Sonho de uma noite de engodos III

6.7.16 Cabotino 0 Comentarios


Voltei à sala. Antes passei e peguei mais uma cerveja no freezer (na verdade era um frigobar apinhado de cervejas) e cheguei todo serelepe ao recinto que no momento estava tocando uma música estranha aos meus ouvidos, perguntei à Juliana que som era aquele, ela disse-me que se chamava: Cansei de Ser Sexy e que antes havia tocado Bonde do Rolê.

Enquanto isso algumas meninas e meninos dançavam até o chão como se fosse um funk de gente branca direto do alto dos morros de concreto e aço das coberturas recifense, pensei: “festa estranha com gente esquisita”, daí resolvi dançar de acordo com a minha música. Fui em direção de um outro brother conhecido, Arthur que estava conversando sobre o novo cinema tailandês com uma morena lindíssima – o que a combinação de leite Ninho, escola particular e ar-condicionado não fazem com as pessoas.

Cheguei em Arthur e lhe pedi um cigarro, ele me deu um Carlton Red e cumprimentou-me: “Como vais, cara?”. “Eu estou como me deixam, Arthur”, lhe respondi. “Esse Anderson vem com cada uma”, respondeu-me e soltou um risinho de praxe. Acendi o cigarro e fiquei ouvindo um pouco a conversa dos dois, fazer uma cena pelo mimo do cigarro. No momento, Arthur saiu com essa:
- “Você tem que ver um filme do Apichatpong Weerasethakul, chamado: Uncle Boonmee who can recall his past lives. É um filme muito foda que narra os últimos dias de um coroa, o Tio Boonmee, tipo, que sofrendo de uma insuficiência renal decide voltar para casa e se tratar lá fazendo diálise e tudo. Numa noite, no jantar com a família, o espírito de sua esposa falecida vem acompanhar a refeição, tipo, e lhe ajuda com os últimos momentos. Ah, e vem também o filho dele que após um longo sumiço, tipo, volta metamorfoseado em forma de um bicho esquisito, e os três fazem umas caminhadas muito loucas pela floresta tropical tailandesa, e lá encontram uma caverna, tipo. Na caverna o velho Boonmee faz uma viagem até a sua primeira forma humana, tipo, uma doidera, minha irmã”.

- “Nossa, parece até aquela cena da cocheira em O som ao redor”. Observou a menina que conversava com Arthur.

- “O sono ao redor, perdão, O som ao redor nem se compara com esse filme do Apichatpong. O filme do tailandês é foda porque discute a morte a partir de uma matriz fantástica em que a caverna, tipo, representa nossa natureza mais primitiva, nossos contatos com a ascendência mais antiga, tipo, é uma pegada antropológica da porra”.

- “Mas, n’O som ao redor temos também a volta dos mortos na cena da cachoeira, ali representa que irão vingar o seu sangue inocentemente vertido em uma briga de família por terra...”
Neste instante, saí da conversa de fininho e voltei para o meu anjo negro. Peguei outra cerveja e senti minhas pernas vibrarem pelo efeito do pó. Estava afim de tagarelar um pouco, na verdade, sempre tive uma quedona pela beleza e gosto de tê-la por perto, principalmente quando estou com uma cerveja à mão.

Voltei para papear com Juliana e o maldito do Robson estava lá com ela conversando sobre literatura e homossexualismo. Neste turno, Juliana vem com essa:

- “...Thomas Mann era veado e Oscar Wilde também. O tema da homossexualidade era central em suas obras, tanto em Morte em Veneza quanto em O Retrato de Dorian Gray. Eu acho que a literatura moderna, assim como a poesia, além de ser autotélica (depois fui ver no Wikipedia o que era isso e acho que Robson também boiou nessa hora) é bastante autobiográfica. Uma prova disso é que os romances, as novelas e a poesia moderna tem como fio condutor a vida do próprio artista sendo retratada, metaforicamente, a partir de suas experiências singulares (esse povo de Letras fazem tantas circunvoluções críticas que se esquecem de fruir as obras, é natural, caso contrário como iriam ganhar seu pão) do seu próprio corpo. O corpo virou o ponto de partida e de chegada da arte moderna, aliás, vou até mais longe: o Outro é o grande nó da arte moderna, talvez ela seja fruto de Platão e do apóstolo Paulo...”

- “Ah, então você quer dizer que Jesus era veado também?” Perguntou Robson, com seus pés batendo em um ritmo dissonante no assoalho do apartamento, a Juliana.

- “Eu não falei isso, Robson, mas a sua pergunta não é estapafúrdica (que proparoxítona linda saída daquela boquinha), talvez Cristo fosse veado mesmo, veja a quantidade de apóstolos, dentre eles, nenhuma mulher...”

- “Pois é, doze, e eu nunca tinha parado para pensar nesse número. Vejamos: doze pode ser um mais dois, que dará? Três. O número da trindade...”

- “Ou do ménage”, completei a divagação de Robson. “Agora cabe saber qual é o terceiro elemento, pois desconfio que Jesus trepava com Madalena. O terceiro pode ser a pompa do Espírito Santo ou quem sabe o apóstolo Pedro que, negou três vezes a Cristo, talvez fosse um ménage em que Cristo não sabia da existência do terceiro elemento, como, aliás, é a maioria absoluta, cerca de noventa por cento, que é múltiplo de três, da humanidade pratica alguma forma de ménage só que deste total, um dos cônjuges não sabe.”

- “O que vocês dois estão bebendo, hein?” Perguntou-nos Juliana com um risinho. “Vocês dois emporcalharam meu argumento, agora eu perdi o fio da meada...”

- “Recupere o fio minha Ariadne e siga-me nesse labirinto da arte moderna... Você falava sobre a relação do Outro na arte moderna a partir de Platão e do apóstolo Paulo, continue. Antes, eu gostaria de falar um pouco sobre esta fotografia aqui em cima, vocês sabem quem a tirou ou se é alguma cópia comprada pela internet, ou em alguma feirinha vagabunda de artesanato como aquela lá da Praça do Arsenal?” perguntei a ambos.

Neste ínterim, Robson foi ao banheiro dar mais uma calibrada nas narinas.

- “Sim, essa foto foi tirada in loco” (o latim sendo pronunciado como uma forma de cantochão com a pontinha da língua batendo no palato superior e dando mais charme ainda àquela forma devastadora em minha frente, a beleza fala por si só, não precisa da arrogância de um eventual cocainômano com dois cigarros Hollywood no bolso, para descrevê-la) “pela minha mãe que estava viajando de férias com meu pai no Peru, essa foto foi tirada perto de Machu Picchu”.

- “Quer dizer que você é a dona desse barraco?”.

- “Na verdade, sou filha dos donos”. Ela riu e completou.

- “Mas, se alguma coisa acontecer aqui como, por exemplo: alguém quebrar algo você passa, irremediavelmente, a ser a dona, não é?”.

- “Isso mesmo, mas o pessoal aqui não é destas coisas, são bem comportadinhos. Podem bancar o Black Block lá fora ou pousar de iconoclasta no Facebook, porém, aqui em casa, se fizerem merda fará uma vez só porque ficará queimado comigo e ainda por cima mando a conta para os pais pagarem”.

- “Você realmente é uma madre superiora de um colégio interno mantendo a ordem e a disciplina rigorosamente. Enfim, o que me atraiu nesta foto é a placidez do pastor em guiar seu rebanho, lá ao fundo, a Cordilheira dos Andes com sua cumeeira branca e sua vastidão erma, parece com o céu”.

- “Exatamente, lembrasse até uma série de poemas de Fernando Pessoa na heteronímia” (fui ver depois o que era heteronímia e até hoje não sei ao certo) “de Alberto Caeiro, você conhece?”.
- “Nunca ouvir falar”.

- “Então, Fernando Pessoa era outra bicha enrustida que vivia entre quatro ruas da Baixa Lisboa e suspirando de amor por Ophelia Queiroz...”

- “Nossa, como você está incomodada com os artistas veados”

- “Pois é menino, inclusive estou pensando em fazer um artigo sobre a relação do homossexualismo nos artistas modernos, especialmente, os poetas. Talvez faça uma análise da poesia de Walt Whitman, Fernando Pessoa e Rimbaud. Talvez exclua o último pois, acho que não terei fôlego e no poeta francês, o tema da homossexualidade não é tão candente. Tenho uma hipótese que acredita na libertação da criatividade a partir da ampliação das grandes metrópoles que fez brotar a figura anônima do artista burguês, tendo em vista que a arte era exercida na corte com toda a sua pompa...”

- “Então seu artigo terá mais um cunho historiográfico e sociológico do que linguístico formal?”.

- “Talvez... Apesar de não acreditar nestas divisões tão estanques na área do conhecimento...”

- “Eu corroboro com esta sua hipótese, apesar de não conhecer a obra de Withman nem a de Pessoa. O primeiro era norte-americano?”

- “Isso mesmo, era uma figuraça. Homossexual” (vi que tinha uma deferência pelo poeta norte-americano, pois não o chamava de veado), “cozinheiro e lutou na Guerra Civil dos EUA e é considerado o ‘pai do verso livre’” (utilizou as aspas de uma maneira tão graciosa)

- “Interessante, acho que você deveria explorar mais esta relação do verso livre com a ascensão da burguesia e da sociedade industrial que sempre vislumbrou a transformação, não só da economia-política, mas de toda a totalidade do social tendo em vista que a burguesia foi a única classe social que chegou ao poder por intermédio do trabalho, e compreendia essa sua característica como condição sine qua non” (também usei o latim para configurar certo ar erudito) “de sua visão de mundo. Talvez por isso ela seja ‘livre’ para dar vasão a sua subjetividade a partir de suas potencialidades, seja ela no tear mecânico ou na poesia. Mas uma coisa eu ainda não entendi” (acho que o efeito da coca estava indo embora e minha enrolação pseudo-histórica-poética estava chegando ao fim) “é o seu interesse pelo homossexualismo, explique-me mais...

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Continuação aqui

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