Sonho de uma noite de engodos II

6.7.16 Cabotino 0 Comentarios


Esse Robson era um cara que tinha um interesse de pesquisa no mínimo curioso: estudava a predileção da cor verde no Movimento Integralista Brasileiro. Ele tinha toda uma teoria que remetia à Mocidade Portuguesa Salazarista; atravessando os Pirineus, chegava aos Falangistas Franquista; e ia até à Itália de Mussolini em uma espécie de cromofilia fascista de matriz latina que, excluíase de sua lista o elemento nazista, pois o marrom nazista era uma cromofilia tipicamente dos povos do norte, segundo teorizava.

A menina que o acompanhava na prosa era de baixa estatura, cabelos encaracolados ruivos não tingidos, pois sua pele leitosa e sardenta à altura dos ombros confirmavam sua ascendência rubra, assim como nas cores de suas sobrancelhas. Vestia um vestido preto com um top meia taça que lhe mostravam os ombros nus. Calçava uma sandália de couro de bode ou era de jacaré ou couro sintético, tanto faz. Não sei por que mas ela tinha cara de freira.

Neste instante, ele viu-me chegar e acenou-me com a mão direita, já que a esquerda estava ocupada com uma cerveja. Fui ao encontro do casal no canto da parede. Ele me apresentou à menina: “Esse aqui é Anderson, grande nome da História Social da universidade, especialista em Brasil Republicano...” Daí eu emendei: “E em sânscrito”. A menina sorriu, e o sorriso é sempre um bom começo.

Robson continuou: “Essa daqui é Juliana, uma amiga minha que estuda Letras lá na universidade”.
“Olá, muito prazer”. Respondi e beijo nas duas faces, com ela era nada de um beijo apenas. “Sou Anderson, seu filólogo subalterno, a seu dispor” (repararam? Dois pronomes pessoais em uma única sentença), completei.

Perguntei a Robson: “Onde estão as cervejas?”

Ele me respondeu, “Lá no freezer” (já repararam que gente rica não tem geladeira?).

“Pô, man não tem como tu ir lá pegar pra mim? É só desta vez, na próxima eu vou, é que eu nunca vim aqui e tu sabes como são estas coisas e tal...” Sugerilhe, ele fitou-me furibundo e foi lá buscar a cerveja dizendo:

“És um folgado da porra, Anderson”.

Se de longe e na penumbra já era linda, imaginem de perto, tinha um nariz afilado, um par de olhos castanhos quase negros, uma mandíbula proeminente parecendo com Ingrid Bergman em Stramboli, um par de sobrancelhas não “feitas”, acho que por ali nunca passou uma pinça, que quando sorria subia levemente à sua testa geometricamente convexa. Duas covinhas diabólicas nos contos da boca que ao sorrir lhe davam um ar de anjo noturno da rua Mamede Simões com seus cachos anelados caindo-lhes pelos ombros nus. Um anjo da morte de pele escarlate vestido de negro – fogos de artifício em uma praia erma à noite.
  
Daí disse-lhe:

- “Você tem cara de freira”.

Ela sorriu e respondeu-me:

- “Como você sabe que eu estudei em colégio de freira?”

- “Eu sou bruxo”. Retruquei, quando se acerta assim de primeira eu sempre penso: é melhor ter sorte do que ser rico.

- “Ah, além de polímata...” (depois fui ver no dicionário o que significa essa palavra, na hora, dei um riso muxoxo) “...és bruxo também?”

- “Sim, sou uma mistura de Houaiss, com J. L. Borges e ainda raçiado com Mãe Dinah”. Ela riu novamente (ah! Aquelas covinhas dos Diabos nos cantos da boca!) e fez mais uma pergunta:
- “Diga-me outras de suas bruxarias”.

Neste momento, fiz um joguinho que sempre uso nestas situações:

- “Pense em um país que começa com a letra ‘D’” (além de Dinamarca só há, até onde vai o meu mapa mundi, Djibuti, um país na África que ninguém sabe que existe).

- “Sim, já pensei”.

- “Agora pense em um animal cujo nome comece com a letra ‘M’”.

- “Já achei um”.

- “Se enganou porque não há macacos na Dinamarca”.

Desta vez ela deu uma gargalhada e jogou a cabeça para trás como se fosse uma vilã de novela mexicana e, provavelmente pensou: “Esse é o maior canalha de Recife”, e emendou:

- “Ah, você me deu duas sugestões que invariavelmente eu iria cair onde você desejaria, diga mais exemplos de sua bruxaria”.

Fui salvo por Robson que chegou com duas cervejas e deu-me uma longneck da Heineken geladíssima (gente rica sabe apreciar o que é bom), abri a e bebi um gole, depois acendi o meu cigarro, só haviam dois no maço e teria que economizar, aliás, economizar uma porra, iria filar o da turma ali na festa.

Acendi o “careta” como Humphrey Bogart o faz em Casablanca, pondo a mão esquerda em forma de concha e inclinando levemente a cabeça para baixo, com os olhos semicerrados – antes de politizar a estética, faz-se necessário estetizar a vida. Após a terceira tragada, Juliana perguntou-me:

- “Percebi que você gosta de literatura, falou até de Borges há pouco, o que você anda lendo”?

- “Eu acabei um Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray...” (mentira, li esse livro há uns dois anos)... “e no momento estou lendo Morte em Veneza do Thomas Mann...” (outra mentira, li esse livro há um ano) “...e estou gostando muito, acho que o toque especial na literatura do alemão é a sua ascendência latina...” (tinha descoberto no YouTube que a mãe de Mann era brasileira) “...que lhe dá um bom guisado, pois mistura-se a disciplina de ferro prussiana com a inquietação do povo latino...” (quando quero, sou de um pernosticismo galopante, mas deve-se evitar os excessos)”. Daí ela falou-me, fitando-me com certa desconfiança:

- “Eu já li os dois, confesso que gostei mais do Wilde, a vida de Dorian é muito mais atraente do que a do músico em Morte em Veneza... Qual o nome dele?”

- “Aschenbach”

- “Isso mesmo, que vive um amor pederasta por aquele menino...?”

- “Tadzio”

- “Isso, lá em Veneza e refletindo os desdobramentos da música moderna enquanto é sucumbido pelo cólera que reinava na cidade no período. Já no Retrato vemos uma Londres soturna, suja e labiríntica...” (ela usou adjetivos típicos de um cronista vagabundo ou de uma estudante de Letras) “...e a trama que envolve Dorian, Lorde Harry, Basil e...”
 
- “Sibyl Vane” (dei sorte por lembrar-me os nomes dos personagens, geralmente não sei nem a cor de minha cueca, mas a iminência de uma mulher ali ao me alcance acho que atiçou minhas sinapses mnemônicas)

- “Exatamente, Sibyl Vane, é muito mais atraente e envolve além do elemento mágico, o quadro...” (retrato!) “...Há também uma série de assassinatos típicos de uma sociedade em declínio e de uma cultura aficionada pela literatura policial”.

- “Isso mesmo...” (não se discute com a beleza, ao menos, nos primeiros momentos em que se cruza com ela) “...a Londres junto com a sociedade vitoriana europeia do séc. XIX encontravam-se em franca decadência devido às mazelas morais denunciadas por Freud, Wilde, Lawrence, Nietzsche, Marx... entre outros fatores, ao nascimento de uma nova sociedade – industrial, metropolitana e burguesa”.

Percebi que ela assentia com a cabeça de maneira afirmativa e seus olhos brilhavam (não sabia se era enfado ou vislumbre) em minha direção. Notei também, após alguns minutos que ela não lera Morte em Veneza, apenas vira o filme homônimo de Luchino Visconti e, acredito, o tenha confundido com a novela de Thomas Mann porque naquele, Aschenbach é músico e nesta; romancista (mas, de uma mulher bonita perdoa-se tudo, principalmente quando ainda não a temos nos braços e, venhamos e convenhamos, é melhor seduzir uma mulher do que ter razão).

Constatei que Robson havia dado umas três cafungadas no nariz enquanto eu e Juliana conversávamos. Cheguei sorrateiramente ao seu ouvido e perguntei:

- “Ei, man, tá rolando o brilhoso?”

- “Porra, tu és foda, ninguém esconde nada de tu, né? Tá rolando sim, agora fica na tua aí visse, não espalha. Vá lá no banheiro e embaixo da pia há um armarinho pequeno e por trás da caixa de uma máquina de cortar cabelo há um CD, e nele tem três carreiras, três carreiras! Viu, seu safado! Não vá avacalhar a parada”. Sussurrou-me ao ouvido.
  
- “Valeu Robson. Vou ficar te devendo essa, fica peixe aí que mais tarde eu te dou a minhoca” (adoro esta catacrese, acho que é esse o nome da figura de linguagem).

- “Vai te lascar, porra”.

Fui ao banheiro indicado por Robson e cheguei lá após atravessar uns trezentos mil cômodos, de início me impressionei com o tamanho dele. Era maior do que a minha casa, no duro, tinha banheira, quadros na parede etc., e um exaustor para sugar as impurezas ou para circular o ar naquela altura, não sei ao certo. Mijei e fui direto ao esconderijo.

De fato, haviam três carreiras de cocaína da grossura do meu mindinho (infelizmente ele é fino), não tinha nenhum canudo próximo, mesmo se tivesse seria foda pegar um já usado. Abri minha carteira e encontrei uma cédula de dois reais, filha única, desgraçadamente suja, peguei-a e enrolei a “tartaruga marinha”.

Tranquei a porta e botei o CD sobre a pia e inalei aquela substância em duas cafungadas; uma em cada narina para não enviesar o processo nem favorecer à esquerda tampouco à direita, sempre fui um junkie liberal. Após sentir aquela substância subir à cuca e travar a garganta consegui ler qual era o artista impresso naquele CD, Jorge Vercillo, no disco: Como diria Blavatsky, pensei: “a droga é boa”.

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Continuação aqui

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