Notas de verão sobre impressões de primavera [São Paulo] II

29.11.14 Cabotino 0 Comentarios



POLÍTICA
No dia 15 de novembro de 2014, um sábado, fui ao MASP [Museu de Artes de São Paulo] conferir à exposição do acervo e conhecer as dependências do lugar cuja origem deu-se graças à iniciativa do jornalista e empresário paraibano, Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados que, na ocasião, gostaria de brindar a cidade com um museu digno de sua envergadura. Para isso, contou com a desestabilização do patrimônio das artes plásticas europeia do pós-Segunda Guerra mundial. Sem contar todo o mecenato privado proveniente das famílias “quatrocentonas” do estado paulista, como bem relata o jornalista Fernando Morais na sua biografia sobre Chateaubriand – “Chatô, o rei do Brasil”.

Era um sábado de sol que incidia sobre os vidros e os mármores da sede do Banco Safra, do Conjunto Nacional e do Banco do Brasil do outro lado da Alta Augusta, minhas retinas doíam com os reflexos espectrais do capital. Era por volta do meio dia quando saí do Hostel e ganhei à Paulista pela Rua Augusta. Fiquei estarrecido com o trânsito parado na avenida em direção à Consolação – não é algo comum. Instantes depois, descobri o motivo da retenção: um protesto a favor do impeachment da presidente democraticamente reeleita, Dilma Rousseff. Além desta pauta, havia também um “brado retumbante” no coração do centro econômico brasileiro – “Fora PT!”.

No caminho até o museu, deparei-me com uma quantidade significativa de corpos caucasianos envolvidos com a camisa da seleção brasileira, o escudo da CBF no peito, tanto o primeiro uniforme [amarelo] quanto o segundo [azul]. Outra indumentária que pairava sobre os corpos brancos eram as camisetas com os dizeres: “Fora PT” com a foto da presidente Dilma barrada com duas fitas vermelhas cruzadas sobre a sua fotografia da época de guerrilheira. Sem contar, a bandeira brasileira que fazia as vezes de xale no início daquela tarde cujo sol iluminava, mas não esquentava os corpos na Paulista. Alguns cartazes também chamaram-me a atenção, entre eles, um estandartizado por um provável yonsei cuja a foto era a do economista neoliberal austríaco, F. Hayek.

O ato era alimentado por quatro trios elétricos, de médio porte, que espalhavam além do já referido alarido: “Fora PT!” reiteradas vezes na boca dos arrebanhadores da multidão, estavam paramentados com faixas que diziam: “Fraude”; “Fora Dilma”; “Governo antipatriota, bandido, vai acabar com o Brasil, temos que tirá-lo agora, amanhã será tarde”; “Impeachment, já”; “Foro de São Paulo” etc. Súbito, um dos líderes da manifestação, no trio elétrico que estava rente ao vão livre do Masp, pediu silêncio aos demais trios para que o grupo de samba [todos os músicos eram negros, praticamente os únicos] pudessem passar o som sem uma grande interferência sonora dos outros trios. De chofre, o grupo de samba começou a entoar a canção que, evidentemente, não tinha sido composta por eles. Entre as estrofes da música, poderíamos ouvir isto: “O gigante acordou”; “Chega de mentiras”; “Chega de corrupção”; “Não somos de nenhum partido”; “Chega de Estado, queremos à livre iniciativa” etc.


No vão livre do Masp, sentei-me após contemplar a visão do bairro da Bela Vista. Acendi um cigarro e retirei o bloco de notas para tomar algumas. Neste ínterim, uma senhora aproximou-se e perguntou-me: “Você é jornalista?” a qual respondi laconicamente: “Não”. De repente, vi que um sujeito envolvido em uma bandeira do estado de São Paulo, de calça jeans azul, tênis e a cabeça raspada [skinhead] aproximar-se de mim. Sentou-se ao meu lado enquanto tomava notas sobre ele. Percebi que minhas vestimentas e minha aparência não eram compatíveis com a ocasião – camisa rosa estampada com um desenho de B. Dylan; calça jeans; um agasalho de flanela com estampas xadrez vermelha; barba por fazer; cabelo grande etc., evidentemente, não tinha acabado de sair da Baía dos Porcos na Cuba de 1959, tampouco meu visual coadunava-se com o ambiente naquela tarde da Paulista. Diante disso, resolvi sair à francesa de onde estava, até porque ainda não havia falado o suficiente para detectarem meu sotaque e, por conta disso, não quis dar azo para que isso ocorresse.

Falarei de minha visita ao Masp em outra ocasião, no momento, interessa-me discorrer um pouco mais sobre a política e a economia, resumidamente, no estado de São Paulo. E sua relação com os destinos da nação, principalmente, a histórica guinada à economia liberal dos paulistas e sua supremacia econômica que não converteu-se em hegemonia.

POR UMA HEGEMONIA INCONCLUSA

É patente que capital não faz capital antes de ser capital, a economia cafeicultora paulista não é auto-explicativa, houve uma acumulação primitiva deste capital. De início, vale relembrar a tese da imigração que, além de ser uma proposta de embraquecimento da população brasileira; no geral, e paulistana; no particular, contou também com a forte familiarização [habitus] com o trabalho rotineiro [assalariado] dos povos que imigraram para a região das “terras roxas” [São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná] propicias ao plantio do café, entre eles: alemães, italianos, japoneses, ucranianos etc., houve, acima de tudo, uma recusa à assimilação da mão de obra negra recém saída da escravidão, falo aqui no final do século XIX, pois o medo da insurreição quilombola [Palmares] ainda encontra-se vivo no imaginário brasileiro.

Essa forte imigração de mão de obra socializada com uma divisão do trabalho capitalista, somada ao controle estatal dos preços do café – não nos esqueçamos que São Paulo e Minas Gerais revezavam no poder federal desde a Proclamação da República em 1889 – para a exportação no mercado internacional [o café era uma das mercadorias mais valorizadas no mercado externo].

Talvez esteja aí a gênese da acentuada distância entre as regiões brasileiras que, diga-se de passagem, vem desde a colônia porque o Rio de Janeiro alimentava-se do comércio de escravos e da burocracia federal [era a capital] que, perdulariamente, era um escoadouro das divisas superavitárias dos estados produtores de cana de açúcar, algodão etc., aí leiam-se Bahia, Pernambuco e outros. Estes estados enviavam para a capital boa parte de seus excedentes econômicos em troca de apoio político para suas oligarquias latifundiárias – um problema histórico que mantém a desigualdade regional no Brasil até hoje.

Na virada do século XIX para o XX, São Paulo foi estabelecendo-se, a partir da acumulação primitiva do café, como a ponta de lança do desenvolvimento econômico brasileiro. Agora, contando também com uma forte dominação política na casadinha do “Café com Leite”. Desta feita, a relação fisiológica que as oligarquias rurais do Nordeste estabeleciam com o Rio de Janeiro foi sendo paulatinamente voltada para São Paulo, por conseguinte, para preservarem seus interesses econômicos e políticos com a então “locomotiva” [a metáfora mecânica-industrial] que trazia mais de “vinte vagões” fora dos trilhos. Porém, a proeminência econômica dos paulistas não irá refletir na hegemonia, como veremos.

Para se estabelecer uma hegemonia não é suficiente apenas um domínio econômico, tem que haver também um domínio no imaginário e São Paulo, desde a década de 1920, em especial, a partir da Semana de Artes de 1922, estava começando a estabelecer este imaginário através do “Eldorado Paulista” – uma ilha capitalista repleta de oportunidades, mas cercada por um continente pré-capitalista, o resto do Brasil. O “Eldorado” não completou-se na consciência coletiva nacional por inúmeros motivos [apesar da constante, em menor número, migração e imigração para São Paulo até hoje], entre eles, destacaremos dois grandes motivos: a Revolução de 1930 e subsequentemente a derrota paulista frente às tropas varguistas em 1932 e, segundo, um forte recrudescimento da cultura paulista em seu próprio eixo – São Paulo a partir daí começou a mirar seu próprio regaço, não só na esfera da cultura, como também na economia, na política, nas artes etc. Esse ideal auto-suficiente possui algumas origens.

Após 1932, o centro de gravidade nacional migrou novamente para o Rio de Janeiro com todo o processo modernizador do aparato burocrático brasileiro implementado por Vargas na capital federal, entre eles, por exemplo: o MES [Ministério da Educação e Saúde] que contava com o ministro Gustavo Capanema que conseguiu centralizar sob sua pasta, boa parte da intelligentsia brasileira oriunda de diversos estados da federação. Entre eles: Minas, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Bahia e outros. Desta lavra de intelectuais e escritores, podemos destacar: Drummond, G. Ramos, R. de Queiros, José Lins do Rego, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e outros.

Outro ponto que merece destaque sobre este tema é que São Paulo após 1930, não conseguiu emplacar um corpo burocrático que administrasse os destinos da nação em esfera federal. A sucessão de malfadados políticos paulistas que tentaram alçar voo nacionalmente é extensa, podemos destacar: Jânio Quadros [presidente que tentara implementar uma política executiva através de bilhetinhos no Alvorada]; Adhemar de Barros [famoso pelo seu slogan, “Rouba mas faz”]; Paulo Maluff etc. Parece que São Paulo abriu mão dos destinos federativos não só na política lato sensu, como também na esfera militar [há poucos generais paulistas] e eclesiástica [historicamente há poucos cardeais paulistas nascidos no próprio estado] como aponta o sociólogo pernambucano, Francisco de Oliveira em seu artigo, A questão Regional [1].

Outro fator preponderante para a manutenção da distância regional foi o Golpe Militar de 1964 e seu correspondente “milagre econômico” durante a década de 1970. O “milagre” drenou boa parte dos recursos federativos para obras públicas [em sua maioria na construção civil que arregimenta toda a cadeia produtiva do setor] para a região Sudeste, quase como um represália pela histórica insurreição nordestina que, desta vez, clamava por reforma agrária e por uma maior participação da classe trabalhadora, eminentemente rural, na participação dos lucros e por melhores condições de trabalho, como por exemplo, As Ligas Camponesas.

A economia paulista deu uma acentuada virada para à indústria com forte ênfase urbana, fazendo com que o campo torna-se secundário como podemos constatar na série de documentários da Caravana Farkas [Os retirantes etc]; nos filmes de João Batista de Andrade [O homem que virou suco etc]; Luiz Sérgio Person [São Paulo S/A]; nas peças de G. Guarniere [Eles não usam black tie]; no livro de João Manoel Cardoso [Capitalismo tardio]; nas fotografias de Hans Gunter Flieg [suas fotografias sobre a industrialização em São Paulo] e nos contos de João Antônio [Malagueta, Perús e Bacanaço]. Neste último exemplo, evidencia-se o outro lado da moeda – o lumpemproletariado exilado da utopia “Eldorática” paulista.

Em São Paulo não houve um ética capitalista daquela que Weber se refere na gênese do capitalismo moderno nos países de matrizes protestantes, em especial, os calvinistas. No estado dos Penteados grassou uma burguesia fortemente marcada por um liberalismo avesso à burocracia federal, ou seja, contrário ao Estado nacional cada vez mais consolidado e pungente. A revolução burguesa paulista fora acentuadamente marcada por uma divisão do trabalho voraz. A burguesia fez a revolução, só que não de maneira clássica como no caso francês, tomou as rédeas da economia mas não conseguiu finalizar a hegemonia que se daria com a organização da cultura.

À medida que o Estado brasileiro crescia e tornava-se cada vez mais centralizador, o interesse paulista por esta instituição altamente voraz e poderosa, diminuía. Talvez pela não identificação com um imaginário popular nacional decorrente da própria colcha de retalhos étnicas que é a cidade de São Paulo – local por excelência para a implementação de uma hegemonia nacional em virtude do forte aparato na indústria cultural. Esta incapacidade de emplacar uma visão de Brasil nascida no seio de sua cultura é patente, basta vermos os símbolos que São Paulo tentou “vender” para o Brasil: Mazzaropi como filho dileto do empreendimento da Vera Cruz Filmes, uma tentativa da burguesia paulista para criar uma indústria cinematográfica a partir de pastiches do cinema norte-americano e europeu, evidentemente, o caipira Mazzaropi não decolou para fora do Recreio dos Bandeirantes [São Paulo]. Diferente do imaginário do cangaceiro e da favela carioca que possuem forte apelo comercial e de identificações nacionais até hoje. Para além de Mazaroppi, podemos destacar o “samba paulista” que, excetuado Adorinan Barbosa, não conseguiu alçar outro sambista carismático em escala nacional. Ainda na música, seu filho mais ilustre, Chico Buarque de Holanda fez toda a sua carreira musical, dramatúrgica e romanesca no Rio de Janeiro e em Paris. É do Rio de Janeiro também a maior produtora do imaginário nacional, em termos de indústria cultural, a Rede Globo. Exceção seja feita ao Rap que desde Racionais MC’s vem consolidando um imaginário paulista no Brasil, porém, sua irradiação não é de amplo espectro porque sua música não alcança à indústria cultural brasileira.

Desconfiamos que São Paulo, assim como Nova York [centro econômico norte-americano] consomem e usufruem de culturas que, geralmente, são mais produzidas fora de seus domínios. Porém, os nova-iorquinos tem o MoMA, o Metropolitan e o Gugueheim que fazem frente à qualquer museu do mundo, São Paulo tem uns bons e diria até excelentes museus, mas não possuem um Woody Allen e tampouco um Philip Roth para construírem e venderem um imaginário de sua cidade para o mundo. Por outro lado, faz tempo que São Paulo não emplaca uma cinegrafia de peso e uma literatura do tamanho de sua relevância econômica. Um cinema com forte marca paulista agora está sendo reconhecido em alcance nacional, falo aqui do Cinema Marginal da Boca do Lixo [décadas de 1960-70] talvez essa não legitimação histórica seja proveniente da própria natureza da “marginália ou udigrudi” desta cinegrafia, um cinema “sujo” e “rústico” [Candeias, Tonacci, Sganzerla].

Já em relação à literatura, houve um “sopro” de criatividade nos anos 1990 com a geração de M. Aquino, L. Ruffato, M. Freire e outros, porém, não foi uma geração suficientemente capaz [talvez não fosse o desejo deles mesmo] de impor sua “visão de mundo” ou de cidade para o Brasil, sem contar que a maioria destes escritores não são paulistas.

DE VOLTA AO MASP 

A passeata pró impeachment de Dilma [“Fora PT!] não atingiu às dimensões da Marcha da Família com Deus pela Liberdade organizada pelo então governador Adhemar de Barros em 19 de março de 1964, doze dias antes do Golpe. Curiosamente, Adhemar de Barros pró-militares fora destituído por estes durante o Regime Militar. 

O ensolarado sábado dia 15 de novembro que surpreendeu-me com a intempestuosa onda “patriótica” em verde-amarelo onde encontravam-se uma “fauna” sui generis de representações sociais, ou, ao menos auto proclamadores de tais como por exemplo: maçons, grupos “apartidários”, assinantes da “veja”, grupos refratários à corrupção [tautológico, não?]. Lembravam até aquele Movimento de 2007, na mesma Av. Paulista, o “Cansei” encabeçado pelo presidente da OAB em São Paulo, Luís Flávio Borges D´Urso. Contando também com socialites, apresentadoras [Hebe Camargo], cantoras [Ivete Sangalo] que entoavam um: “Cansei de corrupção”; “Chega desta carga tributária!” como se não fossem eles mesmos os maiores sonegadores de impostos deste país. E ah! Entoavam também medidas profiláticas para conter o “caos aéreo” porque, para eles, aeroporto estava convertendo-se em rodoviária. Ainda bem!

O que deu para perceber, até o momento em que tive “fígado” para suportar tudo aquilo, é que este protesto foi uma “revanche” ao ocorrido no dia anterior na mesma Av. Paulista: um protesto liderado pelo MST, MTST e outras organizações de minorias sociais que lutam, entre outras reivindicações, por moradia na capital paulista. A passeata destes “socialistas morenos” assustou toda a região da Paulista. Estava no metrô na hora da concentração quando fui surpreendido na Estação da Consolação por uma “maré” vermelha com gente morena, de pouca estatura e sem camisa verde amarela com o escudo da CBF no peito, gritando e apitando pelos túneis do metrô, seguidos de perto, é claro, pelos seguranças da empresa terceirizada. Em São Paulo, faz-se necessário vigiar de perto tudo aquilo que esteja relacionado ao Estado e ao dever que este deve ter perante à população que alimenta este “mostro frio” como nos diz Nietzsche, mas mais frio do que ele só o laissez-faire da Av. Paulista.

Após o skin head ter sentado ao meu lado, saí da Paulista e tomei um metrô no Trianon do Masp com destino ao Brás, estava cansado daquele Brasil mais “branco” do que o cartaz com a foto de F. Hayek.

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por Renato K. Silva - Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN




[1] Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v7n18/v7n18a03.pdf Acesso em: 26 de nov. 2014.
Crédito da imagem disponível em: http://www.blogdajoice.com/intervencao-militar-racha-passeata-anti-dilma-na-paulista/ Acesso em: 26 de nov. 2014.

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Lionel

28.11.14 Cabotino 0 Comentarios



A segunda Lei da Termodinâmica: entropia.
Um curto circuito que explode a partir de uma força centrípeda
que torna-se centrífuga.
La pelota grudada nos pés como a sanfona
rente ao peito de um Piazolla.
O arranque
O corpo todo constrito.
Os jardins e os labirintos que bifurcam-se,
trifurcam-se na elegância de um tigre e
na força de um touro. 

Lá vem ele para cima, uma flecha sem zênite, puro movimento.
Não há veleidade, a palavra escrita com os pés é precisa, certeira como um canivete portenho.
La pelota parada, a meta, o olhar, a respiração, explode o fole como um tango ao revés na meta adversária.

Sua projeção é jogo de amarelinha –
Para onde vai?
Quantos passos mais?
Questionam-se os adversários.
Porém só sua ideia, que ginga, é capaz de responder pois seu corpo nada diz, apenas implode e explode como um pi antropológico, tal qual um fio desencapado quicando na grama, frente às evidências de um mundo massificado por mercadorias de déjà vus.

Ele é o sorriso que o trabalho embotou.
É a alegria de uma vida que nos sonega todas as nossas potencialidades.
O sonho de onze entre dez meninos.
É a esperança de que a vida seja mais lúdica, mesmo com as contas por vencer.
É o cosmopolitismo sobre duas pernas, é o anti-chauvinismo de chuteiras.
É um mundo ecumênico que chuta com as duas pernas.
É o sumo sacerdote de uma religião cujos acólitos é a classe trabalhadora.
Gol!
Obrigado, Lionel.


Informações sobre a imagem disponível em: http://jornaldehoje.com.br/sombra-de-messi-em-foto-de-jornalista-argentina-faz-sucesso-nas-redes-sociais/ Acesso em: 28 de nov. 2014.

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O pão nosso de cada dia

27.11.14 Castanha 0 Comentarios


Eu não podia comer sozinho, os anos de vida eram tão poucos que ainda não tinham me dado habilidade no manuseio dos talheres. Eu era uma criança, criancinha. Minha avó me levava colheradas à boca, sempre nas horas sagradas de cada refeição. No final, lá pela ultima ou penúltima porção eu disse “não quero mais” ao que minha avó respondeu “coma meu netinho, coma, pois tem muita criança no mundo morrendo de fome, querendo comer sem nada ter enquanto você tem e está querendo jogar no lixo; jogar comida no lixo é um pecado” e então eu comia. Isso aconteceu duas ou três vezes até que não pensei mais em desperdiçar comida. Minha avó não precisou gritar, nem brigar comigo para me convencer. Além do mais, ela era incapaz de ser estúpida com alguém.
Números divulgados pela ONU aproximadamente um ano atrás, revelam que 2 bilhões de seres humanos no mundo passam fome todos os dias, isso significa que agora, enquanto escrevo essa crônica, 2 em cada 7 seres humanos do planeta estão passando fome.
Mais do que por carência técnica ou por problemas naturais, a fome é causada por carência moral, principalmente dos ricos, que nos faz esquecer o outro (o faminto), nosso semelhante. Números exaustivamente divulgados mostram que a produção mundial de alimentos já é suficiente para sanar a fome de todos, mas o capitalismo se apossou do “pão do nosso de cada dia”; para comer é preciso pagar. Quem não paga não come e sente o oco trazido pela fome, fome daquilo que é básico para não passarmos pela morte do corpo e da dignidade.
Do topo do seu analfabetismo minha vó dava lições de humanidade, usando para isso somente poucas palavras e não deixando sobrar no prato as últimas colheradas.


Castanha 27 de novembro de 2014    

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TIÇÃO - (OUTUBRO DE 1980)

26.11.14 Foi Hoje! 0 Comentarios




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Translúcido

26.11.14 Unknown 0 Comentarios



A Dias Lopes


Sobreviventes versos:
agora inquietantes,
imaturos como antes.

Verdes, tesos, azulados:
escorrem por entre os dedos,
quedam-se no chão estilhaçados.

São pedaços de vida, cacos:
tintos de cor fria,
inertes como relógio parado.

Mas são ditos, lidos, gritos, sussurrados:
quando se está sozinho
é que não se deve permanecer calado.

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Notas de verão sobre impressões de primavera [São Paulo] I

22.11.14 Cabotino 1 Comentarios


por Renato K. Silva*

Ano passado, entre os meses de setembro e outubro, fiz minha primeira viagem internacional. Visitei a cidade de Santiago, capital do Chile. Na ocasião, fui arrebatado pela primavera abaixo dos trópicos, pois a cidade chilena, fica abaixo do trópico de Capricórnio e, por conseguinte, o frio da região temperada assim como todos os matizes oriundos de uma outra cultura, eminentemente andina, foram de grande relevância para as “Notas[1]” que teci após a viagem. Este ano, conheci São Paulo (capital) que, em termos de temperatura, assemelha-se muito com a cidade de Roberto Bolaño, excetuando que a capital paulista não fica nos Andes e por conta disso, não atinja temperaturas tão diminutas. O trópico de Capricórnio corta São Paulo e como nas linhas de Herry Miller – hiperbólicas – a cidade apresenta-se, para o forasteiro, toda a sua exuberante gradiloquência. Como ponto de partida, seguirei pelo “combustível” que move qualquer sociedade, a gastronomia e seus correlatos hábitos – o que se come, como se come, as preferências e os costumes do beber e do comer. Além desta seção sumária sobre a cultura da mesa na Pauliceia, vamos ter outras que versarão sobre política, bairros, museus etc,. Dito isto, vamos às “Notas”.
***
GASTRONOMIA

Há uma metáfora que grassa sobre a consciência coletiva brasileira, ela diz que São Paulo é a locomotiva nacional. Seguindo esta metáfora mecânico-industrial digo-vos que o combustível desta locomotiva é a proteína animal. Acredito que São Paulo seja, das regiões que conheci até agora no Brasil, o lugar que se come melhor, seguido por Belém e Salvador. 

No meu primeiro dia na capital paulista, cheguei na madrugada do domingo para a segunda [16/11/2014] esfomeado. O táxi do aeroporto de Congonhas para a região da Paulista [Bairro da Bela Vista] custou-me R$ 70,00 e olhem que ainda rachei a corrida com mais três passageiros. Um funcionário de uma empresa de transporte de passageiros no aeroporto disse-me, com forte sotaque de minha região, o Nordeste: “Aqui é São Paulo, é tudo assim aqui...” Fazendo referência aos preços elevados. Tomei um táxi com outro taxista que fez um desconto de dez reais pela corrida. A viagem durou uns quinze minutos até à Bela Vista, no decurso, o motorista com um sotaque em que imbricavam-se a sintaxe nordestina com a paulista, percebi que os subalternos da vida noturna são eminentemente nordestinos, assim como da vida diurna. Disse-me que estava no ramo há mais de 20 anos etc. etc. etc. 

Cheguei ao Hostel por volta de uma hora da manhã, ajustei o relógio ao horário brasileiro de verão, ou seja, uma hora a mais do meu fuso horário. Perguntei ao funcionário do Hostel onde poderia comer àquela altura. Disse-me que na Rua Augusta havia uma lanchonete aberta 24h por dia. Deixei minhas malas e segui para o caminho indicado. Pelo transcurso, vi alguns skin heads na rua Peixoto Gomide e uma boemia de fim de festa – mendigos vomitando, traficantes vendendo cocaína, prostitutas “mangueando” alguma coisa – típica de uma madrugada de domingo para segunda, mesmo na maior cidade do hemisfério sul.

Na lanchonete que chama-se: BH Lanches cujo dono é o mesmo da lanchonete do Estadão que fica no final da Rua Consolação, percebi que os funcionários são chamados pelos nomes de seus estados natais – Bahia, Sergipe etc. – antes de entrar no estabelecimento. Fiz uma visita à Av. Paulista pela Augusta até o Trianon do Masp às 2h da manhã. Pelo caminho, viciados em crack, seguranças das instituições bancárias, um ciclista todo equipado e muito frio.

Na BH Lanches pedi um sanduíche de calabresa com vinagrete que custou quase R$ 8,00. No recinto, detectei uma dupla de gringos falando em italiano. E súbito, apareceu um mendigo para tomar um pingado [leite com café] e começou a entabular uma conversa em inglês com um dos italianos que estava tomando cerveja Therezópolis [R$ 15,00 a unidade] enquanto o outro saiu para fumar. O sanduíche chegou e qual não foi a minha surpresa com o primor da iguaria. Um pão francês assado na chapa com generosas fatias de calabresa frita também na chapa e uma vinagrete deliciosa. Para acompanhar, deram-me duas bisnagas de ketchup e mostarda – os paulistanos não apreciam maionese, ao menos nas lanchonetes, e não há sachês – a opulência dá o ritmo da vida, mesmo na madrugada de um domingo para segunda.

VIRADO À PAULISTA

À tarde, após minha ida à USP pela manhã depois de tomar o café da manhã do Hostel que, diga-se de passagem, é a metonímia de uma cultura movida à proteína animal – pão de caixa, café, leite, geleia, presunto, queijo, bolacha, granola e biscoitos. Ao saí da USP tomei um ônibus [R$ 3,00] para a região do Centro, desejava conhecer à Catedral da Sé. Antes do coletivo atingir à região, desci na Praça Roosevelt e fui andando. Previamente ao meu encontro com a Catedral, parei para almoçar em um restaurante porque já passava das 15h e estava esfomeado. No estabelecimento, pedi um prato que chamou-me a atenção, Virado à paulista. Enquanto esperava a vinda da refeição, fiquei observando os transeuntes não tão céleres quanto os do Centro do Recife, a vida mental na Paulicéia é menos nervosa do que a da minha cidade, talvez seja ausência do mormaço e do gás metano oriundo dos manguezais recifenses. Percebi também as inúmeras bancas de revistas e sebos na região do Centro – os paulistas consomem muito o mercado editorial. 

O prato veio e digo-vos, apesar de minha fama de apetite pantagruélico, que ali comiam duas pessoas e estariam satisfeitíssimas. Eis os ingredientes oriundos em uma travessa de alumínio: arroz, feijão mulatinho misturado com pequenas fatias de ovo frito, couve flor refolgada, uma banana empanada, uma fatia de bisteca suína, calabresa, bacon e um ovo frito com gema mole sobre a “montanha” e, sim, uma porção de salada com alface, tomate e cebola.  O garçom disse-me: “isso é um prato bonito!”. 

Comi-o com satisfação; no início e com sofreguidão; ao cabo, acho que com o misto de orgulho e crença desde a tenra idade que não se pode desperdiçar comida, talvez fruto de uma consciência formada no período pré-plano Real. Após a opulenta refeição, ganhei um cafezinho cortesia da casa – um café extremamente forte. Paguei a refeição [R$ 16,00 que terminou ficando por 15 porque o caixa não tinha troco para vinte] achei o preço até razoável. Depois pensei: “é o Centro e todo o Centro é ‘marginal’”.

SANDÚICHE DE PERNIL 

Falei acima que a força que movimenta São Paulo e os paulistanos é a proteína animal, talvez pelo excessivo frio e o ritmo frenético da cidade, o excessivo consumo proteico seja em escala industrial. Há um ritmo quase fordista na produção do sanduíche de pernil tanto na BH Lanches quanto na Lanchonete Estadão. Comi nesta última um sanduíche [R$ 12,00] de pernil às 2h da manhã e o balcão de atendimento não parava um segundo. Várias pessoas esgueiravam-se nos balcões de mármores que margeam às paredes do estabelecimento, praticamente não há cadeiras no Estadão, no BH ainda têm. As pessoas comem como se estivessem em uma linha de montagem. Atentei também que o paulistano consome muita pimenta in natura [servida em pequenas tigelas que ficam dispostas no balcão], seja na coxinha [iguaria muito apreciada pela população], nos sanduíches, nas refeições etc.

O sanduíche de pernil é sanguinolento, é carne por carne, não há um tratamento no sentido de especiarias e temperos. Ele é servido em um pão francês fresco cuja superfície é transbordada pela megalomaníaca quantidade de carne dentro do pão. É praticamente impossível não se lambuzar com a iguaria. Se a oferta de proteína é em escala industrial, o consumo não seria diferente.

CHURRASCO GREGO

Não pensem que o consumo excessivo de proteína animal que dá as condições materiais para a “revolução permanente” na economia paulista seja privilégio dos segmentos abastados da população da zona sul. Visitei a região do Brás e encarei o famigerado sanduíche grego [R$ 3,00]: um pãozinho francês recheado com uma carne de procedência no mínimo duvidosa, mas daí, fecha-se os olhos e mete o dente, além disso, as bactérias são termo sensíveis e o sanduba é servido quente. Só não resolvi encarar os condimentos que encontravam-se expostos ao sol o dia inteiro. Para não entalar-se com a iguaria, o refresco era servido à vontade a partir daquelas máquinas que convertem o sabor dos refrescos a partir de suas cores. O sanduíche é uma delícia e compartilhei-o com convivas de toda sorte, mulheres com grandes sacolas de compras, bolivianos [falarei deles com mais detalhes em outro texto] que labutam na indústria têxtil das adjacências, crianças coloridas pelo sol e pelas longas caminhadas sob a canícula do dia ao acompanhar suas mães às compras. 

A região do Brás foi a que encontrei as coisas mais em conta na capital paulista. Para se ter uma ideia da acessibilidade do lugar, uma garrafa de água mineral de 500ml que na Rua 25 de março [maior centro de consumo popular do país] custa R$ 2,00, enquanto no Brás a mesma custa R$ 1,00.

OS SUCOS

Falei outrora que, até agora, São Paulo é o lugar do Brasil em que visitei onde se come melhor e os sucos são uma prova cabal disso. Em Recife, é raro um estabelecimento alimentício que venda suco direto da fruta, excetuando os sucos de laranja, os demais são todos provenientes da polpas de frutas industrializadas. Na Pauliceia Desvairada, fazendo alusão a como Mário de Andrade chamava sua cidade, há um misto de seções de supermercado com quitandas nas cozinhas dos bares e lanchonetes. Em todos que visitei, encontrei um engradado de inox depependurado pelo teto onde encontramos toda sorte de frutas, em um amálgama de design indústrial com a profussão colorida das frutas tropicais. Os sucos não levam açúcar. Tomei vários sucos de laranja, abacaxi com hortelã etc., um reles suco de laranja em São Paulo leva a “gordura” típica da cidade, são quase dez laranjas que o garçom despeja em expremedores industriais de aço inox e quase podemos sentir o ácido cítrico explodir de vigor em sua forma recém modificada. Algumas pedras de gelo e pronto! Você bebe com a satisfação de que podemos usufruir da fruticultura independente da Coca-Cola, do Mac Donald’s e das polpas industrializadas.

O FILÉ À PARMEGIANA  

Em um dos meus últimos dias na capital paulista, decidi encarar um filé à parmegiana que há algum tempo vinha me “namorando” lá na BH Lanches. Pedi um e pasmen quando surgiu o prato. Um longo prato de ágata onde tinha: uma porção geneorsa de arroz branco temperado com especiarias [talvez salsa, coentro e outras coisas] muito bem preparado, uma porção de batata frita [sequinhas] generosa e em outro recipiente de alumínio, duas gigantescas fatias de filé “nadando em queijo” muçarela. Pensei “vamos lá, o desafio é grande mas com a graça de Deus vamos vencê-lo”. Comi-o com satisfação e sofreguidão, eis aí a tônica da culinária paulista. Creio que o excesso da cozinha paulista seja em virtude de encarar a magnitude da cidade, o frio tanto externo quanto interno das pessoas etecetera e tal. O prato custou-me R$ 21,00 com a sensação de missão cumprida. Ao cabo, alguns grãos de arroz no prato foi o saudo da comilança. 

PF - Prato feito

Bati um prato feito no Centro, defronte à Catedral da Sé em um sábado à noite. Na ocasião, estava acontecendo o jogo entre Botafogo e Fluminense pela 31ª rodada do Campeonato Brasileiro da Série A. O Botafogo estava perdendo o jogo por um a zero e a resenha futebolística no bar/lanchonete estava candente. Apostas aconteciam em meio a previsão de rebaixamento do Botafogo e do Palmeiras. Pedi o cardápio a um dos garçons e o mesmo disse-me “não tem, o que você deseja?” respondi-o “veja-me um PF de frango assado”. Sentei-me esperando o prato e, de chofre, surgiu outro garçom de um ambiente subterrâneo com um prato fumegante onde podíamos ver em uma espécie de “yin-yang” bem brasileiro, arroz e feijão separados em um prato de louça mais fundo do que minhas olheiras que, aquela altura na capital paulista, estavam mais fundas do que dois pratos de sopa. Em seguida, surgiu um prato de salada: tomate, cebola e muita alface e, subsequentemente, outro prato com uma porção generosa de frango assado na chapa. Para acompanhar, pimenta, farinha, azeite, vinagre e sal. Comi com satisfação e no final, a sensação de praxe, sofreguidão. Acredito que a mesa farta seja diretamente proporcional a ansiedade da cidade. Custo total do PF, R$ 8,00 com direito a um cafezinho cortesia da matriz – “perto do Centro, longe da cruz”.  

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pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN




[1] Disponível em: http://foihoje.blogspot.com.br/2013/11/notas-de-verao-sobre-impressoes-de.html Acesso em 20 de nov. 2014. Além desta “Nota” existem mais três que podem ser encontradas no mesmo endereço eletrônico.
Fonte das imagens: Google Imagens. 

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DOIS UNIDOS/ESTRADA DOS REMÉDIOS

20.11.14 Cabotino 1 Comentarios



Era início de uma noite de sábado e a cidade quedava-se serenada àquela altura nas imediações da Benfica, sob o mormaço do calor incrustado no asfalto e nos muros dos edifícios, a cidade acordava para noite que, de uma só mão, trocava-se de dono: sai os pedreiros e seus ajudantes, sai as empregadas domésticas etc., e entram os garçons, vigilantes, prostitutas etc. O jogo do Santa Cruz na Arena Pernambuco dava a tônica da resenha dos taxistas e dos torcedores com seus celulares - os smartphones enterraram os radinhos de pilha.

As pessoas saíam do trabalho e do supermercado. Cigarros na boca. Afã nos gestos. Sacolas de compras nas mãos. A luz de mercúrio projetava-se, junto com um leitoso filete de luz oriunda da acanhada lua que despontava entre os prédios, sobre os corpos ávidos pelo sábado à noite – obrigações afora e ócio adentro.

O cigarro encontrava-se em seus últimos momentos. As últimas tragadas sofridas no king size de filtro amarelo, por conta da iminência do ônibus que assinalava-se depois do semáforo do cruzamento entre a Rua Benfica e a Real da Torre.

Seu desejo? Ir o mais rápido possível ao bairro da Tamarineira, para isso, estava disposto a pegar o primeiro ônibus que rumasse para aquelas bandas. Eis que surge o coletivo cujo itinerário dá título a esta narrativa. Não titubeou. Subiu no veículo que, além do motorista e do cobrador, tinha três passageiros, entre eles, uma ex-affaire que fazia quase dois anos que não a via.

Ela estava sentada no lado esquerdo do ônibus. Uma expressão de cansaço marcava seu semblante que de chofre converteu-se em surpresa ao vê-lo rodar a catraca. E agora? Passar direto ou sentar ao lado dela? Eis a dúvida que pontuava o instante. Uma cidade lança-nos em um milhão de dilemas o tempo inteiro: essa ou aquela rua? Atravessar na faixa ou não? Aceitar ou não o panfleto oferecido? Essa ou aquela cerveja? Fazer pouco caso ou reavivar sentimentos há tempos embotados? Optou por reacender velhas chagas – se há perigo por que não lançar-se? Até porque sempre há uma saída de emergência ou uma alavanca para acioná-la e, quando não houver mais recursos de fuga, eis aí o ponto que deveremos alcançar.

Sentou ao lado dela e perguntou segurando suas mãos que encontravam-se entrelaçadas ao regaço, traduzindo uma certa tensão. “Tudo bem?”, lhe perguntou. “Sim, e contigo?”, indagou ela. “Comigo vai tudo azul na América do Sul”. “Como vai o Felipe, já está com o quê... Dois anos?”. “Não, faz dois anos em março”. “Ele é pisciano?”. “Não, pior, é ariano. É do final de março e os arianos são bastante irredutíveis e orgulhosos”. “Acho que ele puxou a mãe”. Ela sorriu em virtude da inside joke que não interessa ao leitor tampouco ao narrador. O sorriso com a piada desarmou um certo buquê de tensão que envolvia o coletivo àquela altura da Av. José Bonifácio. A conversa transcorreu pelas vias da praxes dos ditames sociais – profissão, casamento, casa própria, projetos futuros etc. – mas, há uma coisa que o bom-tom social não eclipsa: corpos que se conhecem transbordam o ódio, o acaso, o sábado, os destinos individuais e, acima de tudo, quando encontram-se dividindo cadeiras em um ônibus.

Ela saltou depois do Carrefour levando consigo a promessa de um sábado à noite que sempre pode descortinar-se a qualquer momento em que decidimos correr o risco de não fazer pouco caso do outrora. Olhou-a distanciando-se aos poucos pela janela do ônibus. Seu andar, o familiar trote de felina empertigada – a maternidade lhe deu um elã de mulher e lhe acentuou as curvas nos quadris. Um verso de Álvaro de Campos – heterônimo predileto dos dois – atravessou a consciência de ambos: “Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira”.

Após o próximo semáforo. Ele descobriu que apanhou o ônibus errado. O veículo não iria para a Tamarineira. Resolveu descer para pegar o outro coletivo. Mesmo não servindo o Dois Unidos/Estrada dos Remédios, há sempre outras estradas a palmilhar e outros unidos a construir. E seguiu em frente sem a consciência do pretensioso arremate desta narrativa que buscou uma moral da história para uma história sem moral, sem coerência e sem destino, mesmo que o fim seja a Tamarineira.

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Crédito da fotografia: Saulo Diniz. Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/saulobiu/9453217596/in/set-72157637787918053
Acesso em: 20 de nov. 2014

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Sob fôlego

4.11.14 Unknown 0 Comentarios


Dessa vez eu não vou conter o meu ímpeto de escrever sob fôlego, uma crônica de fôlego curto. Essa coisa ainda me mata, o cigarro. De certo não é o ofício que me traz essa prosa asmática. Mas como quem pensa demais não casa, faço assim: primeiro coloco minha bunda na cadeira e escrevo, penso nas vírgulas só depois da frase pronta. Tenho poucos revisores para essas horas, poucos e impecáveis, diga-se de passagem; talvez o Pássaro ande ocupado demais com essa coisa de querer ser “Pacheco”, e não esteja percebendo que eu já dei tchau ao “Plunct Plact Zum” faz é tempo.  

Cavuco, cavuco e cavuco, e não consigo achar coerência nesse jogo de gato e rato, mas daí, quando quero findar o processo, surgem-me as coisas das quais eu não consigo me livrar: Canetas, lápis, cacos de telha, pedaço de gente morta, pincéis, dedos, dedos e mais dedos. Quero parar de pensar pelo dedo! Quero querer que me guiem a parcimônia e a sobriedade das mãos, mas me vejo de novo envolto em jogos e peripécias que adiam a chegada daquilo que nem mesmo chegou chegando direito.   

Pronto, dei uma pausa. Passaram-se cinco minutos de relógio de ponteiro largo até esse momento. Coloquei o cigarro no cinzeiro, cinzeiro que é a expressão física do que estou querendo lhes transmitir. Reli tudo o que havia escrito até aqui, sem pausa, e é só quando começo a desenhar o desfecho dessa coisa estranha que percebo, do nada, começarem a brotar pés nos meus dedos indicadores. Diante dessa lombra pesada, recuei 50 centavos. Além do mais, amanhã é dia de tromba, e eu não posso me deixar levar por questões oceânicas, que não possuo prancha para surfar. O que a mim não compete agora é fingir que, na verdade, toda essa epístola asmática foi feita só para dizer que entre os arrudeios há sempre o cruzamento de pontos equidistantes, que jamais se viram na vida. Procurem aí, por favor, os tais pontos, se quiserem, que eu já estou com preguiça de ler tudo isso de novo. Avisei no começo, estou sob fôlego.


Créditos da imagem: Andreas Franke: The Sinking World. 
Disponível em: http://www.thedesignstorytellers.com/andreas-franke-the-sinking-world/

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