O inconsciente do olhar VI [ou Ave Maria da Guararapes]

12.8.14 Cabotino 0 Comentarios



18h em Recife e toda a cidade voando para rezar a sua “Ave Maria”. Seja ela uma cerveja após o expediente, rever um amigo ou amiga, uma aula, uma sopa com pão, um cinema, o shopping, uma conta para pagar, o coletivo, o metrô, uma transa casual, um dinheiro para receber, um problema a solucionar que gerará mais um milhão de problemas, uma Coca-Cola morna, um “baseado” na Aurora ou no Parque Treze de Maio etecetera e tal.

Em meio ao etecetera e tal lá estava eu tomando um cafezinho de cinquenta centavos acompanhado do indefectível cigarro Hollywood que aquela altura se encontrava em Las Vegas, ou seja, no meio do king size de nicotina em bastão. Ali sobre o vão livre esquerdo da Avenida Guararapes, no coração das trevas da “Venérea brasileira”, quando fui surpreendido por uma beleza singular. Logo ali, embaixo de toneladas de concreto, ferro e vidro em prédios que misturavam, cafonamente, a arquitetura funcional de Le Corbusier com seu vão livre, com os balangandãs da Belle Époque arquitetônica em um amálgama kitsch, tão recifense, a porra da sensibilidade não me largava? Logo ali, com um café vagabundo na mão esquerda e um cigarro de filtro amarelo na direita?

Lá vinha ela lá depois da Agência do Banco do Brasil. Parece até que os transeuntes não satisfeitos de lhe darem passagem jogaram holofotes no vão livre, e estes iluminaram mais do que cegaram o desfile dela, geralmente é o contrário, mas ali o lume foi providencial e todas as minhas sinapses foram acesas pelos efeitos da nicotina e da cafeína que, ajudaram a clarear aquela “Ave Maria do caos urbano”. E eu como um bom católico apostólico da “Venérea brasileira” fixei toda a minha malícia de canalha amador da zona sul e cerrei os olhos e os mirei nela pois, como reza a cartilha: olhar não arranca pedaço nem engravida.

Nossa, o que eu não daria para segurar aquele “andor” guarnecido com um manto/vestido azul estampado de flores, as alças, duas tirinhas de tecido delicadamente amarrados rente à nuca, ali onde os cabelos esconde sovinamente o calor e o olor dos furtivos acólitos apressados em adorar aquele corpo branco. Tão branco que o sol não bronzeia com inveja das formas, mas sim o queima. E lá vinha ela toda queimada de – sol, sal, olhares e cantadas –, balançando o corpanzil de mulher ancha – quartuda – boa parideira como diria minha avó. Um corpo infenso ao Espírito Santo e ao carpinteiro José, mas não ao meu olhar. No vão livre da Guararapes a “Ave Maria do sexy-appeal” vinha requebrando em minha direção. Os seios pequenos apontando para o relógio dos Correios; as ancas jogavam meu olhar para à esquerda e para à direita como se fossem um cuco e o passarinho afim de sair para dar a hora – Cuco! Cuco! Cuco! –, suas pernas levemente arqueadas para dentro eram o compasso que dava régua ao meu olhar e esquadrinhava aquele vão tão vão sem ela por ali.


Passou por mim como quem passa por um espectro, mas observei o seu olhar de soslaio em minha direção, um olhar complacente como todas as “santas” volvem para seus miseráveis fieis como quem diz: “Me adore sempre, que um dia, quem sabe, posso te fazer um milagre, tenha fé homem de pouca fé”. E foi embora deixando este incréu à procura de uma lixeira para jogar o copo e a guimba do cigarro, mas eu queria mesmo era jogar a lembrança daquela imagem no lixo, como não posso, jogo para vocês. Ave Maria!

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