Desloucamento de retinas

28.7.16 Cabotino 0 Comentarios


Sempre ouvir dizer que quem costuma ler em ônibus poderá ter um deslocamento de retina. Talvez seja verdade essa previsão, embora nunca tenha conhecido alguém que tenha de fato sofrido esse, digamos assim, acidente de percurso.

Cresci num bairro longe de tudo que é próximo e próximo de tudo que é longe. Com isso, até hoje, costumo fazer inúmeras viagens de ônibus. Das ambivalências da vida uma sempre me chamou atenção: há uma vantagem para quem mora no último ponto da linha de ônibus, o chamado terminal [sou um passageiro terminal] que é poder viajar sentado. 

Por conta dessa particularidade [ou infortúnio] que mencionei no parágrafo anterior, fui obrigado a desenvolver técnicas anti-tédio. E são poucos os recursos contra a bílis negra provocada pela rotina diária do “qual o lado da sombra, cobrador?; Uma ajuda em nome de Deus, bênçás! A um pai de família desempregado” do que a prática da leitura. 

Já chorei de emoção ao terminar um romance do Josué Montello enquanto ônibus atravessava a desgraçada Av. Sul. Já desejei a morte de um evangélico que estava atrapalhando, com sua pregação ruidosa, a leitura de um hermético parágrafo de Max Weber. Já gaitei de rir, gostosamente, numa passagem de Incidente em Antares, sentado ao lado do sol, em pleno mês de janeiro. 

Leio em ônibus há mais de 15 anos. Meus olhos até se acostumaram a ler em movimento. Parece que a brochura ao ser arreganhada defronte aos meus olhos faz as palavras deslizarem macias sobre as superfícies arredondadas da armação de meus óculos. As palavras saltam sobre as lentes e deslizam pedalando – da esquerda para a direita – sobre as ruas de resina da frente dos meus olhos e, com isso, constroem paisagens de palavras enquanto outras paisagens são deixadas pra trás através das janelas.

Com o tempo, alarguei minha experiência de ler em ônibus para outros lugares, justamente à medida que as demandas por mais leituras se ampliavam, da graduação à pós. E como o Brasil é um país que foi inventado e eternamente reiventado pela burocracia, moramos num país que é uma eterna sala de espera, comecei a ler nos entreatos dos atendimentos: bancos, estabelecimentos de saúde, rodoviárias, cartórios, Correios... Nas horas mortas dos entreatos procuro a vida em meio às boias-salva-vidas das brochuras dos livros.

Leio em tudo que é lugar e em tudo que é ambiente [com calor, barulho, etc.], por conta disso, talvez, tenha desenvolvido essa característica onívora no tocante à diversidade de leituras. Me interesso por tudo para tentar aplacar o tédio que é, ao cabo, sempre algoz de qualquer ímpeto ou curiosidade – o tédio tem uma saúde de ferro. 

Com tudo isso, minhas retinas acostumaram-se com o deslocamento, diria mais, elas estão desloucadas. O neologismo é quase autoexplicativo. Porém acrescentarei que não há mais jeito para minhas fatigadas retinas. Onde elas deitam sua atenção as coisas tremem. Minhas retinas esquadram tudo com uma frequência de Escala Richter. Vejo tudo em movimento e sei que isso não é fruto exclusivo da opticocracia contemporânea, mas não posso fazer muito por esse par desloucado habituado a ler esse mundo deslocado.

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