A antropofagia da Mulher do Fim do Mundo

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por Renato K. Silva - doutorando em Ciências Sociais pela UFRN.


Elza Soares, 79 anos, 60 de carreira, lançou em 2015 seu primeiro trabalho exclusivamente com músicas inéditas, A Mulher do Fim do Mundo (Circus/Natura Musical) em parceria com um grupo de músicos/produtores paulistanos que vem sacolejando o pulverizado cenário musical brasileiro nos últimos anos. O grupo paulistano que fez a dobradinha com Elza no disco é composto por: Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Marcelo Cabral, Guilherme Kastrup (assinou a concepção, direção e produção), Celso Sim, Thiago França, Douglas Germano e Clima. Eles são responsáveis por significativos trabalhos não só na música como também nas artes plásticas e no audiovisual. São da lavra deles os trabalhos de Metá, Metá, Passo Torto, Ná Ozzetti, Juçara Maçal entre outros.

A Mulher do Fim do Mundo começa com um poema de Oswald de Andrade, Coração do mar que fora musicado pelo professor e músico José Miguel Wisnik. Este último também foi responsável pela produção do disco de Elza Soares, Do cóccix até o pescoço (Maianga, 2002). Não é à toa que o poema de Oswald de Andrade é o abre-alas do disco. Oswald fora o mentor de uma das teses centrais da cultura brasileira: Antropofagia (1928) que, em linhas gerais, consiste em utilizar uma linguagem telúrica, “não-catequizada”, porém não de maneira gratuitamente ufanista, pois segundo a tese, é necessário alimentar-se do que vem de fora e depois regurgitar por cima dos elementos nacionais.

Está aí a base que compõe o novo disco de Elza Soares: mistura os elementos cosmopolitas – rock, hip-hop, eletrônico –, com os ritmos nacionais – samba, marchinha, carnaval – de maneira audaciosa, ou como num dos versos de Oswald: “É um navio humano quente, negreiro do mangue”. A voz de Elza rasga o poema como uma embarcação sem velas atravessando o mangue da música brasileira no que ela tem de mais pungente: o encontro do universal com o local, como foi o caso da Bossa Nova, do Tropicalismo e do Manguebeat. Provando que na casa do “purismo” estético, a arte brasileira produziu irrelevância.

A voz de Elza é suja como se estive saindo de um cemitério de sucatas, esganiçada como placas metálicas. As canções são sujas tanto nos arranjos quanto na fatura das letras. Há no disco uma sobreposição de camadas de detritos (objetos) sonoros elevando-se aos píncaros do progresso terceiro-mundista, a modernização conservadora.

Ou para lembrarmos de uma frase clássica do filme O bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), que inclusive é o tema da terceira faixa do disco: “O terceiro mundo vai explodir; quem tiver de sapato não sobra, não pode sobrar!” e este disco vai sobrar porque está descalço. Descalço dos tradicionais “calçados” da MPB: reverência asséptica ao samba “intocável”; temas musicais canonizados geralmente nas odes às cabrochas e aos cartões-postais brasileiros; as dores de cotovelos do pop e dos sertanejos ou o niilismo embotado de hedonismo do neo-indie da nova geração.

Em A Mulher do Fim do Mundo há um instantâneo de um Brasil nada ufanista. O desenho musical e as letras são um diagnóstico das metrópoles brasileiras, em especial São Paulo, na vivência fragmentada e dilacerada da consciência num dia-a-dia acachapante na grande cidade indiferente.

Nesta toada, o disco de Elza Soares fez-me lembrar do romance Eles eram muitos cavalos (Luiz Ruffato, 2001), onde a experiência da vida metropolitana é esgarçada ao limite da sobrevivência diária em um caleidoscópio de formas narrativas. A São Paulo de Eles eram muitos cavalos é a mesma de Zero (Ignácio de Loyola Brandão, 1975). As três obras conseguem captar o ethos da vida na maior cidade brasileira porque, entre outros elementos, não se rogam em fundir linguagens numa empreitada entre o texto/letras (formas internas) e a circunstância (motivos externos às obras): as experiências dos esquecidos tornaram-se verbos/músicas encarnadas em crônicas de uma sociedade altamente violenta – a brasileira.

Neste sentido, A Mulher do Fim do Mundo ganha força ao dialogar com a “rua” sem o costumeiro paternalismo ou didatismo das expressões artísticas que visam desbravar o Brasil “profundo” das periferias, sejam elas geográficas ou econômicas.

Basta observamos algumas faixas do disco para perceber a pluralidade de perspectivas que impregnam a feitura do trabalho. Logo de início há a arbitrariedade na formação da sociedade brasileira em Coração do mar.

Na canção seguinte que dá título ao disco há a dissolução na experiência festiva como catarse de uma vida (feminina) alquebrada; sem dúvida é faixa mais autobiográfica que Elza canta, num mix de samba elétrico – guitarra com tamborins: “[...] Na chuva de confetes deixo a minha dor | Na avenida deixei lá | A pele preta e a minha paz | Na avenida deixei lá | A minha farra minha opinião | A minha casa minha solidão”.

Em Maria da Vila Matilde, terceira canção do disco, uma espécie de samba-de-breque com pintadas de punk-rock, há o tema da violência contra a mulher no regaço do lar. Também há elementos autobiográficos nesta música. Não seria gratuito se [associássemos] o adjetivo “mané”, inserido pela própria Elza no fim da canção, com o jogador Mané Garrincha, ex-marido da cantora: “[…] Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim | Mão, cheia de dedo | Dedo, cheio de unha suja | E pra cima de mim? Pra cima de Moi? Jamé, mané!”.

Na quarta faixa podemos ouvir a canção que é o ponto de equilíbrio de todo o trabalho. A música Luz vermelha consegue ser o zênite do trabalho pois ela dá coerência temática e sonora ao disco. A música narra a distopia na periferia do capitalismo, o Brasil, a partir da alegoria criada por Sganzerla e retomada por Kiko Dinucci e Clima: um faroeste do terceiro mundo. Isso tudo num sambinha sujo com rompantes intempestivos de guitarra como uma balada tropical/marginal da Boca do Lixo: “[...] Bem que o anão me contou que o mundo vai terminar num poço cheio de merda [...] Tá na quebrada quebrou | e o mundo todo afundou no dia da pá virada | Do meio-dia no meio do tiroteio | Me deu receio do feio que veio lá | De ficar velho no meio do mundo inteiro | Me deu receio da bomba que vou soltar”.

Já em Pra fuder, ouvimos uma marchinha temperada de metais cadenciados sensualmente até explodir no gozo-masoquista do estribilho na dupla acepção da palavra, freneticamente, repetida: “pra fuder (5x)”. Uma trepada furtiva-intempestiva, uma “rapidinha” com gosto de culpa e apuro de tempo: “Unhas cravadas em transe latejo | Roupas jogadas no chão | Pernas abertas, te prendo num beijo | Sufoco a sofreguidão”.

Em Benedita acompanhamos a trajetória de um travesti negro do candomblé usuário de crack; inúmeras minorias em um único corpo. Porém Benedita(o) não esmorece frente às circunstâncias que o(a) querem esmagar o tempo todo. Numa parceria vocal com Celso Sim, ouvimos em Benedita um rap de início cadenciado e depois explosivo justamente quando a personagem ganha às ruas para trazer seu sustento: “[...] Ele que surge naquela esquina | É bem mais que uma menina | Benedita é sua alcunha | E da muda não tem testemunha | Ela leva o cartucho na teta | Ela abre a navalha na boca | Ela tem uma dupla caceta”.

Já em Firmeza!? há a sintaxe, “não catequizada”, das ruas de São Paulo num diálogo a partir de um encontro entre dois amigos. Firmeza!? me fez lembrar a canção de Paulinho da Viola, Sinal fechado (1970). Ambas tematizam a urgência do dia a dia na urbe que cada vez mais comprime tempo-espaço e, paradoxalmente, deixa tudo mais distante no tempo e no espaço. Só que Sinal fechado tinha o ar asfixiante do AI-5; já em Firmeza!?,um rap na dobradinha dos vocais de Elza com Rodrigo Campos num dueto-diálogo, há a malemolência do “sotaque” das ruas no “sucesso” mútuo oriundo do lulismo? Talvez: “[...] Bixo mais acontece que a gente tá tão perto um do outro daí | Pó, eu não te vejo por onde é que você anda? | Tô de bobe, que eu não te vejo nunca mermão qual é? | Essa correria toda | É a life meu, irmão é a life a life corre, corre | [...] Mas tô feliz com teu sucesso | A e eu com o seu”.

Finalmente, A Mulher do Fim do Mundo traça um paralelo com o movimento da Lira Paulistana que sacudiu o campo artístico da cidade de São Paulo durante os anos 1980. A Lira Paulistana, sobretudo nos trabalhos de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, buscava fazer um diálogo entre as vanguardas artísticas – música, design, artes plásticas, vídeo, performance – com os elementos da rua – a linguagem, a moda, os hábitos, o consumo.

Desta forma, A Mulher do Fim do Mundo mistura por exemplo a sofisticada sintaxe do Racionais MC's com a arquitetura arrojada de um Vilanova Artigas; o samba proletário de um Adoniran Barbosa com o cartaz arrojado da estética concretista; o cinema da Boca do Lixo com a literatura moderna de Oswald de Andrade; os experimentos plásticos de um Nuno Ramos com o sotaque dos saraus da periferia.

Há um verso que sintetiza a experiência de Elza Soares em A Mulher do Fim do Mundo, presente na canção, Dança: “O que me fez morrer vai me fazer voltar”. E eis aí o ofício da cantora de 79 anos que continua, pra fuder!

Capa do disco (2015)

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