O inconsciente do olhar V

9.8.14 Cabotino 0 Comentarios



O Tempo é implacável e não há nada que consiga parar a sua engrenagem inexorável. Afora as frases feitas e a metáfora mecânica para essa coisa inatingível que nos ataca em cheio com a sucessão do sol, o Tempo. Sabemos que ele escorre para todos nós, mas com as mulheres ele tem um grau de perversidade que chega à requintes de crueldade, como um serial killer que não cansa de mutilar suas vítimas antes de despachá-las para a morte, o Tempo subtrai do corpo feminino a rigidez dos membros, à delicadeza das curvas, à maciez da pele, às linhas hermeticamente desenhadas do rosto, os matizes dos cabelos etc., e, licenciosamente, não cessa a produção do desejo – diminui, mas o dínamo que aciona a catapulta do desejo de desejar e, acima de tudo, de ser desejada, não para nunca.

Sem mais divagações sobre esta instância tão complexa e hedionda que é o Tempo. Narrarei uma história tão prosaica quanto à translação do sol sobre nossos corpos bípedes e burgueses. Vem comigo.
***
No coletivo que me levava à Estação de Metrô de Cavaleiro, no ponto em que apanhei o ônibus, subiu comigo mais algumas pessoas, entre elas: uma mulher de meia idade, uma balzaquiana na Idade da Loba, ou seja, àquela idade que se impõe à mulher de maneira que ainda percebemos a primavera dos áureos anos de juventude aproximando-se do ocaso outonal. Era negra cabocla, pois tinha cabelos lisos, nariz aquilino, lábios finos, cintura em forma de pilão e andava no corredor do ônibus com a desenvoltura de quem anda em uma calçada livre, balançando as ancas tão graciosamente mesmo levando uma criança nos braços. Vestia uma camisa cinza colada ao abdômen magro, uma bermuda jeans, sandálias de dedo e óculos escuros grandes e arredondados, formato olhos de abelha. Em resumo, como se diz vulgarmente: uma coroa gostosa. Sentou-se na janela com a criança do lado do sol. Percebia-se que não estava acostumada a pegar aquela linha de ônibus, haja vista, estar ainda vazio e ela ter sentado justamente do lado do sol. Da criança que ia aos seus braços não guardo muitos pormenores, tendo em vista que minha atenção ficou amplamente fixada em sua guardiã.

Com os que narrei acima, subiu também um jovem, aparentando uns vinte e poucos anos. Moreno, cabelos à moda militar, rosto escanhoado, maxilar proeminente, semblante fechado – provavelmente condizente com sua profissão de segurança ou de militar, ou quem sabe funcionário em alguma loja de atacado ou varejista. Óculos escuros, calça jeans, camisa de botão com estampa xadrez, tênis e uma mochila nas costas. Quando passou pela mulher com a criança no colo fez uma mesura e resolveu sentar ao seu lado, ao lado do sol.

Da cadeira em que estava o ângulo fazia uma hipotenusa e, dava para espreitar a ação dos três de uma maneira não tão invasiva e bisbilhoteira. E foi o que fiz, para disfarçar, saquei um livro de minha mochila e observei o desenrolar lá do outro lado.


Ela fez uma interjeição de espanto: “Menino, como tu cresceu! Me lembro de tu e da tua irmã bem pequenos. Nossa, como o tempo passa, viu” e indagou a ele “Como vai a família, tua mãe, teu pai e tua irmã?”, paralelo a resposta do rapaz, ela botou a criança do lado esquerdo de sua perna, para abrir melhor o ângulo da conversa e pôs a mecha renitente do cabelo por trás da orelha direita: “Vão bem, obrigado. Eu vou agora para o trabalho, minha irmã está fazendo curso técnico de enfermagem e já está estagiando. Painho continua com o táxi e Mainha tá em casa fazendo as coisas, um pouco triste pela morte de tia Vilma, mas a vida continua, não é?” respondeu ele. “Pois é, continua mesmo. Eu não conheci essa tua tia Vilma. Ela morava por lá também?” perguntou a ele. “Não, não. Ela morava em Vitória de Santo Antão. E esse menino aí, qual é o nome dele?” e fez uma gracinha para a criança que não gostou do mimo. “Ah, esse daqui é Gabriel, meu neto. Tem três anos e é inteligente que só, puxou a avó (risos, e uma ruga que não havia percebido saltou do canto de sua boca, provavelmente da idade, mas acredito que foi pela revelação da identidade da criança, algo que invariavelmente, denuncia o tempo de uma forma mais gritante). “Ele é filho do meu menino mais velho, Jean. Tu se lembra dele?” perguntou ela. “Um pouco, não muito. Acho que quando vocês saíram do bairro nós éramos bem pequenos, por isso, se eu o ver eu não o reconheço”. Neste instante o ônibus já pegava a curva à esquerda do Colégio da Assembleia de Deus para entrar no Terminal Integrado da Estação quando ele já se levantou para ser um dos primeiros a descer do coletivo, talvez crente de que o metrô o estivesse esperando na plataforma. A juventude é cruel em sua impaciência, parece até uma gaiola em busca do pássaro azul. Ela vendo a sua pressa se despediu dizendo: “Manda um abraço para tua mãe, teu pai e tua irmã. E diz a tua mãe que em breve vou lá fazer uma visita a ela”. E ele retrucou “Tá certo, mando sim. Tchau e até mais. Tchau, Gabriel”. O menino ficou indiferente a saudação. As portas do ônibus abriram e ele saiu em disparada. Percebi o desgaste na compleição dela, um certo abatimento, talvez cansaço pelo sol que lhe fustigou naquele breve trajeto. Talvez a excitação da conversa e das reminiscências, não sei. Vi apenas que uma vez na Estação, ela pôs o menino no chão e foi caminhando lentamente, sem a graça e a desenvoltura que presenciei no corredor do coletivo. Ela subia à rampa para a plataforma puxando Gabriel com a mão direita. O fardo do Tempo não era o seu neto, tampouco o atabalhoamento juvenil do rapaz em sua pressa rude para lugar nenhum, talvez o pejo do Tempo fosse a eterna inadequação do organismo que subtrai-se com o correr dos dias e, do desejo que é adicionado neste corpo cada vez mais facilmente ofegante a subir às plataformas de metrô vida afora.

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