la, voltar a dormir com a imagem dele renitente em minha memória, agora plena por conta da vigília do sono recém desperto.

Recapitulando o sono, lembro-me que além do meu amigo morto, havia quatro mulheres, duas mães e duas filhas, uma com o nome de Maria. Além delas, meu irmão me acompanhava à casa do meu amigo falecido e, defronte a ela, nós prestávamos atenção a um avião que viajava placidamente em um céu de brigadeiro. O voo era espetacular enquanto as duas meninas subiam correndo as escadarias que dão acesso à casa onde meu amigo morava. Porém, eu fui o único a falar com meu amigo morto. 

A presença dele ali na minha frente foi um momento efusivo para nós dois. Lembro-me que nos abraçamos e ele me falou as palavras que citei há pouco. Depois destas cenas em aparente desconexão – meu irmão, as mulheres, o voo do avião, a conversa com meu amigo morto -, acordei com uma sensação esquisita e ambivalente: feliz por revê-lo tão nitidamente e triste por saber que fora apenas um sonho. 

A consciência nítida que assevera que os que já morreram não voltarão mais é menos atroz do que aquilo que deveríamos ter dito em vida, e por medo ou outra circunstância comezinha, não dissemos para aqueles que já morreram. E esta dimensão é menos devastadora do que a oportunidade de dizermos, em sonho, aos que já morreram, o quanto eles foram imprescindíveis para nossas vidas. Por isso registro aqui antes que minha consciência torne-se finda, ou antes que esqueça do sonho: eu sei que sua morte foi um mal-entendido, você está aqui e agora e posso te dizer: venha quando quiser porque quem ama não estranha os desígnios da consciência, caso contrário, viveríamos no desnecessário drama hamletiano.

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