Presente do tempo
Na pintura de Francisco de Goya, Saturno, deus do tempo, aparece devorando seu filho |
Rapaz, eu estou sentido a morte à
espreita. Ela dorme ao lado do meu quarto, e trabalha de maneira incansável,
constante e silenciosa. A morte anda me observando, me acena de longe e volta a
se esconder, talvez com a intenção de que eu me sinta um privilegiado, um
escolhido – ufa, dessa eu escapei. A morte estava aqui perto, ninava uma
pessoa, dava seu fim em migalhas, a conta-gotas, com a paciência de um ourives.
Seu tempo demora a chegar, mas quando chega, ah, ela não se apressa. Sabe com
uma precisão cirúrgica que esse é o momento certo, o momento ideal, o seu
momento - aquele que lhe foi reservado e prometido desde o início, desde o
pecado original. Então ela se apossa de uma vida vagarosamente, como um
crepúsculo ou alvorecer, ou simplesmente como quem lança mão de um lençol para
proteger o corpo do frio durante o sono da noite. A morte, talvez nossa única e
inabalável certeza, é a nossa maior angústia. E angustia porque é calma; amedronta
porque é familiar. A morte, esse imenso problema dos vivos, olha com certo
pesar para algumas vaidades e idiossincrasias, pois ela sabe que as corroerá
com algum grau de cinismo um dia. Um dia, quando ela vier sob a forma de alívio
ou de dor e apertar o botão de desligar da consciência. Aí, sim, teremos recebido
do tempo, ao mesmo tempo pai e algoz, o seu mais pujante e sincero presente.
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