Preta

4.12.12 Joarez 0 Comentarios



Devo admitir: minha identificação com Preta não foi dessas cinematográficas, efusivas e instantâneas. Quando ela veio morar aqui em casa, por intermédio da minha irmã, passamos um longo tempo numa precaução recíproca. Ela de lá, eu de cá - apenas algumas observações e muitos silêncios. Mas aos poucos fomos nos tornando próximos - tão próximos que eu não sei se esse meu hábito de olhar de soslaio eu não aprendi com ela. E ela foi embora há duas semanas! Antes disso, a casa jorrava alegria. Você precisava ver a folia que ela armava quando eu chegava em casa tarde da noite. E também era mais ou menos por esse horário que começava nossa cumplicidade: comíamos juntos, descansávamos juntos, líamos juntos. Eu na rede ou na cama, ela no chão. A minha mão direita segurava um livro, a esquerda acariciava suavemente seu cocuruto, seu pelo liso, até que o sono a levasse. Se eu interrompesse o carinho antes do devido, ela enterrava o focinho embaixo da minha mão esquerda, e lambia-a até que eu voltasse a niná-la com um cafuné. Foi nesta toada que nós vivemos grandes aventuras: Graciliano, Guimarães Rosa, Shakespeare, Ítalo Calvino, Adélia Prado, Drummond. Lógico, com alguns altos e baixos: lembro-me de uma semana em que ela dormiu distante de mim porque eu lia Clarice Lispector. Até hoje me pergunto o porquê de uma lacuna tão profunda num gosto tão refinado; mas aprendi a lhe respeitar, afinal há de se deixar um espaço para que se movam as idiossincrasias. Agora, a mão direita segura Lygia Fagundes Telles; a esquerda, de tão ociosa, chega a se insinuar: busca no ar algo que a preencha. Mas vai passar um bom tempo assim, digo, mimando o nada: Preta foi embora há duas semanas, e não há previsão para que volte.

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