O inconsciente do olhar VI [ou Ave Maria da Guararapes]
18h em Recife e toda a cidade voando para rezar a sua “Ave Maria”.
Seja ela uma cerveja após o expediente, rever um amigo ou amiga, uma aula, uma
sopa com pão, um cinema, o shopping, uma conta para pagar, o coletivo, o metrô,
uma transa casual, um dinheiro para receber, um problema a solucionar que
gerará mais um milhão de problemas, uma Coca-Cola morna, um “baseado” na Aurora
ou no Parque Treze de Maio etecetera e tal.
Em
meio ao etecetera e tal lá estava eu tomando um cafezinho de cinquenta centavos
acompanhado do indefectível cigarro Hollywood que aquela altura se encontrava
em Las Vegas, ou seja, no meio do king
size de nicotina em bastão. Ali sobre o vão livre esquerdo da Avenida Guararapes,
no coração das trevas da “Venérea brasileira”, quando fui surpreendido por uma
beleza singular. Logo ali, embaixo de toneladas de concreto, ferro e vidro em
prédios que misturavam, cafonamente, a arquitetura funcional de Le Corbusier
com seu vão livre, com os balangandãs da Belle
Époque arquitetônica em um amálgama kitsch, tão recifense, a porra da
sensibilidade não me largava? Logo ali, com um café vagabundo na mão esquerda e
um cigarro de filtro amarelo na direita?
Lá
vinha ela lá depois da Agência do Banco do Brasil. Parece até que os
transeuntes não satisfeitos de lhe darem passagem jogaram holofotes no vão
livre, e estes iluminaram mais do que cegaram o desfile dela, geralmente é o
contrário, mas ali o lume foi providencial e todas as minhas sinapses foram
acesas pelos efeitos da nicotina e da cafeína que, ajudaram a clarear aquela
“Ave Maria do caos urbano”. E eu como um bom católico apostólico da “Venérea
brasileira” fixei toda a minha malícia de canalha amador da zona sul e cerrei
os olhos e os mirei nela pois, como reza a cartilha: olhar não arranca pedaço
nem engravida.
Nossa,
o que eu não daria para segurar aquele “andor” guarnecido com um manto/vestido
azul estampado de flores, as alças, duas tirinhas de tecido delicadamente
amarrados rente à nuca, ali onde os cabelos esconde sovinamente o calor e o
olor dos furtivos acólitos apressados em adorar aquele corpo branco. Tão branco
que o sol não bronzeia com inveja das formas, mas sim o queima. E lá vinha ela
toda queimada de – sol, sal, olhares e cantadas –, balançando o corpanzil de
mulher ancha – quartuda – boa parideira como diria minha avó. Um corpo infenso
ao Espírito Santo e ao carpinteiro José, mas não ao meu olhar. No vão livre da
Guararapes a “Ave Maria do sexy-appeal”
vinha requebrando em minha direção. Os seios pequenos apontando para o relógio
dos Correios; as ancas jogavam meu olhar para à esquerda e para à direita como
se fossem um cuco e o passarinho afim de sair para dar a hora – Cuco! Cuco!
Cuco! –, suas pernas levemente arqueadas para dentro eram o compasso que dava
régua ao meu olhar e esquadrinhava aquele vão tão vão sem ela por ali.
Passou
por mim como quem passa por um espectro, mas observei o seu olhar de soslaio em
minha direção, um olhar complacente como todas as “santas” volvem para seus miseráveis
fieis como quem diz: “Me adore sempre, que um dia, quem sabe, posso te fazer um
milagre, tenha fé homem de pouca fé”. E foi embora deixando este incréu à
procura de uma lixeira para jogar o copo e a guimba do cigarro, mas eu queria
mesmo era jogar a lembrança daquela imagem no lixo, como não posso, jogo para
vocês. Ave Maria!
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