Preta
Devo
admitir: minha identificação com Preta não foi dessas cinematográficas,
efusivas e instantâneas. Quando ela veio morar aqui em casa, por intermédio da
minha irmã, passamos um longo tempo numa precaução recíproca. Ela de lá, eu de
cá - apenas algumas observações e muitos silêncios. Mas aos poucos fomos nos tornando
próximos - tão próximos que eu não sei se esse meu hábito de olhar de soslaio
eu não aprendi com ela. E ela foi embora há duas semanas! Antes disso, a casa
jorrava alegria. Você precisava ver a folia que ela armava quando eu chegava em
casa tarde da noite. E também era mais ou menos por esse
horário que começava nossa cumplicidade: comíamos juntos, descansávamos juntos,
líamos juntos. Eu na rede ou na cama, ela no chão. A minha mão direita segurava
um livro, a esquerda acariciava suavemente seu cocuruto, seu pelo liso, até que
o sono a levasse. Se eu interrompesse o carinho antes do devido, ela enterrava
o focinho embaixo da minha mão esquerda, e lambia-a até que eu voltasse a
niná-la com um cafuné. Foi nesta toada que nós vivemos grandes aventuras:
Graciliano, Guimarães Rosa, Shakespeare, Ítalo Calvino, Adélia Prado, Drummond.
Lógico, com alguns altos e baixos: lembro-me de uma semana em que ela dormiu
distante de mim porque eu lia Clarice Lispector. Até hoje me pergunto o porquê
de uma lacuna tão profunda num gosto tão refinado; mas aprendi a lhe respeitar,
afinal há de se deixar um espaço para que se movam as idiossincrasias. Agora, a
mão direita segura Lygia Fagundes Telles; a esquerda, de tão ociosa, chega a se
insinuar: busca no ar algo que a preencha. Mas vai passar um bom tempo assim,
digo, mimando o nada: Preta foi embora há duas semanas, e não há previsão para
que volte.
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