O dia que me fodi no WhatsApp

27.4.16 Cabotino 1 Comentarios



Domingão em família: macarronada, Coca-Cola e fofoca. A novidade era o grupo do WhatsApp da família. Soube que o grupo era quentíssimo! Minhas tias e primas andavam excedendo-se ao compartilharem imagens, digamos assim: pouco católicas. O que levou a ala protestante da família a estrilar. É a aquela história: parece que a “lei de crente” tenta controlar mais ainda aquilo que com certeza conduziu até ela: o policiamento público da libido.

Enquanto ouvia a fofoca e sorria bonachonamente dos causos familiares através da ferramenta de comunicação mais revolucionária da humanidade até então, o WhatsApp, fui de súbito abordado por uma das minhas primas que estava almoçando conosco: “Ei, porquê tu não entras no grupo da família?”. Como declinar de um convite assim à queima-roupa? Além do mais no símbolo máximo do congraçamento familiar: a mesa de refeições no domingo. Ao sabor da conveniência topei que adicionassem meu contato no grupo. 

Depois do almoço fui dar um rolé pelo Centro. Era dezembro e não havia futebol nos estádios e consequentemente na tevê. Domingo sem futebol é tão melancólico quanto uma quarta-feira de cinzas. As pessoas no Centro farfalhando suas sacolas de compras de fim de ano, outras andando de patins, skate, bicicleta, correndo, tirando selfies... Vale tudo para oxigenar a vida inclusive encarar o Centro, solitariamente, num domingo à tarde, sem um mísero pacote de dados no smartphone – o solitário abandonado à comunicação passiva do smartphone.

Cheguei em casa ao fim da noite. O smartphone descarregado. Coloquei-o para carregar e fui ler um brochura qualquer. Peguei no sono. Domingo é assim mesmo e ainda mais de dezembro: a atenção prevarica; o corpo liquefaz-se na esperança de dias melhores no próximo ano – sabemos que nada vai mudar, entretanto dormimos com a baba brilhante da esperança escorrendo no colchão.

Acordei às 5h e tinha que sair pra trabalhar às 7h. Levantei-me uma hora mais cedo do que o habitual. Tirei o carregador da tomada e liguei o celular enquanto dirigia-me ao banheiro. Foi o danado ligando e a plêiade de mensagens acumulando-se no visor do grupo da família: 753 notificações! Tive a deferência de ler cada uma, aliás, estava ali no grupo pela primeira vez e precisava saber o que geralmente falava-se naquele espaço. Foram mais de 60 áudios; mais de 30 memes; uns 40 vídeos; mais de 50 fotos; umas 35 correntes e, pasmem! 3 “bom dia!” às 5h da manhã! Meu Deus! 

Tomei banho. Passei um café. Joguei a manteiga no pão. Enquanto sorvia delicadamente o café, fui abrindo os áudios, os memes e os vídeos. Nossa! Tinha de tudo! Um teatro de variedades, um circo de freak-show. Entre um cara de cueca e um vídeo satirizando Lula e Dilma sobre o caso da Petrobras, pude constatar uma corrente pedindo ajuda a um senhor desaparecido lá para as bandas do UR-07 Várzea. Entre um Ursinho Puff desejando bom início de semana e um áudio alertando greve geral dos caminhoneiros caso passasse a lei que impunha mais severidade às greves da categoria, vi a foto de um bolo confeitado com os dizeres: “Você não vale nada, mas eu gosto de você”. E para completar o “Bom dia, Caos!” que estava tendo, abri um vídeo onde mostrava uma tentativa frustrada de assalto a uma agência bancária, um dos clientes era policial a paisano e atirou num dos assaltantes. Um dos clientes filmou a ação: o tiro, o tombo o sangue espargindo na câmera do seu smartphone.

Depois deste último vídeo fechei o app e pensei em sair do grupo da família. Mas daí pensei: seu eu sair assim de chofre certamente falarão que eu sou “metido a besta... chato... ateu da aldeia... maconheiro... o doido...” Pois é, apesar dos revolucionários meios de comunicação a família continua sendo a célula social por excelência da coesão, coerção e achincalhe dos seus consanguíneos. As fronteiras entre o público e o privado são borradas no convívio familiar mesmo na porra de um aplicativo. O café esfriou. Joguei-o na pia. Saí para trabalhar com aquele turbilhão de mensagens e imagens na minha cabeça. Meu dia foi foda. E pra acabar de foder era segunda-feira e a resenha da semana estava apenas engatinhando.



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Recife: capital do "serrote"

24.4.16 Cabotino 0 Comentarios



Para quem não é da capital pernambucana e não conhece a sintaxe das ruas, “serrote” significa aquele sujeito que “serra” o que você tem. Que quer dividir tudo o que você saca do bolso ou traz na mochila ou na sacola. É o famoso pidão. É de bom-tom esclarecer logo uma coisa: o “serrote” não é o mendigo pedinte por questões óbvias, o mendigo é mendigo e tudo que ele pede é salvo-conduto para sobreviver. O “serrote” é uma categoria particular – ele padece do equilíbrio entre corpo e alma, isto é, habita nele uma sovinice entre o desejo e a condição financeira. Em uma palavra: o “serrote” é um espírito de porco. 

Só uma cidade que cria uma taxonomia particular para os pedintes espíritos de porco – os “serrotes” – é capaz de refletir esse estrato particular porque sofre e, paradoxalmente, dá as condições necessárias para esse grupo existir e se reproduzir. Eu já andei por vários lugares do Brasil e até do mundo, mas nenhum se compara a Recife no tocante à perpetuação do “serrote”. Vamos lá.

Como não tenho carro, moto, bicicleta, skate nem carrinho de rolimã meu meio de transporte em Recife é sobretudo ônibus, metrô e o famoso “expresso canelinha”: a pé. E como costumo bater muito essa cidade porque minha namorada mora num região antípoda a minha, eu no extremo da Zona Sul; ela quase no extremo da Zona Norte, geralmente fico à mercê do ataque inescrupuloso dos “serrotes”. Some-se a isso, talvez, o fato de pertencer a uma zona amorfa do status sócio-étnico-econômico brasileiro: sou branco, tabagista e trajo roupas sóbrias, portanto, seguramente, os “serrotes” pensam que tenho dinheiro sobrando – tsc, tsc, tsc além de espíritos de porco eles não conseguem fazer uma leitura mínima da minha performance corporal precária. 

Irei agora traçar um pouco do perfil do “serrote” recifense. Estes são geralmente homens jovens: tabagistas, metidos a espertos e que costumam usar óleo de Peroba como renew em suas caras de pau. 

Agora irei narrar algumas situações em que fui alvejado à queima-roupa pelo ataque cínico e desbragado dos “serrotes”. Uma noite de domingo após o clássico entre Sport x Náutico do ano corrente, desci na Av. Recife para esperar o ônibus da linha 132. Acendi um cigarro enquanto o coletivo não vinha. As empresas de ônibus seguramente tem contrato com a Souza Cruz porque é absurda (além de ser sinal de má-educação) a quantidade de guimbas de cigarro que há nas paradas de ônibus – esperar é a maior fissura para o fumante. Súbito brota do nada um “serrote” – eles são criaturas de abiogênese, surgem do nada! – e me pede um cigarro. Detalhe: ele estava fumando. Disse-lhe: “E tu não estás fumando?”. Ele respondeu-me despudoradamente: “Pô, isso aqui é um góia que eu peguei de um cara ali”. Mais cara de madeira do que isso só que vou contar agora no próximo parágrafo.



Estava eu esperando o ônibus da linha 149 à noite, véspera de feriado de Tiradentes, quando decido acender um cigarro. De chofre! Não é pilhéria, ejetou ou caiu de paraquedas do nada um “serrote”. Pediu-me um cigarro. Fitei-o com o olhar mais furibundo que tenho e ia tirando um cigarro para dar-lhe, considerei porque ele chegou acompanhado de um cara que estudou comigo anos atrás e inclusive é meu homônimo. Daí o “serrote” filho-da-puta-mente perguntou-me: “Qual o cigarro que tu fuma, fio?”. Olhei para cara dele e saí-me de lado bufando fumaça e ódio. A vontade que deu era desculhambá-lo. Ceguei de raiva mas não valia a pena estragar minha véspera de feriado.

Finalmente irei narrar três episódios similares que aconteceram comigo em menos de um mês. Minha namorada é testemunha de um deles. É só perguntar a ela. Estava andando pela rua Henrique Dias, no Derby, saboreando meu king size de filtro amarelo que ia pela metade. Quando súbito surge por trás de uma lufada de vento o “serrote” da vez. Era um “correria” banguela que levanta um troco limpando o vidro dos carros blindados até os dentes que trafegam pela Av. Agamenon Magalhães. Ele pediu-me um cigarro. Falei-lhe: “Jogador, esse é o último”. Mas o “serrote” é irredutível: “Então, rola esses tragos pra mim”, açodou-me o pedido. Dei mais duas tragadas de com força e entreguei-lhe o góia. Achando pouco, o “serrote” ainda pediu um gole da minha água mineral que levo sempre no cós da mochila. Olhei-o meio atônito e como não se deve negar água, entreguei-lhe dizendo: “Pode beber tudo, mago”. 



Os outros dois episódios ocorreram na Av. Rosa e Silva e na Estrada da Bomba do Hemetério, respectivamente. Ambas são variações da história que contei no parágrafo anterior. Com a variação de que na Rosa e Silva fui abordado por uma “serrote” e na Bomba por um “serrote” pivete. Depois desses episódios comecei a refletir sobre essa categoria e comecei a indagar também porque sou inúmeras vezes vítima dos “serrotes”. Por ora ficarei por aqui, em breve se a preguiça e ou a ninfa musa das platitudes deixarem, irei trazer mais algumas crônicas sobre a, digamos assim, sociologia do “serrote”.

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Créditos das tirinhas: Google Imagens. 

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