Intrauterino

31.8.14 Cabotino 0 Comentarios



Estava tudo pronto: uísque; gelo; água tônica; a pescada frita na farinha de mandioca; o ovo de codorna acompanhado com sal, o cinzeiro ao alcance da mão, as camisas verde-amarela; o futebol em alta definição na tevê de 32 polegadas; o hino nacional; os ânimos e toda a variedade de palpites para o resultado do jogo. Os convivas/torcedores já haviam me atualizado das últimas novidades nas redes sociais a partir dos seus ultramodernos aparelhos de celular – batendo fotografias panorâmicas e selfies compartilhadas ato contínuo na internet.

O céu estava aberto no início da partida, mas minutos antes o clima ficou abafado, o vento parou de circular e as nuvens estacionaram e ganharam cores de cobre velho lá para as bandas ao sul do céu, de onde a chuva oriunda por aqui em Recife. Pensei, mês de julho é assim e o mau tempo não irá interferir no resultado do jogo. Mas a ausência de Thiago Silva e Neymar, talvez. Sou um otimista e talvez por isso eu tenha sofrido menos com o resultado final da partida entre Brasil e Alemanha na semifinal da Copa do Mundo de 2014, pois como diria Fernando Sabino: “o otimista só sofre uma vez”.

Entre os convivas/torcedores que estavam comigo durante a partida encontravam-se quatro casais. O anfitrião, dono da casa e meu amigo, um afilhado deste, e uma menina grávida que nunca havia visto antes, mas ouvido falar nela brevemente em uma conversa. Estava com oito meses de gravidez e dizia que sua filha iria nascer no próximo mês, agosto, e temia a sua estrela [sina] pois ela viria ao mundo sob o signo de leão que, segundo a mãe, é um signo muito irrequieto e dado à desobediência. Pensei, o que os zodíacos podem fazer com a personalidade de uma pessoa que os pais, o acaso, a sorte e toda a histeria deste século não seja capaz? Além de vir a esse mundo com nome e sobrenome, religião, time de futebol e mil outras imposições a criança ainda tem que ser submetida aos imperativos do horóscopo? São muitas estrelas para uma única constelação. Malsinada antes de levar a primeira lufada de vento deste largo mundo.

Após o quarto gol dos alemães o narrador da tevê Globo, Galvão Bueno, narrou: “virou passeeeeeio”.

O uísque ficou intragável, o peixe era só espinha, o ovo de codorna gelado, as camisas eram só amarelo. Uma idiota que acompanhava a partida, provavelmente esposa de um dos caras que estavam vendo o jogo disse: “eu já sabia”. Ora, se sabias porque não fostes à puta que pariu e me deixastes aqui curtindo minha fossa sem ouvir estas besteiras, ou melhor, pega a tua premonição de última hora e desaparece daqui, porra!

Sim, o que vimos foi um “passeio” do futebol alemão naquela tarde macabra em Belo Horizonte. Nossa prostração foi plena. Juca, o dono da casa tragava sofridamente seu Carlton blend e junto comigo, era o meu irmão na desgraça. Os demais convivas, que, a esta hora já tinham deixado de ser torcedores para converterem-se nessa massa canalha, tão brasileira, que adora sambar no salão benfazejo, ou como diz meu tio mais novo: “o bom no bom é bom demais, quero ver o bom no ruim” já haviam se refugiados em seus celulares atualizando e compartilhando toda a sorte de memes que proliferavam nas redes sociais fazendo da seleção brasileira motivo de chacota.

Para mim, nenhuma instituição está imune às críticas e brincadeiras, e a Seleção brasileira não é diferente. O que me incomodou realmente foi o cinismo de última hora e incoerente da maioria que estava ali. Ora, se o futebol lhe é indiferente, manifeste isso desde o início e não fique fazendo você mesmo de idiota com a camisa verde-amarelo cuja significação lhe é, agora, após o quarto gol do adversário, irrelevante. Fica feio para você.

Enquanto tentava fumar mais um cigarro, agora em pé na porta e vendo o final do primeiro tempo pelo basculante, não queria soltar fumaça perto da gestante, sou educado até na tragédia. Vi que os olhos da menina grávida começaram a marejar e ela soltou o berreiro. Chorou copiosamente até soluçar. Marta, a dona da casa e esposa de Juca, que havia acordado de sua infalível sesta, foi buscar uma garapa para ela que, aos poucos, foi acalmando-se até que acabou o primeiro tempo.

Perguntamos por que havia chorado. Disse-nos que não sabia ao certo. Pensei, coisa de mulher grávida com seus milhões de sentimentos revolvidos em meio ao turbilhão desse mundo que competia em nervosismo com a sua gestação.

Acalmadas as lágrimas da grávida, começamos a ouvir outro choro. Desta vez mais abafado, quase gutural. Percebemos que o pranto vinha da criança dentro daquela barriga que intrauterinamente chorava. Tomei um susto tão grande que me fez entornar em uma só talagada o uísque com tônica, nunca havia visto e ouvido aquilo antes.


Recompus-me do susto e pensei, como uma criatura ainda sem um pingo de consciência do que lhe circunvizinha chora desse jeito? Será que as lágrimas dela foi em decorrência das da mãe? Ou chora pelo estranho espírito de época tão tacanho em que não havia mais espaço para o trauma cultural, como ocorrera em 1950, onde em seu lugar incorporou-se um cinismo que não toma partido e vive ao sabor das circunstâncias. Onde a tristeza deve ser substituída por alguma tirada hilária e impertinente protagonizada em memes instantâneos nas redes sociais? Não sei. Talvez as lágrimas intrauterinas fossem o prólogo de uma vida malsinada, não pela ascendência social da família, futebolística, ou do horóscopo, mas por uma época que insiste em tripudiar “monumentos” depois de serem erigidos com a pecha cínica e arrogante do “eu já sabia”.

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