Mataram o cinema e foram à brodagem
Jornalista
(no WhatsApp): Que horas nos encontramos no Bar Central?
Cineasta
pernambucano (no WhatsApp): Às 19h30 está ótimo para mim. Mas, poderemos nos
encontrar nos bares da frente, pois as coisas por lá são mais em conta – risos –
(entrementes, diz para si mesmo, o repasse do Funcultura para a produção
do meu filme ainda não saiu, por isso, preciso economizar).
19h42 o
jornalista encontra-se solitário à espera do cineasta no Bar São Jorge, um dos
estabelecimentos defronte ao Bar Central. Enquanto espera, beberica uma Heineken (long neck) e fuma seu Marlboro de
filtro branco.
19h50
chega o cineasta pedindo um milhão de desculpas pelo atraso
alegando que estivera preso no trânsito. O jornalista levanta-se, cordialmente, para
receber o convidado à entrevista e oferece-lhe um copo de sua cerveja. O cineasta recusa e
pede uma Antarctica Original (600ml) ao garçom. O jornalista liga o gravador e saca da
bolsa a tiracolo um bloco de notas e uma caneta esferográfica azul. Há, escritas no
bloco, algumas perguntas que serão feitas ao cineasta.
Jornalista:
Bem, gostaria de começar lhe perguntando sobre o seu novo filme. A quantas anda?
Do que realmente se trata? E a previsão para o lançamento?
O
cineasta bebe um gole de cerveja, olha de maneira apática para a lâmpada de
mercúrio de um dos postes da rua Mamede Simões e fala.
Cineasta
pernambucano: Então, o filme será um documentário em que pretendo fazer uma
investigação a partir de uma larga pesquisa sobre os dispositivos móveis –
celulares, gadgets, tablets –, que são utilizados por motoristas no trânsito.
Uma espécie de etnografia-digital-urbana sobre o impacto do IPI reduzido para a
compra de automóveis na Grande Recife nos últimos anos. Procuro analisar como
se comporta essa nova classe média no trânsito. Parto do princípio de que o
comportamento, na esfera doméstica, se reflete no trânsito. Porém, pretendo
capturar esse comportamento através dos dispositivos móveis que, por ventura,
captem essas atitudes dentro dos carros.
Jornalista:
Mas, você já entrou em contato com esse público-alvo? Como está sendo isso que
você chamou de pesquisa?
Cineasta
pernambucano: No momento, quem está a cargo do recorte desta pesquisa é a minha
equipe. Minha namorada encarregada da direção de fotografia – still – e
Ulisses Santiago, na direção de produção. Ele trabalhou comigo no meu último
filme: A venérea brasileira. E mais
dois assistentes. A equipe é reduzida por conta da dificuldade que tive em obter recursos no último Funcultura. Eu parti do princípio que não deveria me envolver nessa
etapa da produção justamente para não interferir na metodologia. Quanto menos
eu conhecer o "público-alvo" – como você diz – melhor será para o desenvolvimento
do filme, pois, não procuro criar empatia com os personagens nos meus filme. Essa
uma característica do documentário brasileiro, ele sempre procurou empatia, uma
boa relação entre cineasta e entrevistados, falo aqui do documentário nacional. Enfim, sempre há uma espécie de congraçamento na estreia do filme,
com todo mundo confraternizando como se o cinema fosse puro afeto. Eu procuro
desconstruir isso no meu filme a partir de duas maneiras. A primeira é essa que
acabei de lhe falar, a ausência de empatia. A segunda é o uso dos dispositivos. Há no Brasil e,
principalmente aqui em Pernambuco, um fetiche pela película. Pelo cinemão. Ou
seja, as pessoas daqui em especial adoram idolatrar a imagem. Eu nunca tive isso. Assisti inúmeros filmes clássicos no notebook. Vejo série de tevê no celular. Por fim, chegou um momento
em que pensei: há no mundo uma quantidade incomensurável de imagens produzidas. Acredito que o que produzimos em um único dia em quantidade de imagens, valeria
por um ano inteiro de produção das mesmas no século XX, por exemplo. Então, por que não, trabalhar essas imagens já produzidas? A partir daí comecei a pensar na
possibilidade das imagens criadas por dispositivos e, em cima disso, refleti
sobre o inchaço ou crescimento desgovernado das cidades brasileiras, com ênfase
no Recife. Vê, eu cheguei atrasado ao encontro por conta do trânsito. Nós
devemos refletir sobre isso e o meu filme pretende trazer à tona esse debate. Não podemos esquecer que a redução do IPI foi uma política pública proveniente do segundo mandato de Lula. Ou seja, o Estado brasileiro dando concessões à indústria automotiva e ambos destruíram as cidades brasileiras. Tudo isso em prol da não estagnação econômica. Aquela história da "marolinha" etc.
Jornalista
(com uma pergunta fora do bloco de notas): Quer dizer que seu novo filme fará
uma inflexão para o tema do trânsito aqui em Recife e deixará um pouco de lado
os argumentos dos seus dois últimos curtas: a especulação imobiliária, presente
tanto em A venérea brasileira, quanto em
13 de maio não é dia de negro?
Cineasta
pernambucano: não vejo assim de maneira estanque. Acredito que meu cinema
esteja imbricado em um todo contínuo que seria: as novas configurações ou
agressões urbanas que vêm afetando as pessoas nas grandes cidades brasileiras e
Recife é o protótipo disso. Veja como essa cidade está se tornando hostil para
quem vive nela. Principalmente para os mais desfavorecidos que usam o transporte
coletivo todos os dias. Essas pessoas têm a impressão, cada vez mais
confirmada, de que suas casas estão ficando cada vez mais longe do Centro da
cidade. A especulação imobiliária e o IPI reduzido estão sufocando nossas
cidades. Sem contar o projeto neodesenvolvimentista do PSB que acabou com as
nossas praias, com as cidades da Região Metropolitana e agora transborda para a
Zona da Mata, sem contar o Sertão, historicamente espoliado pelos sucessivos
fracassos administrativos das instâncias governamentais desse país. O que o meu
novo filme pretende é articular esses dois eixos do novo desenvolvimento
regional: construtoras e indústria automotiva; com a explosão digital dos
últimos anos. Tudo isso pensando as nossas velhas estruturas patriarcais,
racistas e machistas que podemos ver refletidos em nosso trânsito, por
exemplo.
Jornalista (outra pergunta fora do bloco de notas):
Você não acha que há um paradoxo presente na crítica que seu novo filme
pretende – criticar o novo desenvolvimentismo do PSB em Pernambuco ao mesmo tempo
em que essa mesma administração abriu novas linhas de crédito e aumentou o aporte
do Funcultura?
Cineasta
pernambucano: Não acho, veja bem, você deve lembrar que o dinheiro para o Funcultura não sai dos cofres do partido, mas sim do ICMS estadual. Além disso,
é papel da cultura, dos artistas e intelectuais, criticarem os destinos da
nação pois se eles não fizerem, quem irá fazê-la?
Jornalista:
Bem, mas você deveria considerar, no mínimo, a administração atual porque as
antecessores não fizeram nada para o cinema e as artes pernambucanas, ou se
fizeram, fizeram muito pouco, não é?
Cineasta
pernambucano: Acho que você não vai publicar isso, mas lhe pergunto? De que
lado está a impressa desse estado? Do lado dos espoliados ou do lado dos
espoliadores? Pelo jeito, mesmo vendo-o nas discussões do Ocupe Estelita, você,
no fundo, está defendendo os interesses de João Carlos Paes Mendonça, o dono do
jornal que você trabalha.
Jornalista:
Sinceramente, estou tentando não ser cínico como muitos de vocês demonstram ser.
Veja bem, sou branco, heterossexual, de classe média, tenho curso superior,
carro e moro em um apartamento. Só não estudei cinema fora do país como você
fez. Tirando isso, você tem uma vida igual a minha. Parece que se desfez do
carro para tentar vender uma imagem de progressista eco-esquerdista da
ideologia Ocupy. E sim, diferente de
muitos de vocês, eu tenho dois filhos para criar e o futuro do jornalismo está indeterminado. Sim, sou sensível
ao Ocupe Estelita mas tenho família para criar e o jornalismo ainda é a minha
fonte de renda.
Cineasta
pernambucano: Mermão, vamos deixar
desse papo e vamos tomar a nossa cerveja numa boa. Te conheço há um tempão, lá
da época do cineclube que nós organizamos lá na Unicap e não tô afim de morgar
essa nossa história. Então, visse teu Sport ontem? Levou um vareio de bola.
Levou três em plena Ilha do Retiro...
Jornalista:
Nem me fale nesse jogo, tava lá ontem...
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